Nebulosamente, já com as primeiras maranhas do sono a envolvê-lo, Tertuliano Máximo respondeu que a ideia não tinha nenhuma graça, era demasiado simples, ao alcance de qualquer. Não foi por isso que estudei história, rematou. As últimas palavras não tinham nada que ver com o caso, eram outra manifestação de soberba, mas devem desculpá-lo, é o comprimido que está a falar, não aquele que o tomou. De Tertuliano Máximo Afonsoem I pessoa foi, sim, já no limiar do sono. a consideração final, insolitamente lúcida como a chama da vela prestes a apagar-se, Quero chegar a ele sem que ninguém saiba e sem que ele o suspeite. Eram palavras definitivas, que não admitiam troco.
O sono fechou a porta. Tertuliano Máximo Afonso dorme.
Às onze horas da manhã Tertuliano Máximo Afonso já tinha visto três filmes, embora nenhum deles do princípio ao fim. Levantara-se muito cedo, limitara o pequeno-almoço a duas bolachas e uma chávena de café requentado, e, sem perder tempo a barbear-se, saltando as abluções que não fossem estritamente indispensáveis, de pijama e roupão como alguém que não espera visitas, lançou-se à empreitada do dia. Os dois primeiros filmes passaram debalde, mas o terceiro, cujo título era O Paralelo do Terror, trouxe à cena do crime um jovial fotógrafo da polícia que mascava chiclete e repetia, com a voz de Tertuliano Máximo Afonso, que tanto na morte como na vida tudo é questão de ângulo. No final a lista voltou a ser actualizada, foi riscado um nome, marcadas novas cruzes. Havia cinco actores assinalados cinco vezes, tantas quantos os filmes em que o sósia do professor de História tinha participado, e os seus nomes, por imparcial ordem alfabética, eram Adriano Maia, Carlos Martinho, Daniel Santa-Clara, Luís Augusto Ventura e Pedro Félix. Até este momento Tertuliano Máximo Afonso tinha andado perdido no mare magnum dos mais de cinco milhões de habitantes da cidade, mas a partir de agora só terá de se preocupar com menos de meia dúzia, e até com menos de menos de meia dúzia se um ou mais daqueles nomes vierem a ser eliminados por faltarem à chamada, É obra, murmurou, mas logo a seguir saltou-lhe aos olhos a evidência de que este outro trabalho de Hércules afinal não o havia sido tanto, uma vez que pelo menos dois milhões e quinhentas mil pessoas pertenciam ao sexo feminino e, portanto, estavam fora do campo da pesquisa. Não deverá surpreender-nos o esquecimento de Tertuliano Máximo Afonso, porquanto, em cálculos que abarquem grandes números, como no presente caso, a tendência a não contar com as mulheres é irresistível. Apesar da redução sofrida na estatística, Tertuliano Máximo Afonso foi à cozinha festejar com outro café os prometedores resultados. A campainha da porta tocou ao segundo gole, a chávena ficou parada no ar, a meio caminho da descida para o tampo da mesa, Quem será, perguntou, ao mesmo tempo que ia pousando suavemente a chávena. Poderia ser a prestável vizinha do andar de cima a querer saber se tinha encontrado tudo a seu gosto, poderia ser um desses jovens que fazem publicidade de enciclopédias em que se explicam os costumes do tamboril, poderia ser o colega das Matemáticas, não, este não era, nunca haviam sido visitas, Quem será, repetiu. Acabou de beber o café rapidamente e foi ver quem chamava. Atravessando a sala, lançou um olhar inquieto às caixas de vídeo espalhadas, à fila impassível das que, alinhadas no chão, ao longo da estante, esperavam a sua vez, a vizinha de cima, supondo que era ela, não iria gostar nada de ver neste estado deplorável o que ainda ontem lhe tinha dado tanto trabalho a arrumar. Não tem importância, ela não tem que entrar, pensou, e abriu a porta. Não era a vizinha de cima quem estava na sua frente, não era a jovem vendedora de enciclopédias a comunicar-lhe que tinha ao seu alcance, finalmente, o enorme privilégio de conhecer os costumes do tamboril, quem estava ali era uma mulher que até agora ainda não nos tinha aparecido mas de quem já sabíamos o nome, chama-se Maria da Paz, empregada num banco. Ah, és tu, exclamou Tertuliano Máximo Afonso, e logo, tentando disfarçar a perturbação, o desconcerto, Viva, que grande surpresa. Devia dizer-lhe que entrasse, Passa, passa, agora mesmo estava a beber um café, ou então, Estupendo que tenhas vindo, põe-te à vontade enquanto eu faço a barba e tomo um banho, mas era a custo que se afastava para o lado e lhe dava passagem, ah, se lhe pudesse dizer, Esperas aqui enquanto eu vou esconder uns vídeos que não quero que vejas, ah, se lhe pudesse dizer, Desculpa, vieste em má altura, neste momento não te posso dar atenção, volta amanhã, ah, se alguma coisa ainda lhe pudesse dizer, mas agora era demasiado tarde, tivesse-O pensado antes, a culpa era toda dele, o homem prudente deverá estar constantemente de pé atrás, de sobreaviso, deverá prever todas as eventualidades; sobretudo não esquecer que o procedimento mais correcto é em geral o mais simples, por exemplo, não ir ingenuamente abrir a porta só porque a campainha tocou, a precipitação dá sempre origem a complicações, é dos livros. Maria da Paz entrou com o à-vontade de quem conhece os cantos à casa, perguntou, Como tens passado, e logo, Ouvi o teu recado e penso como tu, precisamos de conversar, espero não ter vindo em má ocasião, Que ideia, disse Tertuliano Máximo Afonso, peço é que me desculpes por te receber desta maneira, despenteado, com a barba crescida e o aspecto de quem acabou de sair da cama, Vi-te outras vezes assim e nunca achaste que fosse preciso pedir desculpa, O caso, hoje, é diferente, Diferente, em quê, Sabes bem o que quero dizer, nunca vim receber-te à porta neste arranjo, de pijama e roupão, Foi uma novidade, quando já há tão poucas entre nós. A entrada para a sala estava a três passos, a estupefacção não tardaria a manifestar-se, Que demónio é isto, que fazes com todos estes vídeos, mas Maria da Paz ainda se deteve para perguntar, Não me dás um beijo, Claro, foi a infeliz e embaraçada resposta de Tertuliano Máximo Afonso, ao mesmo tempo que adiantava os lábios para a beijar na face. O masculino recato, se o era, resultou inútil, a boca de Maria da Paz tinha ido ao encontro da sua, e agora sugava-a, espremia-a, devorava-a, ao mesmo tempo que o corpo dela se colava de alto a baixo ao dele, como se não houvesse roupas a separá-los. Foi Maria da Paz quem por fim se despegou para murmurar, ofegando, uma frase que não chegou a concluir, Mesmo que me arrependa do que acabei de fazer, mesmo que me envergonhe de o ter feito, Não digas tolices, contemporizou Tertuliano Máximo Afonso a tentar ganhar tempo, que ideias, arrependimento, vergonha, era o que nos faltava, envergonhar-se, arrepender-se uma pessoa de expressar o que sente, Sabes muito bem a que me refiro, não faças de conta que não compreendes, Entraste, beijámo-nos, foi tudo do mais normal, do mais natural, Não nos beijámos, beijei-te eu, Mas eu também te beijei a ti, Sim, não tiveste outro remédio, Estás a exagerar como de costume, a dramatizar, Tens razão, exagero, dramatizo, exagerei vindo a tua casa, dramatizei ao abraçar-me a um homem que deixou de gostar de mim, deveria era ir-me daqui neste mesmo instante, arrependida, sim, envergonhada, sim, apesar da caridade de dizeres que o caso não é para tanto. A possibilidade de que ela se fosse embora, ainda que obviamente remota, projectou um raio de esperançosa luz nos sinuosos desvãos da mente de Tertuliano Máximo Afonso, mas as palavras que lhe saíram da boca, alguém diria que escapadas à sua vontade, exprimiram um sentimento diferente, Realmente, não sei aonde foste buscar essa peregrina ideia de que não gosto de ti, Explicaste-te com bastante clareza a última vez que estivemos juntos, Nunca disse que não gostava de ti, nunca disse que não gosto de ti, Em questões de coração, que conheces tão pouco, até o mais obtuso entendedor percebe a metade que não chegou a ser dita. Imaginar que se escaparam à vontade de Tertuliano Máximo Afonso as palavras agora em análise, seria esquecer que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas, e que a função de algumas das suas linhas, parecendo que conduzem o interlocutor ao conhecimento do que está dentro, é espalhar orientações falsas, insinuar desvios que irão terminar em becos sem saída, distrair da matéria fundamental, ou, como no caso que nos ocupa, suavizar, antecipando-o, o choque que se aproxima. Ao afirmar que nunca tinha dito que não gostava de Maria da Paz, dando portanto a entender que sim senhor gostava dela, o que Tertuliano Máximo Afonso pretendia, com perdão da vulgaridade das imagens, era envolvê-la em algodão-em-rama, rodeá-la de almofadas amortecedoras, atá-la a si pela emoção amorosa quando fosse impossível continuar a retê-la do lado de fora da porta que dá para a sala. Que é o que está sucedendo agora. Maria da Paz acaba de dar os três passos que faltavam, entra, não quereria pensar no mavioso canto de rouxinol que lhe roçou de leve os ouvidos, mas não consegue pensar noutra coisa, estaria mesmo disposta a reconhecer, contrita, que a sua irónica alusão a bons e maus entendedores tinha sido não só impertinente, mas também injusta, e é já com um sorriso que se volta para Tertuliano Máximo Afonso, pronta a cair-lhe nos braços e decidida a esquecer agravos e queixas. Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso, que o arco de círculo descrito pelos olhos de Maria da Paz passasse, primeiro pelo televisor ligado, logo pelas cassetes que não tinham sido devolvidas aos seus lugares no chão, finalmente pela própria fileira delas, presença inexplicável, insólita, para qualquer pessoa que, como ela, íntima destes sítios, tivesse suficiente conhecimento dos gostos e hábitos do dono da casa. Que é isto, que fazem aqui todas estas cassetes, perguntou, É material para um trabalho em que tenho andado ocupado, respondeu Tertuliano Máximo Afonso desviando a vista, Se não estou enganada, o teu trabalho, desde que te conheço, consiste em ensinar História, disse Maria da Paz, e esta coisa, olhava com curiosidade o vídeo, chamada Paralelo do Terror, não me parece que tenha muito que ver com a tua especialidade, Não há nada que me obrigue a ocupar-me só de História durante toda a vida, Claro que não, mas é natural que me tenha sentido desconcertada vendo-te rodeado de vídeos, como se de repente te tivesse dado uma paixão pelo cinema, quando antes te interessava tão pouco, Já te disse que estou ocupado com um trabalho, um estudo sociológico, por assim dizer, Não passo de uma empregada vulgar, uma bancária, mas as poucas luzes do meu entendimento chegam-me para ver que não estás a ser sincero, Que não estou a ser sincero, exclamou indignado Tertuliano Máximo Afonso, que não estou a ser sincero, era só o que me faltava ouvir, Não vale a pena irritares-te, disse o que me pareceu, Sei que não sou a perfeição em homem, mas a falta de sinceridade não é um dos meus defeitos, tinhas a obrigação de me conhecer melhor, Peço desculpa, Muito bem, ficas desculpada, não se fala mais deste assunto. Isto disse, mas teria preferido continuar nele para não ter de entrar no outro que temia. Maria da Paz acomodou-se na cadeira em frente do televisor e disse, Vim para ter uma conversa contigo, os teus vídeos não me interessam. O canto do rouxinol perdera-se nas estratosféricas regiões do tecto, era já, como em tempos passados se costumava dizer, uma saudosa lembrança, e Tertuliano Máximo Afonso, deplorável figura, enfiado no roupão, de chinelos e com a barba por fazer, portanto em flagrante situação de inferioridade, tinha consciência de que uma conversa em tom acerbo, ainda que pela própria crispação das palavras pudesse convir ao que sabemos ser seu interesse final, isto é, romper a sua relação com Maria da Paz, seria difícil de conduzir e certamente muito mais difícil de rematar. Sentou-se pois no sofá, aconchegou as abas do roupão as pernas, e principiou, conciliador, A minha ideia, De que estás a falar, interrompeu Maria da Paz, de nós, ou dos vídeos, Falaremos de nós depois, agora quero explicar-te em que espécie de estudo estou metido, Se fazes questão, seja, respondeu Maria da Paz, dominando a impaciência. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o mais que pôde o silêncio que se seguiu, puxou da memória as palavras com que desorientara o vendedor da loja dos vídeos, ao mesmo tempo que experimentava uma estranha e contraditória impressão. Embora sabendo que vai mentir, pensa, no entanto, que essa mentira será como uma forma tergiversada da verdade, quer dizer, ainda que a explicação seja redondamente falsa, o simples facto de a repetir vai, de alguma maneira, torná-la verosímil, e cada vez mais verosímil se Tertuliano Máximo Afonso não se limitar a esta primeira prova. Enfim, sentindo-se já senhor da matéria, começou, O meu interesse por ver uns quantos filmes desta produtora, escolhida ao acaso, como poderás verificar são todos da mesma empresa cinematográfica, nasceu de uma ideia que me ocorreu há tempos, a de fazer um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, ou, para ser mais preciso, os sinais ideológicos que um determinado fabricante de filmes vai disseminando, imagem a imagem, entre os consumidores deles, E como foi que te nasceu esse repentino interesse, ou, como lhe chamaste, essa ideia, que tem isso que ver com o trabalho de um professor de História, perguntou Maria da Paz, a quem não passaria pela cabeça que tinha acabado de oferecer de mão beijada a resposta que Tertuliano Máximo Afonso, na hora de aperto dialéctico em que se achava, talvez não fosse capaz de encontrar por si mesmo, É muito simples, respondeu ele com uma expressão de alívio que poderia ser facilmente confundida com a virtuosa satisfação de qualquer bom professor ao rever-se a si mesmo no acto de transmitir o seu saber à classe, É muito simples, repetiu, tal como a História que escrevemos, estudamos ou leccionamos vai fazendo penetrar em cada linha, em cada palavra, e até em cada data, o que designei por sinais ideológicos, inerentes não só à interpretação dos factos, mas igualmente à linguagem por que os expressamos, isto sem esquecer os diversos tipos e graus de intencionalidade no uso que dessa mesma linguagem fazemos, assim também o cinema, modo de contar histórias que, por via de uma sua particular eficácia, actua sobre os próprios conteúdos da História, de alguma maneira os contaminando e deformando, assim também o cinema, repito, participa, com muito maior rapidez e não menor intencionalidade, na propagação generalizada de toda uma rede desses sinais ideológicos, em regra interessadamente orientados. Fez uma pausa e, com o meio sorriso indulgente de quem se desculpa pela aridez de uma exposição que se tinha esquecido de tomar em consideração a insuficiente capacidade compreensiva do auditório, acrescentou, Espero vir a ser mais claro quando passar estas reflexões ao papel. Apesar das suas mais do que justas reservas, Maria da Paz não pôde impedir-se de o olhar com certa admiração, afinal ele é um habilitado professor de História, um profissional idóneo com provas dadas de competência, presume-se que saiba do que fala mesmo quando lhe aconteça ter de abordar assuntos fora da sua directa especialidade, ao passo que ela não passa de uma s