— Tenho certeza de que estamos correndo muito perigo aqui — disse ele — e não vejo porque ficarmos aqui sentados. O dragão acabou com toda a relva e, de qualquer forma, chegou a noite e está frio. Mas sinto nos meus ossos que este lugar será atacado de novo. Agora Smaug sabe como eu desci até seu salão, e não tenham dúvidas de que ele vai adivinhar onde é o fim do túnel. Ele vai partir este lado da Montanha em pedacinhos, se necessário, para bloquear nossa entrada, e se formos esmagados vai ficar ainda mais satisfeito.
— Você está pessimista. Sr. Bolseiro! — disse Thorin. — Por que Smaug não bloqueou a extremidade inferior, se está tão interessado em impedir a nossa entrada? Ele não a bloqueou, ou teríamos ouvido.
— Não sei, não sei. Porque primeiro ele queria tentar me atrair de novo para dentro, acho eu, e agora talvez porque esteja esperando o final da caçada hoje a noite, ou porque não quer estragar seu dormitório se puder evitar. Mas eu gostaria que vocês não discutissem. Smaug vai sair a qualquer momento, e nossa única esperança é avançarmos pelo túnel e fecharmos a porta.
Ele parecia tão aflito que os anões acabaram fazendo como ele dizia, embora demorassem para fechar a porta — parecia um plano desesperado, pois ninguém sabia como ou se poderiam abri-la de novo por dentro, e a idéia de ficarem trancados num lugar cuja única saída passava pela toca do dragão não era apreciada por nenhum deles. Além disso, tudo parecia muito quieto, fora e dentro do túnel. Assim, por um longo tempo, ainda ficaram sentados, não muito longe da porta semi-aberta, e continuaram conversando.
A conversa desviou-se para as palavras maldosas do dragão a respeito dos anões. Bilbo desejou nunca tê-las ouvido ou que, pelo menos, pudesse ter certeza de que os anões estavam sendo absolutamente honestos quando declaravam que nunca haviam pensado sobre o que aconteceria depois que o tesouro fosse conquistado.
— Sabíamos que seria uma aventura desesperada — disse Thorin — e ainda sabemos disso, e ainda penso que quando conquistarmos o tesouro haverá tempo suficiente para pensarmos no que fazer. Quanto á sua parte, Sr. Bolseiro, asseguro-lhe que estamos mais que agradecidos e que poderá escolher a sua décima quarta parte assim que tivermos alguma coisa para dividir. Sinto muito que esteja preocupado com o transporte, e admito que as dificuldades são grandes, as terras não ficaram menos selvagens com o passar dos anos, muito pelo contrário, mas faremos por você o que estiver ao nosso alcance, e dividiremos o custo quando chegar a hora. Acredite ou não, como quiser!
Daí a conversa enveredou para o próprio tesouro e para as coisas que Thorin e Balin recordavam. Imaginavam se tudo ainda estava intacto no salão lá embaixo: as lanças que haviam sido feitas para os exércitos do grande rei Bladorthin (morto muito tempo atrás) tinham uma ponta três vezes forjada, e suas hastes traziam graciosas incrustações de ouro, mas que nunca foram entregues ou pagas: escudos feitos para guerreiros mortos havia muito tempo, a grande taça de ouro de Thror, com duas alças, martelada e esculpida com motivos de pássaros e flores cujos olhos e pétalas eram de pedras preciosas, cotas de malha banhadas em ouro e prata, e impenetráveis, a armadura de Girion, Senhor de Vaíle, feita com quinhentas esmeraldas verdes como a relva, presente para o armamento de seu filho mais velho, montadas sobre uma cota de malha feita pelos anões, diferente de tudo o que fora feito antes, pois era trabalhada em prata pura, e era três vezes mais forte e poderosa que as de aço. Mas, mais bela dentre todas as coisas, era a grande pedra branca que os anões haviam encontrado embaixo das raízes da Montanha, o Coração da Montanha, a Pedra Arken de Thrain.
— A Pedra Arken! A Pedra Arken! — murmurava Thorin no escuro numa espécie de devaneio, com o queixo apoiado nos joelhos. — Era como um globo de mil faces, brilhava como prata á luz do fogo, como água ao sol, como neve sob as estrelas, como chuva sobre a Lua!
Mas o encantamento do desejo pelo tesouro não agia mais sobre Bilbo. Durante toda a conversa ele quase nada ouvia. Era o que estava sentado mais perto da porta, um ouvido atento a espera de algum som lá fora, o outro alerta para outros ecos, além do murmúrio dos anões, para o sussurro de qualquer movimento nas profundezas.
A escuridão tornou-se mais profunda e ele cada vez mais inquieto.
— Fechem a porta! — ele implorou. — Sinto o medo do dragão em meus ossos. Este silêncio agrada-me menos do que o rugido da noite passada. Fechem a porta antes que seja tarde demais!
Algo em sua voz provocou nos anões uma sensação de desconforto. Lentamente Thorin libertou-se de seus sonhos e, levantando-se, chutou a pedra que segurava a porta. Eles então a empurraram e ela se fechou com um estrondo. Não restou sequer vestígio do buraco da fechadura no lado de dentro. Estavam trancados na Montanha!
E foi por um triz. Mal haviam começado a avançar pelo túnel quando um golpe atingiu a encosta da Montanha como aríetes feitos de carvalhos da floresta e impelidos por gigantes. A rocha ribombou, as paredes racharam e pedras caíram do teto sobre suas cabeças. O que aconteceria se a porta ainda estivesse aberta, eu não gosto nem de pensar. Eles fugiram túnel abaixo, felizes por ainda estarem vivos, enquanto atrás, lá fora, ouviam o rugido e o estrondo da fúria de Smaug. O dragão partia as rochas em pedaços, esmagando parede e penhasco com as chicotadas de sua enorme cauda, até que o pequeno trecho elevado onde haviam acampado, o capim chamuscado, a pedra do tordo, as paredes cobertas de caracóis, a estreita plataforma e tudo o mais desapareceram numa confusão de pequenos fragmentos, e uma avalanche de pedras partidas caiu por sobre o penhasco no vale lá embaixo.
Smaug deixara seu covil silenciosa e furtivamente, alçara vôo e então flutuara na escuridão, pesado e lento como um corvo monstruoso. Descendo com o vento para o oeste da Montanha, na esperança de pegar de surpresa alguma coisa ou alguém, e de espionar a abertura da passagem que o ladrão havia usado. O que tinham ouvido era a explosão de sua fúria quando não conseguiu encontrar ninguém nem ver coisa nenhuma, mesmo onde ele julgava que estivesse a saída.
Depois de extravasar sua raiva, sentiu-se melhor e pensou consigo que, daquela direção, não seria mais incomodado. Enquanto isso, tinha mais do que se vingar.
— Montador de Barril — bufou ele. — Seus pés vieram da beira da água. E pela água você veio, sem dúvida. Não conheço o seu cheiro, mas, se você não é um daqueles homens do Lago, teve a ajuda deles. Eles vão me ver e lembrar quem é o verdadeiro Rei sob a Montanha!
Ele se ergueu em chamas e foi para o sul, na direção do Rio Corrente.
CAPÍTULO XIII
Fora de casa
Enquanto isso, os anões estavam sentados na escuridão em silêncio absoluto. Comiam pouco e pouco falavam. Não podiam calcular a passagem do tempo, e mal ousavam se mover, pois o sussurro de suas vozes ecoava e ressoava no túnel. Se cochilavam, acordavam na escuridão e o silêncio ainda persistia, sem trégua. Por fim, depois de dias e dias de espera, ao que parecia, quando estavam ficando sufocados e tontos por falta de ar, não puderam mais agüentar. Teriam recebido quase com alegria os ruídos do retorno do dragão. No silêncio, temiam algum truque maldoso dele, mas não podiam ficar ali sentados para sempre.
Thorin falou:
— Vamos tentar abrir a porta! — disse ele. — Preciso sentir o vento em meu rosto ou morrerei. Acho que prefiro ser esmagado por Smaug ao ar livre a ter de sufocar aqui dentro!
Assim, vários dos anões levantaram-se e foram tateando até o ponto onde estivera a porta. Mas descobriram que a extremidade superior do túnel fora destruída e bloqueada por rochas partidas. A porta jamais seria aberta de novo nem por chave nem pela mágica a que uma vez obedecera.