Lorde Quellon nunca regressara da sua última viagem; o Deus Afogado, na sua bondade, concedera-lhe uma morte no mar. Fora Lorde Balon quem voltara, com os irmãos Euron e Victarion. Quando Balon ouvira contar o que acontecera a Urri, removera três dos dedos do meistre com um cutelo de cozinheiro e mandara-lhe a mulher Piper do pai para que lhos cosesse. Cataplasmas e poções funcionaram tão bem para o meistre como para Urrigon. O homem morrera em delírio, e a terceira esposa do Lorde Quellon seguira-o pouco depois, quando a parteira removera uma filha natimorta do seu ventre. Aeron sentira-se feliz. Tinha sido o seu machado que cortara a mão de Urri, enquanto dançavam juntos a dança dos dedos, como os amigos e irmãos costumavam fazer.
Ainda o envergonhava recordar os anos que se seguiram à morte de Urri. Aos dezesseis intitulava-se homem, mas na verdade fora um saco de vinho com pernas. Cantava, dançava (mas não a dança dos dedos, essa nunca mais), gracejava, falava sem parar e fazia brincadeiras. Tocava gaita, fazia malabarismo, montava a cavalo e era capaz de beber mais do que todos os Wynch e os Botley e também metade dos Harlaw. O Deus Afogado concede a todos os homens um dom, até a ele; nenhum homem era capaz de mijar por mais tempo ou até mais longe do que Aeron Greyjoy, coisa que ele provava em todos os banquetes. Uma vez, apostara o seu novo dracar contra uma manada de cabras que seria capaz de apagar uma lareira sem recorrer a nada mais do que a pica. Aeron banqueteara-se com cabra durante um ano, e chamara o navio de Tempestade Dourada, embora Balon tivesse ameaçado enforca-lo no mastro do navio quando lhe contaram que tipo de esporão o irmão tencionava montar na sua proa.
No fim das contas, o Tempestade Dourada fora ao fundo ao largo da Ilha Bela durante a primeira rebelião de Balon, cortado ao meio por uma enorme galé de guerra chamada Fúria, quando Stannis Baratheon apanhara Victarion na armadilha que montara e esmagara a Frota de Ferro. Mas o deus ainda não se cansara de Aeron, e levara-o para terra. Um grupo de pescadores o tomara cativo e o levara agrilhoado para Lanisporto, e ele passara o resto da guerra nas entranhas de Rochedo Casterly, provando que as lulas gigantes eram capazes de mijar durante mais tempo e até mais longe do que os leões, os javalis ou as galinhas.
Esse homem está morto. Aeron afogara-se e renascera do mar, como o profeta do próprio deus. Não havia mortal que fosse capaz de o assustar, e o mesmo podia-se dizer da escuridão… e das memórias, os ossos da alma.
O som de uma porta abrindo, o grito de uma dobradiça de ferro enferrujada.
Euron regressou. Não importava. Ele era o sacerdote Cabelo Molhado, o amado do deus.
— Chegará à guerra? — Perguntou Greydon Goodbrother quando o sol iluminou os montes. — Uma guerra de irmão contra irmão?
— Se o Deus Afogado o desejar. Nenhum homem sem deus pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar.
O Olho de Corvo lutará, isso é certo.
Nenhuma mulher seria capaz de derrotá-lo, nem mesmo Asha; as mulheres eram feitas para travar as suas batalhas na cama de partos. E Theon, se ainda vivesse, era igualmente impotente, um rapaz de amuos e sorrisos.
Em Winterfell demonstrara o seu valor, aquele que tinha, mas o Olho de Corvo não era nenhum rapaz aleijado. Os conveses do navio de Euron estavam pintados de vermelho, para melhor esconder o sangue que os ensopava.
Victarion. O rei tem de ser Victarion, senão a tempestade matará a todos.
Greydon o deixou depois de o sol nascer, para ir levar a notícia da morte de Balon aos primos, nas suas torres em Covabaixa, no Forte do Espigão do Corvo e no Lago do Cadáver. Aeron prosseguiu sozinho, subindo montes e descendo vales ao longo de um trilho pedregoso que se ia tornando mais largo e mais nítido à medida que se ia aproximando do mar. Em todas as aldeias fazia uma pausa para pregar, e o mesmo fazia nos pátios dos pequenos senhores.
— Nascemos do mar, e ao mar voltaremos — dizia-lhes. A sua voz era profunda como o oceano, e trovejava como as ondas. — O Deus da Tempestade, na sua ira, arrancou Balon ao seu castelo e derrubou-o, e ele agora se banqueteia sob as ondas nos salões aquáticos do Deus Afogado.
Ergueu as mãos.
— Balon está morto! O rei está morto! Mas um rei voltará! Pois o que está morto não pode morrer, mas volta a se erguer, mais duro e mais forte! Um rei se erguerá!
Alguns daqueles que o escutavam largavam as enxadas e as picaretas para segui-lo, de modo que quando ouviu o bater das ondas uma dúzia de homens caminhava atrás do seu cavalo, tocados pelo deus e desejosos de se afogar.
Seixeira era o lar de vários milhares de pescadores, cujas cabanas se aglomeravam em volta da base de uma casa torre quadrada com um torreão em cada canto. Quatro dezenas dos afogados de Aeron o esperavam ali, acampados ao longo de uma praia de areia cinzenta em tendas de peles de foca e abrigos construídos com madeira trazida pelo mar. As suas mãos tinham sido endurecidas pela maresia, marcadas pelas redes e linhas, tinham ganhado calos devido a remos, picaretas e machados, mas agora essas mãos empunhavam maças duras como ferro, feitas de madeira trazida pelo mar, pois o deus armara-os com o seu arsenal submarino.
Tinham construído um abrigo para o sacerdote logo acima da linha das marés. Enfiou-se lá dentro de bom grado, depois de afogar os seus mais recentes seguidores.
Meu deus, orou, fale-me com o estrondo das ondas, e me diz o que fazer. Os capitães e os reis esperam a tua palavra. Quem será nosso rei no lugar de Balon? Canta-me na língua do leviatã, para que eu possa saber o seu nome. Diz-me, oh Senhor sob as ondas, quem tem força para combater as tempestades em Pyke?
Embora a cavalgada até Cornartelo tivesse o deixado fatigado, Aeron Cabelo Molhado não conseguiu ficar quieto no seu abrigo de madeira trazida pelo mar, com teto de algas negras. As nuvens chegaram para esconder a lua e as estrelas, e a escuridão caiu tão densa sobre o mar como sobre a sua alma.
Balon favorecia Asha, a filha do seu corpo, mas uma mulher não pode governar os homens de ferro. Tem de ser Victarion.
Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, e Victarion era o mais forte de todos, um autêntico touro, destemido e obediente.
E é aí que se encontra o perigo. Um irmão mais novo deve obediência a um irmão mais velho, e Victarion não era homem que velejasse contra a tradição. Mas ele não tem qualquer simpatia por Euron, não a tem desde que a mulher morreu.
Lá fora, sob o ressonar dos seus afogados e os lamentos do vento, ouviu o rebentar das ondas, o martelo do seu deus a chamar para a batalha.
Aeron gatinhou para fora do seu pequeno abrigo, e penetrou no frio da noite.
Pôs-se em pé, nu, pálido, descarnado e alto, e nu caminhou até o negro mar salgado. A água estava gelada, mas a carícia do seu deus não o fez vacilar.
Uma onda esmagou-lhe contra o peito, o fazendo cambalear.
A seguinte se quebrou por cima da sua cabeça. Sentiu o sabor do sal nos lábios e a presença do deus à sua volta, e os ouvidos ressoaram-se com a glória da sua canção.
Nove filhos nasceram das virilhas de Quellon Greyjoy e eu fui o último, tão fraco e assustado como uma menina. Mas já não. Esse homem afogou-se, e o deus fez-me forte. O frio mar salgado rodeou-o, abraçou-o, avançou através da sua carne fraca de homem e tocou-lhe os ossos.