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O gabinete do director era no andar de cima, a escada de acesso tinha no telhado uma clarabóia tão baça por dentro e tão suja por fora que, tanto no inverno como no verão, só avaramente deixava passar para baixo alguma luz natural. Enfiou por outro corredor e parou na segunda porta. Como havia uma luz verde acesa, bateu com os nós dos dedos e abriu quando ouviu de dentro, Entre, deu os bons-dias, apertou a mão que o director lhe estendia e, a um sinal dele, sentou-se. Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar, era como um desses sonhos que sabemos ter sonhado mas que não conseguimos recordar quando despertamos. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, a secretária era ampla, de estilo antigo, moderno o cadeirão de pele negra. Tertuliano Máximo Afonso conhecia estes móveis, este cortinado, esta alcatifa, ou julgava conhecê-los, possivelmente o que lhe aconteceu foi ter lido um dia num romance ou num conto a lacónica descrição de um outro gabinete de um outro director de uma outra escola, o que, assim sendo, e no caso de vir a ser demonstrado com o texto à vista, o obrigará a substituir por uma banalidade ao alcance de qualquer pessoa de razoável memória o que até hoje tinha pensado ser uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retomo. Fantasias. Absorto na sua onírica visão, o professor de História não tinha ouvido as primeiras palavras do director, mas nós, que aqui sempre estaremos para as faltas, podemos dizer que não tinha perdido muito, apenas a retribuição dos seus bons dias, a pergunta Como tem passado, o preambular Pedi-lhe que viesse aqui para, daí em diante Tertuliano Máximo Afonso passou a estar presente em corpo e em espírito, com a luz dos olhos desperta e a do entendimento também. Pedi-lhe que aqui viesse, repetiu o director porque lhe tinha parecido perceber um certo ar de distracção na cara do interlocutor, para falar consigo sobre aquilo que nos disse na reunião de ontem acerca do ensino da História, Que foi que eu disse na reunião de ontem, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Não se lembra, Tenho uma vaga ideia, mas a minha cabeça está um pouco baralhada, quase não dormi esta noite, Sente-se doente, Doente, não, inquietações, nada mais, Já não é pouco, Não tem importância, senhor director, não se preocupe, O que você disse, palavra por palavra, tenho-o apontado aqui, neste papel, é que a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou de diante para trás, Não foi esta a primeira vez que o disse, Precisamente, tem-no dito tantas vezes que os seus colegas já não o tomam a sério, começam a sorrir logo às primeiras palavras, Os meus colegas são pessoas de sorte, têm o sorriso fácil, e o senhor director, Eu, quê, Pergunto se também não me toma a sério, se também sorri às primeiras palavras que digo, ou às segundas, Conhece-me o suficiente para saber que não sorrio facilmente, menos ainda num caso destes, quanto a tomá-lo a sério, está fora de qualquer discussão, você é um dos nossos melhores professores, os alunos estimam-no e respeitam-no, o que é milagre nos tempos que correm, Então não vejo o motivo por que me mandou chamar, Unicamente para lhe pedir que não tome, Que não torne a dizer que a única decisão séria, Sim, Portanto passarei a não abrir a boca durante as reuniões, se uma pessoa considera que tem algo importante para comunicar e as outras não o querem ouvir, é preferível que se deixe ficar calada, Pessoalmente sempre achei interessante a sua ideia, Obrigado, senhor director, mas não mo diga a mim, diga-o aos meus colegas, diga-o sobretudo ao ministério, aliás, a ideia nem sequer me pertence, não inventei nada, gente mais competente do que eu a propôs e a tem defendido, Sem resultados que se notem, Compreende-se, senhor director, falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra, Acho admirável o que acaba de dizer, creio que até o ministro se deixaria convencer pela sua eloquência, Duvido, senhor director, os ministros são lá postos para nos convencerem a nós, Retiro o que lhe tinha dito antes, a partir de hoje apoiá-lo-ei sem reservas ' Obrigado, mas é melhor não criar ilusões, o sistema tem de prestar boas contas a quem de direito e esta é uma aritmética que não lhes agrada, Insistiremos, Houve já quem afirmasse que todas as grandes verdades são absolutamente triviais e que teremos de expressá-las de uma maneira nova e, se possível, paradoxal, para que não venham a cair no esquecimento, Quem disse isso, Um alemão, um tal Schlegel, mas o mais certo é que outros antes dele também o tenham dito, Faz pensar, Sim, mas a mim o que sobretudo me atrai é a fascinante declaração de que as grandes verdades não passam de trivialidades, o resto, a suposta necessidade de uma expressão nova e paradoxal que lhes prolongue a existência e as substantive, já não me diz respeito, sou apenas um professor de História do ensino secundário, Deveríamos conversar mais, meu caro, O tempo não chega para tudo, senhor director, além disso estão aí os meus colegas, que melhores coisas teriam com certeza para lhe dizer, por exemplo, como se responde com um sorriso fácil a palavras sérias, e os estudantes, não esqueçamos os estudantes, coitados, que por não terem com quem falar acabarão um dia por não terem nada para dizer, imagine o que seria a vida na escola com toda a gente à conversa, não faríamos mais nada, e o trabalho à espera. O director olhou o relógio e disse, O almoço também, vamos almoçar. Levantou-se, rodeou a secretária e, numa espontânea demonstração de estima, foi pôr a mão no ombro do professor de História, que igualmente se havia posto de pé. Inevitavelmente observou-se neste gesto algo de sentimento paternalista, mas isso, vindo da parte de um director, era o mais natural, o mais próprio até, uma vez que as relações humanas são o que sabemos. O susceptível gerador eléctrico de Tertuliano Máximo Afonso não reagiu ao contacto, sinal de que não tinha havido nenhum molestador exagero na manifestação de apreço que recebera, ou então, quem sabe, talvez o tivesse simplesmente desligado a esclarecedora conversa matinal com o professor de Matemática. Nunca se repetirá de mais aquela outra trivialidade de que as pequenas causas podem produzir grandes efeitos. Num momento em que o director voltou à secretária para recolher os óculos, Tertuliano Máximo Afonso olhou em redor, viu o cortinado, o cadeirão de pele negra, a alcatifa, e novamente pensou, Já aqui estive. Depois, talvez porque alguém tivesse aventado que poderia apenas haver lido em qualquer parte a descrição de um gabinete parecido a este, acrescentou outro pensamento ao que tinha pensado, Provavelmente, ler também é uma forma de estar lá. Os óculos do director já se encontravam no bolso superior do casaco, ele dizia, risonho, Vamos, e Tertuliano Máximo Afonso não poderá explicar agora nem saberá explicá-lo nunca por que é que de repente a atmosfera lhe pareceu ter-se tomado mais densa, como impregnada por uma presença invisível, tão intensa, tão poderosa como aquela que o despertara bruscamente na sua cama depois do primeiro vídeo. Pensou, Se eu aqui tivesse estado antes de ser professor da escola, isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo histericamente activada. O resto do pensamento, se algum resto havia ainda, ficou por desenvolver, o director já o levava pelo braço, dizia qualquer coisa relacionada com as grandes mentiras, se também elas seriam triviais, se, no caso delas, também os paradoxos poderiam impedir que caíssem no esquecimento. Tertuliano Máximo Afonso apanhou-lhe a ideia por uma unha negra, no último instante, Grandes verdades, grandes mentiras, suponho que com o tempo tudo se vai tomando trivial, os pratos do costume com o tempero de sempre, respondeu, Espero que isso não seja uma crítica à nossa cozinha, brincou o director, Sou freguês habitual, respondeu Tertuliano Máximo Afonso no mesmo tom. Desciam a escada para o refeitório, depois, no caminho, juntaram-se-lhes o colega de Matemática e uma professora de Inglês, para este almoço já estava completa a mesa do director. Então, perguntou o de Matemática em voz baixa num momento em que o director e a de Inglês se adiantaram, como se sente agora, Bem, muito bem mesmo, Tiveram alguma conversa, Sim, mandou-me chamar ao gabinete para me pedir que não tornasse àquilo de ensinar a História de pernas para o ar, De pernas para o ar, É uma maneira de dizer, E você, que lhe respondeu, Expliquei pela centésima vez o meu ponto de vista e creio que consegui convencê-lo finalmente de que o disparate era um pouco menos tolo do que lhe tinha parecido até agora, Uma vitória, Que não servirá para nada, De facto, nunca se sabe muito bem para que servem as vitórias, suspirou o professor de Matemática, Mas as derrotas sabe-se muito bem para que servem, sabem-no sobretudo os que lançaram na batalha tudo o que eram e tudo quanto tinham, mas desta permanente lição da História ninguém faz caso, Dir-se-ia que você está cansado do seu trabalho, Talvez, talvez, andamos a pôr o tempero de sempre nos pratos do costume, nada muda, Pensa deixar o ensino, Não sei com precisão, nem mesmo vagamente, o que penso ou o que quero, mas imagino que seria uma boa ideia, Abandonar o ensino, Abandonar qualquer coisa. Entraram no refeitório, instalaram-se à mesa os quatro, e o director, enquanto desdobrava o guardanapo, pediu a Tertuliano Máximo Afonso, Gostaria que repetisse aqui aos nossos colegas o que me disse há bocado, Sobre quê, Sobre a sua original concepção do ensino da História. A professora de Inglês começou a sorrir, mas a mirada que o aludido lhe deitou, parada, ausente e ao mesmo tempo fria, paralisou o movimento que principiara a esboçar-se nos lábios. Admitindo que concepção seja o termo próprio, senhor director, de original não tem nada, é uma coroa de louros que não foi feita para a minha cabeça, disse Tertuliano Máximo Afonso após uma pausa, Sim, mas o discurso que me deixou convencido era seu, retorquiu o director. Num instante o olhar do professor de História afastou-se dali, saiu do refeitório, percorreu o corredor e subiu ao andar de cima, atravessou a porta fechada do gabinete do director, viu o que já ia à espera de ver, depois regressou pelo mesmo caminho, tornou-se novamente presente, mas agora com uma expressão de perplexidade inquieta, um frémito de desassossego que roçava o temor. Era ele, era ele, era ele, repetia Tertuliano Máximo Afonso consigo mesmo, enquanto, com os olhos postos no colega de Matemática, mais palavra menos palavra, rememorava os lanços da sua metafórica navegação pelo rio do Tempo acima. Desta vez não dissera rio da História, achou que rio do Tempo iria causar mais impressão. A professora de Inglês tinha o rosto sério. Anda pelos sessenta anos, é mãe e avó, e, ao contrário do que teria começado por parecer, não é dessas pessoas que se dedicam a passear pela vida distribuindo sorrisos de mofa à esquerda e à direita. Sucedeu-lhe o mesmo que a tantos de nós, errarmos não porque fosse esse o nosso propósito, mas porque o erro se confundiu com um traço de união, com uma cumplicidade confortável, com a piscadela de olho de quem cria saber do que se tratava só porque outros o afirmavam. Quando Tertuliano Máximo Afonso terminou o seu breve discurso, viu que tinha convencido outra pessoa. Timidamente, a professora de Inglês murmurava, Podia-se fazer o mesmo com as línguas, ensiná-las dessa maneira, ir navegando até à nascente do rio, talvez assim viéssemos a perceber melhor o que é isto de falar, Não faltam especialistas que o saibam, lembrou o director, Mas não esta professora a quem mandaram ensinar Inglês como se não existisse nada antes. O colega de Matemática disse, sorrindo, Desconfio que esses métodos não dariam resultado com a aritmética, o número dez é teimosamente invariável, nem teve necessidade de passar pelo nove nem o devora a ambição de tomar-se onze. A comida tinha sido trazida à mesa, falou-se doutra coisa. Tertuliano Máximo Afonso já não estava tão certo de que o responsável pelo plasma invisível que se diluíra na atmosfera do gabinete do director fosse o caixa do banco. Nem ele, nem o empregado da recepção do hotel. Ainda por cima com aquele bigodinho ridículo, pensou, e depois, sorrindo tristemente para dentro, Devo estar a perder o juízo. Na aula que foi dar depois do almoço, totalmente fora de tom e de propósito, uma vez que a matéria não fazia parte do programa, passou o tempo todo a discretear sobre os semitas amorreus, sobre o Código de Hamurabi, sobre a legislação babilónica, sobre o deus Marduc, sobre o idioma acádico, com o resultado de ter feito mudar de opinião o aluno que no outro dia havia segredado ao colega do lado que o tipo vinha com a mosca. Agora, o diagnóstico, bem mais radical, foi que o tipo tinha um dos parafusos da cabeça fora do lugar ou que se lhe havia moído a rosca. Felizmente, a aula seguinte, para estudantes mais novos, decorreu com normalidade. Uma referência avulsa, de passagem, ao cinema histórico ainda foi acolhida com apaixonado interesse pela turma, mas o divertimento ficou-se por ali, não se falou de cleópatra, nem de espartaco, nem do corcunda de notre-dame, nem sequer do imperador napoleão bonaparte, que é pau para toda a colher. Um dia para esquecer, pensava Tertuliano Máximo Afonso quando entrou no carro para regressar a casa. Estava a ser injusto com o dia e consigo mesmo, afinal tinha conquistado para as suas ideias reformadoras o director e a professora de Inglês, seria menos um a sorrir na próxima reunião de professores, do outro não há que temer, ficámos cientes há poucas horas de que não tem o sorriso fácil.