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O professor de Matemática pensou, pensou, e disse enfim, Quem Porfia Mata Caça, Isso que é, Um filme, foi o que me pediu, Parece mais um ditado popular, É um ditado popular, Todo ele, ou só o título, Espere para ver, De que género, O ditado, Não, o filme, Comédia, Tem a certeza de que não é um dramalhão dos antigos, de faca e alguidar, ou desses modernos, com tiros e explosões, É uma comédia levezinha, divertida, Vou tomar nota, como foi que disse que se chamava, Quem Porfia Mata Caça, Muito bem, já o tenho, Não é nenhuma obra-prima do cinema, mas poderá entretê-lo durante hora e meia.

Tertuliano Máximo Afonso está em casa, tem na cara uma expressão de dúvida, nada grave, porém, não é a primeira vez que lhe sucede estar assim, a assistir ao balouçar da vontade entre gastar tempo a preparar algo para comer, o que em geral não significa mais esforço que abrir uma lata e levar ao lume o conteúdo, ou a alternativa de sair para ir jantar a um restaurante perto, onde já o conhecem pela pouca consideração que demonstra pela ementa, não por atitude soberba de cliente insatisfeito, mas por indiferença, por alheamento, por preguiça de ter de escolher um prato entre os que lhe propõem na curta lista por de mais repetida. Reforça-lhe a conveniência de não sair de casa o facto de ter trazido trabalho da escola, os últimos exercícios dos seus alunos, que deverá ler com atenção e corrigir sempre que atentem perigosamente contra as verdades ensinadas ou se permitam excessivas liberdades de interpretação. A História que Tertuliano Máximo Afonso tem a missão de ensinar é como um bonsai a que de vez em quando se aparam as raízes para que não cresça, uma miniatura infantil da gigantesca árvore dos lugares e do tempo, e de quanto neles vai sucedendo, olhamos, vemos a desigualdade de tamanho e por aí nos deixamos ficar, passamos por alto outras diferenças não menos notáveis, por exemplo, nenhuma ave, nenhum pássaro, nem sequer o diminuto beija-flor, conseguiria fazer ninho nos ramos de um bonsai, e se é verdade que à pequena sombra deste, supondo-o provido de suficiente frondosidade, pode ir acoitar-se uma lagartixa, o mais certo é que ao réptil lhe fique a ponta do rabo de fora. A História que Tertuliano Máximo Afonso ensina, ele mesmo o reconhece e não se importará de confessar se lho perguntarem, tem uma enorme quantidade de rabos de fora, alguns ainda remexendo, outros já reduzidos a uma pele encarquilhada com uma carreirinha de vértebras soltas dentro. Lembrando-se da conversa com o colega, pensou, A Matemática veio doutro planeta cerebral, na Matemática os rabos de lagartixa não seriam mais que abstracções. Tirou os papéis de dentro da pasta e colocou-os em cima da mesa de trabalho, tirou também a cassete de Quem Porfia Mata Caça, ali estavam as duas ocupações a que poderia dedicar o serão de hoje, corrigir os exercícios, ver o filme, suspeitava no entanto que o tempo não iria dar para tudo, uma vez que não tinha por costume nem gostava de trabalhar pela noite dentro. A urgência do exame das provas dos alunos não era de sangria desatada, a urgência de ver o filme, essa não era nenhuma. O melhor será continuar com o livro que estava a ler, pensou. Depois de ter passado pela casa de banho foi ao quarto para mudar de roupa, trocou de sapatos e calças, enfiou um pulôver por cima da camisa, deixando ficar a gravata porque não gostava de ver-se esgargalado, e entrou na cozinha. Tirou de um armário três latas de diferentes comidas, e como não soube por qual decidir-se, lançou mão, para tirar à sorte, de uma incompreensível e quase esquecida cantilena de infância que muitas vezes, naqueles tempos, o tinha deixado fora de jogo, e rezava assim, um dó li tá, era de mendá, um sulete colorete, um dó li tá. Saiu um guisado de carne, que não era o que mais lhe apetecia, mas achou que não devia contrariar o destino. Comeu na cozinha, empurrando com um copo de vinho tinto, e, quando terminou, quase sem pensar, repetiu a cantilena com três migalhas de pão, a da esquerda, que era o livro, a do meio, que era os exercícios, a da direita, que era o filme. Ganhou Quem Porfia Mata Caça, está visto que o que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, nunca jogues as pêras com o destino, que ele come as maduras e dá-te as verdes.

É o que geralmente se diz, e, porque se diz geralmente, aceitamos a sentença sem mais discussão, quando o nosso dever de gente livre seria questionar energicamente um destino despótico que determinou, sabe-se lá com que maliciosas intenções, que a pêra verde é o filme, e não os exercícios ou o livro. Como professor, e de História ainda por cima, este Tertuliano Máximo Afonso, haja vista a cena a que acabámos de assistir na cozinha, confiando o seu futuro imediato e porventura o que virá depois dele a três migalhas de pão e a um papaguear infantil e sem sentido, é um mau exemplo para os adolescentes que o destino, o mesmo ou outro, pôs nas suas mãos. Não caberá infelizmente neste relato uma antecipação dos prováveis efeitos perniciosos da influência de um tal professor na formação das jovens almas dos educandos, por isso as deixamos aqui, sem outra esperança que a de que venham a encontrar, um dia, no caminho da vida, uma influência de sinal contrário que as livre, quem sabe se in extremis, da perdição irracionalista que neste momento as ameaça.