É claro que os anões aceitaram prontamente a oferta, já tinham passado a respeitar o pequeno Bilbo. Agora ele se tornara o verdadeiro líder da aventura. Começava a ter suas próprias idéias e planos. Quando chegou o meio-dia, ele se preparou para uma outra jornada montanha adentro. É claro que não gostava disso, mas não era tão ruim assim, agora que sabia o que o esperava. Se soubesse mais sobre dragões e suas manhas, teria sentido mais medo e menos esperança de pegar aquele cochilando.
O sol brilhava quando ele partiu, mas no túnel estava escuro como noite. A luz da porta, praticamente fechada, logo desapareceu a medida que descia. Seu avanço era tão silencioso como o de fumaça carregada pela brisa, e o hobbit sentia-se inclinado a orgulhar-se um pouco de si mesmo enquanto se aproximava da porta inferior. Via-se apenas um brilho dos mais tênues.
“O velho Smaug está exausto e adormecido”, pensou ele. “Não pode me ver e não vai me ouvir. Anime-se, Bilbo”. Esquecera-se, ou nunca ouvira falar, do olfato dos dragões. Também ocorre o incômodo fato de que, quando estão desconfiados, eles conseguem manter um olho semi-aberto) e vigiando) enquanto dormem.
Com certeza Smaug parecia estar num sono profundo. Quase morto e apagado, quase sem roncar, apenas com um bafejo de vapor invisível, quando Bilbo espiou mais uma vez da entrada. Estava prestes a entrar no salão quando percebeu o brilho tênue, repentino e perscrutador de um raio vermelho por baixo da pálpebra do olho esquerdo de Smaug. Ele apenas fingia dormir! Estava vigiando a entrada do túnel! Depressa Bilbo recuou e abençoou a sorte de ter o anel. Então Smaug falou.
— Bem, ladrão! Posso sentir seu cheiro e seu ar. Ouço a sua respiração. Venha! Sirva-se de novo, tem muito e de sobra!
Mas Bilbo não era tão ignorante em matéria de dragões a ponto de fazer isso e, se Smaug esperava que ele chegasse mais perto com tanta facilidade, ficou desapontado.
— Não, obrigado, ó, Smaug, o Tremendo! — retrucou ele. — Não vim por causa de presentes. Eu só queria dar uma olhada e ver se você é realmente grande como dizem as histórias. Eu não acreditava nelas.
— Agora acredita? — disse o dragão, de certa forma lisonjeado, mesmo não acreditando em uma palavra do que ouvia.
— Na verdade, canções e histórias não estão à altura da realidade, ó, Smaug, a Maior e Mais Importante das Calamidades — respondeu Bilbo.
— Você tem boas maneiras para um ladrão e um mentiroso — disse o dragão. — Parece estar familiarizado com o meu nome, mas eu tenho a impressão de não ter sentido seu cheiro antes. Quem é você e de onde vem, se me permite perguntar?
— Permito, é claro! Eu venho de baixo da colina, e sob as colinas e sobre as colinas meus caminhos conduziam. E através do ar. Sou o que caminha sem ser visto.
— Posso muito bem acreditar nisso — disse Smaug —. mas esse não pode ser o seu nome verdadeiro.
— Sou o descobridor de pistas, o cortador de teias, a mosca que dá ferroadas. Fui escolhido pelos números da sorte.
— Títulos encantadores! — zombou o dragão. — Mas os números da sorte nem sempre são os sorteados.
— Sou o que enterra vivos seus amigos e os afoga, e depois os retira vivos outra vez da água. Venho do fundo de uma bolsa, mas numa bolsa nunca fui metido.
— Essas coisas não parecem muito dignas de crédito — troçou Smaug.
— Sou o amigo de ursos e hóspede de águias. Sou o Ganhador do Anel e o Portador da Fortuna, e também sou o Montador de Barril — continuou Bilbo, começando a gostar de seu jogo de adivinhas.
— Assim está melhor — disse Smaug. — Mas não deixe que sua imaginação o leve muito longe!
Essa, naturalmente, é a forma de conversar com dragões, se não queremos revelar nosso próprio nome (o que é sensato), e não queremos enraivecê-lo com uma recusa direta (o que também é muito sensato). Nenhum dragão resiste à fascinação de conversar por enigmas e de perder tempo tentando entendê-los. Havia muito ali que Smaug não entendia de jeito nenhum (embora eu ache que vocês entendem, já que sabem tudo sobre as aventuras às quais Bilbo se referia), mas achava que entendia bastante, e ria maldosamente por dentro.
— Foi o que pensei ontem à noite — disse ele, sorrindo para si mesmo. — Homens do Lago, algum plano maldito dos miseráveis Homens do Lago, comerciantes de barris, se não foi isso sou uma lagartixa. Não desço por aquele caminho há séculos e séculos, mas logo vou alterar isso! Muito bem, ó, Montador de Barril! — disse ele em voz alta. — Talvez “Barril” fosse o nome do seu pônei, ou talvez não, embora ele fosse bem gordo. Você pode andar sem ser visto, mas não andou todo o caminho. Deixe-me dizer que devorei seis pôneis a noite passada, e devo capturar e devorar todos os outros em breve. Como recompensa pela excelente refeição, vou lhe dar um conselho para seu próprio bem: não se envolva com anões mais do que puder evitar!
— Anões? — disse Bilbo, fingindo surpresa.
— Não me venha com conversa! — disse Smaug. — Conheço o cheiro (e o gosto) de um anão melhor do que ninguém. Não me diga que não posso devorar um pônei que foi montado por um anão sem perceber! Você vai se dar mal, se andar com tais amigos, Ladrão Montador de Barril. Não me importo se voltar lá e disser isso a eles. — Mas ele não disse a Bilbo que havia um cheiro que não conseguia identificar de jeito nenhum, o cheiro de hobbit, estava muito além de sua experiência e deixava-o tremendamente perplexo.
— Imagino que tenha conseguido um bom preço pela taça da noite passada — continuou. — Diga, conseguiu? Não recebeu nada! Bem, é assim mesmo que eles agem. E imagino que estejam lá fora escondidos, e que o seu trabalho é fazer todo o serviço perigoso e pegar o que consegue, quando eu não estou olhando, para eles? E você vai conseguir uma parte justa? Não acredite nisso! Se conseguir sair vivo, terá muita sorte.
Bilbo começava a sentir-se realmente incomodado. Cada vez que o olho errante de Smaug, procurando-o nas sombras, passava luzindo por ele, o hobbit tremia, e era tomado por um desejo incontrolável de se revelar e dizer a verdade a Smaug. Na verdade, estava correndo o perigo terrível de ser subjugado pelo encanto do dragão. Mas, criando coragem, falou de novo.
— Você não sabe de tudo, ó, Smaug, o Poderoso — disse ele. — Não foi só o ouro que nos trouxe até aqui.
— Ha! Ha! Você admite o “nós” — disse Smaug rindo. — Por que não diz nós quatorze e acaba com isso, Sr. Número da Sorte? Folgo em saber que tinham outros negócios nestas partes além de meu ouro. Nesse caso, talvez não estejam perdendo totalmente seu tempo. Não sei se lhe ocorreu que, mesmo que conseguisse roubar o ouro pouco a pouco, uma questão de cem anos, mais ou menos, você não conseguiria ir muito longe? Qual seria a utilidade do ouro na encosta da montanha? Qual seria a utilidade na floresta? Céus! Já pensou no produto? A décima quarta parte, acho eu, ou algo assim, eram esses os termos, não é? Mas e a entrega? E o transporte? E os guardas armados e as taxas?
Smaug riu alto. Tinha um coração perverso e manhoso, e sabia que seus palpites não erravam por muito, embora suspeitasse que os Homens do Lago estavam por trás dos planos e que a maior parte do que fosse pilhado iria parar na cidade a beira d’água, que em seus dias de juventude chamava-se Esgaroth.
Vocês mal vão acreditar, mas o pobre Bilbo realmente ficou bastante aturdido. Até aquele momento seus pensamentos e energias haviam se concentrado em chegar à Montanha e encontrar a entrada. Nunca se preocupara em imaginar como o tesouro seria removido, com certeza nunca imaginara como qualquer parte do que lhe cabia percorreria todo o caminho até Bolsão, sob a Colina.