Estiveram fora quatro dias e, então, souberam que os exércitos reunidos dos Homens do Lago e dos Elfos apressavam-se na direção da Montanha. Mas agora tinham mais esperanças, pois tinham comida para algumas semanas. Se tomassem cuidado — principalmente eram, é claro, e estavam cansados dele, mas eram é muito melhor do que nada —, e o portão já estava bloqueado com uma parede de pedras quadradas assentadas a seco, mas muito grossa e alta, fechando a abertura. Havia buracos pelos quais poderiam olhar (ou atirar), mas nenhuma entrada. Eles entravam e saiam por meio de escadas, e içavam as coisas com cordas. Para a passagem haviam preparado um pequeno arco baixo sob a nova parede, mas, perto da entrada, tinham alterado tanto o leito estreito que um amplo lago se estendia da encosta da montanha até o topo da cachoeira pela qual o rio corria na direção de Vaíle. Chegar até o Portão agora só era possível, a não ser a nado, ao longo de uma saliência estreita do penhasco, do lado direito de quem olhava da muralha. Haviam trazido os pôneis apenas até o topo da escada acima da velha ponte e, depois de descarregá-los, ordenaram que voltassem aos seus senhores, e os enviaram sozinhos para o sul.
Houve uma noite na qual, de repente, viram-se muitas luzes, como de fogueiras e tochas no sul, em Vaíle, diante deles.
— Chegaram! — exclamou Balin. — E o acampamento deles é muito grande. Devem ter atravessado o vale sob a proteção do crepúsculo, pelas duas margens do rio.
Aquela noite os anões dormiram pouco. A manhã ainda estava pálida quando viram uma companhia aproximando-se. De trás da muralha, observaram-nos subindo até o topo do vale e escalando a encosta lentamente. Logo puderam ver que homens do lago, armados para uma possível guerra, e arqueiros élficos estavam entre eles. Por fim, os que vinham na frente da companhia escalaram as pedras amontoadas e apareceram no topo da cachoeira, e muito grande foi a surpresa que tiveram ao ver o lago diante deles e o Portão bloqueado com uma muralha de pedras recém cortadas.
Enquanto estavam parados, apontando e falando, Thorin interpelou-os:
— Quem são vocês — chamou ele, numa voz bem alta — que se aproximam dos portões de Thorin, filho de Thrain, Rei sob a Montanha, como se viessem para uma guerra, e o que desejam?
As eles nada responderam. Alguns recuaram depressa, e os outros, depois de fitarem por um momento o Portão e suas defesas, logo os seguiram. Naquele dia o acampamento foi removido para um ponto a leste do rio, entre os braços da Montanha. As rochas então ecoaram com muitas vozes e canções, o que não acontecia havia muito tempo. Ouvia-se também o som de harpas élficas e de canções doces, e, quando os ecos chegavam até eles, era como se o ar ficasse mais quente, e sentiam a tênue fragrância das flores da mata desabrochando na primavera.
Então Bilbo desejou escapar da fortaleza escura, descer e juntar-se à alegria e aos banquetes junto às fogueiras. Alguns dos anões mais jovens também foram tocados em seus corações e murmuravam que as coisas deveriam ter acontecido de forma diferente, desejando que pudessem dar boas-vindas àquele povo, como amigos, m as Thorin tinha o semblante carregado.
Então os próprios anões pegaram as harpas e os instrumentos resgatados do tesouro, e fizeram música para apaziguar-lhe o ânimo, mas sua canção não era uma canção élfica, e era muito parecida com a que haviam cantado muito tempo antes, na pequena toca de hobbit de Bilbo.
Essa canção pareceu agradar a Thorin, e ele sorriu de novo e ficou contente, começou a avaliar a distância até as Colinas de Ferro e o tempo que Dain levaria para chegar à Montanha Solitária, se tivesse partido logo após receber a mensagem. Mas o cor ação de Bilbo ficou pesado, por causa da canção e da conversa: pareciam belicosas demais.
Na manhã seguinte, bem cedo, uma companhia de lanceiros foi vista atravessando o rio e subindo o vale. Traziam consigo a bandeira verde do Rei Élfico e a bandeira azul do Lago e avançaram até se postarem diante da muralha do Portão. Mais uma vez Thorin interpelou-os em voz alta:
— Quem são vocês, que vêm armados para a guerra até os portões de Thorin, filho de Thrain, Rei sob a Montanha? — Dessa vez alguém respondeu.
Um homem alto, de cabelos escuros e rosto soturno, adiantou-se e gritou:
— Salve, Thorin! Por que se esconde como um ladrão em seu covil? Ainda não somos inimigos, e alegramo-nos em saber que ainda estão vivos, o que é muito mais do que esperávamos. Não esperávamos encontrar ninguém vivo aqui, e, agora que nos encontramos, há assunto para uma parlamentação e conselho.
— Quem é você, e sobre o que gostaria de parlamentar?
— Eu sou Bard e por minha mão o dragão foi morto e seu tesouro, libertado. Não é assunto de seu interesse? Além disso, sou, por direito, descendente de Girion, de Vaíle, e o seu tesouro está misturado a grande parte das riquezas dos salões e cidades dele, roubadas pelo velho Smaug. Não podemos falar sobre esta questão? Em sua última batalha, Smaug destruiu as casas dos homens de Esgaroth, e eu ainda sou o servidor do Senhor deles. Venho como seu porta-voz, e pergunto se não pensa na tristeza e na miséria de seu povo. Eles o ajudaram na sua dificuldade e, como recompensa, vocês até agora só trouxeram destruição, embora, sem dúvida, esse não fosse o seu objetivo.
Aquelas palavras eram justas e verdadeiras, mesmo sendo proferidas com orgulho e rispidez, e Bilbo achou que Thorin admitiria imediatamente a justiça contida nelas. Não esperava, é claro, que alguém se lembrasse de que fora ele quem havia descoberto sozinho o ponto fraco do dragão: tanto melhor, pois realmente ninguém se lembrou. Também não contava, porém, com o poder que tem o ouro muito tempo guardado por um dragão nem com o coração dos anões. Nos últimos dias, Thorin passara muitas horas junto ao tesouro, e a avidez pelas riquezas dominava-o. Embora houvesse procurado especialmente a Pedra Arken, ainda cobiçava muitas outras coisas maravilhosas que lá jaziam e que encerravam velha s lembranças dos trabalhos e das tristezas de sua raça.
— Você coloca seu pior motivo por último, e no lugar principal — respondeu Thorin. — Ao tesouro de meu povo nenhum homem tem direito só porque Smaug, que o roubou de nós, também roubou-lhe a vida ou a casa. O tesouro não lhe pertencia para que seus malefícios devam ser reparados com uma parte dele. O preço dos bens e da assistência que recebemos dos Homens do Lago serão justamente pagos, no devido tempo. Mas não daremos nada, nem mesmo o valor de um pão, sob ameaça de força. Enquanto um exército armado estiver diante de nossas portas, vamos considerá-los inimigos e ladrões. Quero perguntar-lhe que parte da herança vocês teriam pago a meu povo, se nos tivessem encontrado mortos e o tesouro, sem guarda.