Bilbo não conseguiu imaginar o que enlouquecera a desprezível criatura, mas percebia que estava tudo acabado, e que Gollum pretendia matá-lo a qualquer custo. Bem na hora ele se virou e correu às cegas pelo corredor escuro de onde viera, mantendo-se próximo da parede e tateando com a mão esquerda.
— O que ele tem no bolsso? — Bilbo ouviu o chiado alto atrás de si e a água espirrando no momento em que Gollum saltou do barco. “O que será que eu tenho?”, disse consigo mesmo, esfalfando-se e tropeçando no caminho. Colocou a mão esquerda no bolso. O anel estava muito frio quando escorregou em seu indicador tateante.
O chiado estava logo atrás. Bilbo se virou e viu os olhos de Gollum, feito pequenas lamparinas verdes, subindo a ladeira. Apavorado, tentou correr mais, mas, de repente, bateu o pé numa saliência do chão e caiu estatelado em cima da pequena espada.
Num segundo Gollum estava sobre ele. Mas antes que Bilbo pudesse fazer qualquer coisa, recuperar o fôlego, levantar-se ou brandir a espada, Gollum passou, sem se dar conta dele, praguejando e sussurrando enquanto corria.
O que aquilo poderia significar? Gollum enxergava no escuro. Bilbo podia ver a luz de seus olhos brilhando palidamente até mesmo por trás.
Com esforço levantou-se, embainhou a espada, que agora voltara a brilhar, e depois, com todo o cuidado, seguiu Gollum. Não parecia haver mais nada a fazer. Não adiantava arrastar-se de volta até a água de Gollum. Talvez, se o seguisse, Gollum pudesse levá-lo a alguma saída sem querer.
— Maldito! Maldito! Maldito! — chiava Gollum. — Maldito Bolseiro. Ele se foi! O que ele tem nos bolssos? Nós adivinha, nós adivinha, meu precioso. Achou ele, é sim, deve ter achado. Meu presente de aniversário.
Bilbo aguçou os ouvidos. Finalmente estava ele mesmo começando a adivinhar. Correu um pouco mais, aproximando-se tanto quanto se atrevia de Gollum, que ainda avançava depressa, sem olhar para trás, mas virando a cabeça de um lado para o outro, como Bilbo pode perceber pelo reflexo pálido nas paredes.
— Meu presente de aniversário! Maldito! Como nós foi perder ele, meu preciosso? É isso mesmo. Quando nós passou por aqui da última vez, quando torcemos aquele guinchadorzinho nojento. É isso mesmo. Maldito! Escorregou da nossa mão, depois de todos esses anos e anos! Ele se foi, gollum.
De repente Gollum sentou-se e começou a chorar, num ruído assobiado e gorgolejante, horrível de ouvir. Bilbo parou e encostou-se contra a parede do túnel. Depois de algum tempo, Gollum parou de chorar e começou a falar. Parecia estar tendo uma discussão consigo mesmo.
— Não adianta voltar lá para procurar, não adianta. Nós não lembra todos os lugares que visitou. E não adianta. O Bolseiro está com ele no bolssso, o xereta nojento encontrou ele, é isso mesmo, nós diz.
— Nóss acha, precioso, nós acha. Nós não pode saber até encontrar a criatura nojenta e espremer ela. Mas ele não sabe o que o presente pode fazer, sabe? Só vai ficar com ele no bolssso. Ele não sabe, e não pode ir muito longe. Ele se perdeu, aquela coisinha xereta. Ele não sabe a saída. Disse que não sabe.
— Ele disse, sim, mas ele é traiçoeiro. Não diz o que está pensando. Não quer dizer o que tem nos bolsssos. Ele sabe. Conhece uma entrada, deve conhecer uma saída, é sim. Ele foi para a porta de trás, é sim, a porta de trás.
— Os orcses vão pegar ele então. Ele não pode sair por ali, precioso.
— Ssss, sss, gollum! Orcses! Sim, mas se ele está com o presente, nosso precioso presente, então os orcses vão pegar ele, gollum! Vão encontrar ele, vão descobrir o que ele faz. Nunca mais nós vai ficar a salvo de novo, nunca mais, gollum! Um dos orcses vai colocar ele no dedo, e então ninguém vai enxergar ele. Ele vai estar lá mas não vai ser visto. Nem nossos olhosos espertos vão notar a presença dele, e ele vai chegar, matreiro e sorrateiro para pegar nós, gollum, gollum!
— Então vamos parar de conversar, precioso, e vamos correr. Se o Bolseiro foi por aquele caminho, nós precisa ir depressa ver. Vamos! Não está muito longe agora. Depressa!
Com um salto. Gollum se levantou e começou a andar em passos largos e desajeitados. Bilbo correu atrás dele, ainda com cautela, embora seu maior medo agora fosse o de tropeçar numa outra saliência, cair e fazer barulho. Sua cabeça era um torvelinho de esperança e surpresa. Pelo jeito, o anel que tinha era mágico: tornava a pessoa invisível! Bilbo já ouvira falar sobre tais coisas, é claro, em histórias muito antigas, mas era difícil acreditar que tivesse realmente achado um por acidente. Mesmo assim, lá estava: Gollum, com seus olhos brilhantes, tinha passado por ele, a menos de um metro de distância.
Foram avançando, Gollum flape-flapeando à frente, chiando e praguejando, Bilbo atrás, silencioso como só um hobbit pode ser. Logo chegaram a lugares onde, como Bilbo notara durante a descida, passagens laterais abriam-se, de um lado e de outro. Gollum imediatamente começou a contá-las.
— Uma à esquerda, sim. Uma à direita, sim. Duas à direita, sim, sim. Duas à esquerda, sim, sim. — E assim por diante.
À medida que a conta avançava, ele diminuía o passo, e começou a ficar trêmulo e choroso, pois estava deixando a água cada vez mais longe e tinha medo. Podia haver orcs por perto, e ele perdera o anel. Por fim parou ao lado de uma abertura baixa, do lado esquerdo de quem subia.
— Sete á direita, sim. Seis à esquerda, sim! — sussurrou ele. — É esta. Este é o caminho para a porta de trás, sim. Aqui está a passagem! — Espiou lá dentro, e recuou encolhido. — Mas nós não arrisca entrar, preciosso, não, nós não arrisca. Orcses lá embaixo. Um monte de orcses. Nós sente o cheiro deles. Ssss!
— O que nós vai fazer? Que morram esses malditos! Nós precisa esperar aqui, preciosso, esperar um pouco para ver.
Assim, chegaram a um impasse. Gollum trouxera Bilbo até a saída no final das contas, mas Bilbo não podia sair! Lá estava Gollum sentado, acocorado bem na abertura, os olhos brilhando frios em sua cabeça, enquanto ele a virava de um lado para o outro entre os joelhos.
Bilbo afastou-se da parede, mais silencioso que um camundongo, mas Gollum enrijeceu-se de imediato, e farejou, seus olhos ficaram verdes.
Soltou um chiado baixo, mas ameaçador. Gollum não conseguia ver o hobbit, mas estava alerta, e tinha outros sentidos que a escuridão aguçara: a audição e o olfato. Parecia estar agachado com as mãos chatas espalmadas no chão e a cabeça lançada à frente, com o nariz quase colado à pedra.
Embora fosse apenas uma sombra negra no brilho dos próprios olhos, Bilbo podia ver ou sentir que ele estava tenso como a corda de um arco, pronta para o disparo.
Bilbo quase parou de respirar, enrijecendo-se também. Estava desesperado. Tinha de sair dali, daquela escuridão horrível, enquanto ainda lhe restavam forças. Tinha de lutar. Tinha de apunhalar a coisa maligna, apagar seus olhos, matá-la. Ela queria matá-lo. Não, não seria uma luta justa. Agora ele estava invisível. Gollum não tinha espada.
Gollum não havia ameaçado matá-lo, nem havia tentado ainda. E estava arrasado, sozinho, perdido. Uma compreensão repentina, um misto de pena e horror, cresceu no coração de Bilbo: um vislumbre de dias infindáveis e indistintos, sem luz ou esperança de melhora, cheios de pedra dura, peixe frio, movimentos furtivos e sussurros. Todos esses pensamentos lhe passaram pela mente num lampejo. Estremeceu. Depois, de súbito, num outro lampejo, como se impelido por uma nova força e resolução, deu um salto.
Um salto não muito grande para um homem, mas um salto no escuro.