— Uma pergunta justa — replicou Bard. — Mas vocês não estão mortos, e nós não somos ladrões. Além disso, os ricos podem ter pena dos necessitados que os acolheram quando passavam necessidade. E, ainda assim, meus outros pedidos continuam sem resposta.
— Não vou parlamentar, como disse, com homens armados às minhas portas. Muito menos com o povo do Rei Élfico, de quem me lembro com pouca simpatia. Neste debate eles não têm lugar. Partam agora, antes que nossas flechas voem! E, se quiser falar comigo novamente, primeiro dispense o exército élfico e mande-o para a floresta, onde é seu lugar, então volte, depondo as armas antes de se aproximar da soleira.
— O Rei Élfico é meu amigo e socorreu o povo do Lago em sua necessidade, embora o povo não pudesse reclamar-lhe nada além da amizade — respondeu Bard. — Dar-lhe-emos tempo para que se arrependa de suas palavras. Use de sua sabedoria antes que voltemos! — Eles então partiram e voltaram para o acampamento.
Antes que muitas horas se passassem, os porta-bandeiras voltaram, e os corneteiros deram um passo à frente e tocaram:
— Em nome de Esgaroth e da Floresta — gritou um deles —, dirigimo-nos a Thorin Escudo de Carvalho, filho de Thrain, que se intitula Rei sob a Montanha, e pedimos que considere com cuidado as exigências feitas, ou será declarado nosso inimigo. Ele deve entregar, pelo menos, um doze avos do tesouro a Bard, na condição de matador do dragão, além de herdeiro de Girion. Desta parte, o próprio Bard fará sua contribuição para ajudar Esgaroth, mas, se Thorin desejar a amizade e a honra das terras desta região, como outrora tinham seus antepassados, dará também algo de seu para o consolo dos homens do Lago.
Thorin então agarrou um arco de chifre e desferiu uma flecha contra o que falava. A flecha acertou o escudo e ficou ali fincada, tremendo.
— Já que esta é a sua resposta — disse ele então —, declaro a Montanha sitiada. Não poderão sair dela, até que, de sua parte, peçam uma trégua e uma negociação. Não levantaremos armas contra vocês, mas deixá-los-emos com seu ouro. Podem comê-lo, se quiserem!
Dizendo isso, os mensageiros partiram depressa, e os anões foram deixados considerando o assunto. Thorin ficara tão severo que, mesmo que quisessem os outros, não se atreveriam a criticá-lo, na verdade, porém, a maioria deles parecia pensar da mesma maneira — exceto, talvez, o velho e gordo Bombur, Fili e Kili. Bilbo, é claro, desaprovava inteiramente o rumo que a situação havia tomado. Já estava farto da Montanha e ficar sitiado dentro dela não o agradava nem um pouco.
— Todo este lugar ainda fede a dragão — resmungou ele consigo mesmo —, e me dá engulhos. E simplesmente já não me desce goela abaixo.
CAPÍTULO XVI
Um ladrão na noite
Agora os dias arrastavam-se, lentos e cansativos. Muitos dos anões passavam seu tempo empilhando e arrumando o tesouro, e Thorin falava da Pedra Arken de Thrain, e ordenava que os companheiros a procurassem em todos os cantos.
— Pois a Pedra Arken de meu pai — dizia ele — vale mais que um rio de ouro e, para mim, não tem preço. De todo o tesouro, aquela pedra me pertence, e vingar-me-ei de qualquer um que a encontre e a retenha consigo.
Bilbo ouviu aquelas palavras e ficou com medo, imaginando o que aconteceria se a pedra fosse encontrada, embrulhada numa velha trouxa de roupas esfarrapadas que ele usava como travesseiro. Mesmo assim, não falou dela, pois, à medida que o cansaço dos dias ficava mais pesado, o início de um plano desenhava-se em sua cabecinha.
As coisas estavam assim já havia algum tempo, quando os corvos trouxeram a notícia de que Dain e mais de quinhentos anões, avançando das Colinas de Ferro, estavam agora a cerca de dois dias de marcha de Vaíle, vindos do nordeste.
— Mas não podem chegar à Montanha sem serem notados — disse Roac —, e receio que haja batalha no vale. Não acho boa essa idéia. Embora sejam um povo, não é provável que vençam o exército que os sitia, e, mesmo que conseguissem, o que ganhariam? O inverno e a neve vêm em seu encalço. Como poderão se alimentar sem a boa vontade e a amizade das terras ao redor? O tesouro provavelmente será a sua morte, embora o dragão não mais exista!
Mas Thorin não se abalou.
— O inverno e a neve castigarão tanto os homens quanto os elfos — disse ele —, e eles podem achar sua moradia no ermo dura de agüentar. Com meus amigos atrás e o inverno em cima deles, talvez fiquem mais maleáveis.
Naquela noite Bilbo tomou uma decisão. O céu estava negro e sem lua. Logo que escureceu por completo, foi para o canto de uma câmara interna junto ao Portão e tirou de seu fardo uma corda, além da Pedra Arken embrulhada num trapo. Depois escalou a muralha. Apenas Bombur estava lá, pois era a sua vez de vigiar, e os anões mantinham apenas um vigia por vez.
— Está um frio terrível! — disse Bombur. — Queria poder acender uma fogueira aqui em cima, como a que eles têm no acampamento!
— Está bastante quente lá dentro — disse Bilbo.
— Aposto que sim, mas estou preso aqui até a meia -noite — resmungou o gordo anão. — Uma tarefa difícil, sem dúvida. Não que eu me atreva a discordar de Thorin, que sua barba cresça sempre mais, mas ele sempre foi um anão teimoso e cabeça-dura.
— Não tão dura quanto as minhas pernas — disse Bilbo. — Estou cansado de escadas e corredores de pedra. O que eu não daria para sentir a grama sob os pés!
— Eu daria qualquer coisa para molhar a garganta com uma bebida forte, e por uma cama macia depois de uma boa ceia!
— Não posso lhe oferecer essas coisas enquanto o cerco continuar. Mas já faz tempo que fiquei de vigia, e posso fazer o seu turno por você, se quiser. Não sinto sono esta noite.
— Você é um bom sujeito, Sr. Bolseiro, e aceito sua oferta agradecido. Se acontecer algo diferente, acorde-me primeiro, não se esqueça! Vou ficar deitado na câmara interna à esquerda, não muito longe daqui.
— Então vá! — disse Bilbo. — Vou acordá-lo à meia-noite e você pode então acordar o próximo vigia.
Assim que Bombur se afastou, Bilbo colocou o anel, prendeu a corda, desceu pela muralha e se foi. Dispunha de cerca de cinco horas. Bombur dormiria (podia dormir a qualquer hora) e, desde a aventura na floresta, estava sempre tentando recuperar os belos sonhos que tivera então, e todos os outros estavam ocupados com Thorin. Era improvável que algum deles, mesmo Fili ou Kili fosse à muralha antes que chegasse o seu turno.
Estava muito escuro, e a estrada, depois que Bilbo deixou a trilha recém-construída e desceu rumo ao curso inferior do rio, era-lhe desconhecida. Por fim, chegou à curva onde deveria atravessar a água, se quisesse ir até o acampamento, como era o seu desejo. Naquele trecho o rio era raso, mas já largo, e atravessá-lo à pé, no escuro, não foi fácil para o pequeno hobbit. Já tinha quase chegado ao outro lado quando escorregou numa pedra redonda e caiu na água gelada. Mal tinha se arrastado até a outra margem, tremendo e bufando, quando surgiram na escuridão elfos com lamparinas, em busca do motivo do barulho.
— Aquilo não foi nenhum peixe — disse um. — Há um espião por aqui. Escondam as luzes! Vão ajudá-lo mais do que a nós, se for aquela criaturinha estranha que dizem ser empregado deles.
— Empregado. Ora! — resmungou Bilbo, e, ao resmungar, soltou um espirro, os elfos imediatamente correram na direção do ruído.
— Um pouco de luz! — disse ele. — Estou aqui, se me procuram! — e, dizendo isso, tirou o anel e surgiu de trás de uma rocha.