para tanto. A possibilidade de que ela se fosse embora, ainda que obviamente remota, projectou um raio de esperançosa luz nos sinuosos desvãos da mente de Tertuliano Máximo Afonso, mas as palavras que lhe saíram da boca, alguém diria que escapadas à sua vontade, exprimiram um sentimento diferente, Realmente, não sei aonde foste buscar essa peregrina ideia de que não gosto de ti, Explicaste-te com bastante clareza a última vez que estivemos juntos, Nunca disse que não gostava de ti, nunca disse que não gosto de ti, Em questões de coração, que conheces tão pouco, até o mais obtuso entendedor percebe a metade que não chegou a ser dita. Imaginar que se escaparam à vontade de Tertuliano Máximo Afonso as palavras agora em análise, seria esquecer que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas, e que a função de algumas das suas linhas, parecendo que conduzem o interlocutor ao conhecimento do que está dentro, é espalhar orientações falsas, insinuar desvios que irão terminar em becos sem saída, distrair da matéria fundamental, ou, como no caso que nos ocupa, suavizar, antecipando-o, o choque que se aproxima. Ao afirmar que nunca tinha dito que não gostava de Maria da Paz, dando portanto a entender que sim senhor gostava dela, o que Tertuliano Máximo Afonso pretendia, com perdão da vulgaridade das imagens, era envolvê-la em algodão-em-rama, rodeá-la de almofadas amortecedoras, atá-la a si pela emoção amorosa quando fosse impossível continuar a retê-la do lado de fora da porta que dá para a sala. Que é o que está sucedendo agora. Maria da Paz acaba de dar os três passos que faltavam, entra, não quereria pensar no mavioso canto de rouxinol que lhe roçou de leve os ouvidos, mas não consegue pensar noutra coisa, estaria mesmo disposta a reconhecer, contrita, que a sua irónica alusão a bons e maus entendedores tinha sido não só impertinente, mas também injusta, e é já com um sorriso que se volta para Tertuliano Máximo Afonso, pronta a cair-lhe nos braços e decidida a esquecer agravos e queixas. Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso, que o arco de círculo descrito pelos olhos de Maria da Paz passasse, primeiro pelo televisor ligado, logo pelas cassetes que não tinham sido devolvidas aos seus lugares no chão, finalmente pela própria fileira delas, presença inexplicável, insólita, para qualquer pessoa que, como ela, íntima destes sítios, tivesse suficiente conhecimento dos gostos e hábitos do dono da casa. Que é isto, que fazem aqui todas estas cassetes, perguntou, É material para um trabalho em que tenho andado ocupado, respondeu Tertuliano Máximo Afonso desviando a vista, Se não estou enganada, o teu trabalho, desde que te conheço, consiste em ensinar História, disse Maria da Paz, e esta coisa, olhava com curiosidade o vídeo, chamada Paralelo do Terror, não me parece que tenha muito que ver com a tua especialidade, Não há nada que me obrigue a ocupar-me só de História durante toda a vida, Claro que não, mas é natural que me tenha sentido desconcertada vendo-te rodeado de vídeos, como se de repente te tivesse dado uma paixão pelo cinema, quando antes te interessava tão pouco, Já te disse que estou ocupado com um trabalho, um estudo sociológico, por assim dizer, Não passo de uma empregada vulgar, uma bancária, mas as poucas luzes do meu entendimento chegam-me para ver que não estás a ser sincero, Que não estou a ser sincero, exclamou indignado Tertuliano Máximo Afonso, que não estou a ser sincero, era só o que me faltava ouvir, Não vale a pena irritares-te, disse o que me pareceu, Sei que não sou a perfeição em homem, mas a falta de sinceridade não é um dos meus defeitos, tinhas a obrigação de me conhecer melhor, Peço desculpa, Muito bem, ficas desculpada, não se fala mais deste assunto. Isto disse, mas teria preferido continuar nele para não ter de entrar no outro que temia. Maria da Paz acomodou-se na cadeira em frente do televisor e disse, Vim para ter uma conversa contigo, os teus vídeos não me interessam. O canto do rouxinol perdera-se nas estratosféricas regiões do tecto, era já, como em tempos passados se costumava dizer, uma saudosa lembrança, e Tertuliano Máximo Afonso, deplorável figura, enfiado no roupão, de chinelos e com a barba por fazer, portanto em flagrante situação de inferioridade, tinha consciência de que uma conversa em tom acerbo, ainda que pela própria crispação das palavras pudesse convir ao que sabemos ser seu interesse final, isto é, romper a sua relação com Maria da Paz, seria difícil de conduzir e certamente muito mais difícil de rematar. Sentou-se pois no sofá, aconchegou as abas do roupão as pernas, e principiou, conciliador, A minha ideia, De que estás a falar, interrompeu Maria da Paz, de nós, ou dos vídeos, Falaremos de nós depois, agora quero explicar-te em que espécie de estudo estou metido, Se fazes questão, seja, respondeu Maria da Paz, dominando a impaciência. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o mais que pôde o silêncio que se seguiu, puxou da memória as palavras com que desorientara o vendedor da loja dos vídeos, ao mesmo tempo que experimentava uma estranha e contraditória impressão. Embora sabendo que vai mentir, pensa, no entanto, que essa mentira será como uma forma tergiversada da verdade, quer dizer, ainda que a explicação seja redondamente falsa, o simples facto de a repetir vai, de alguma maneira, torná-la verosímil, e cada vez mais verosímil se Tertuliano Máximo Afonso não se limitar a esta primeira prova. Enfim, sentindo-se já senhor da matéria, começou, O meu interesse por ver uns quantos filmes desta produtora, escolhida ao acaso, como poderás verificar são todos da mesma empresa cinematográfica, nasceu de uma ideia que me ocorreu há tempos, a de fazer um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, ou, para ser mais preciso, os sinais ideológicos que um determinado fabricante de filmes vai disseminando, imagem a imagem, entre os consumidores deles, E como foi que te nasceu esse repentino interesse, ou, como lhe chamaste, essa ideia, que tem isso que ver com o trabalho de um professor de História, perguntou Maria da Paz, a quem não passaria pela cabeça que tinha acabado de oferecer de mão beijada a resposta que Tertuliano Máximo Afonso, na hora de aperto dialéctico em que se achava, talvez não fosse capaz de encontrar por si mesmo, É muito simples, respondeu ele com uma expressão de alívio que poderia ser facilmente confundida com a virtuosa satisfação de qualquer bom professor ao rever-se a si mesmo no acto de transmitir o seu saber à classe, É muito simples, repetiu, tal como a História que escrevemos, estudamos ou leccionamos vai fazendo penetrar em cada linha, em cada palavra, e até em cada data, o que designei por sinais ideológicos, inerentes não só à interpretação dos factos, mas igualmente à linguagem por que os expressamos, isto sem esquecer os diversos tipos e graus de intencionalidade no uso que dessa mesma linguagem fazemos, assim também o cinema, modo de contar histórias que, por via de uma sua particular eficácia, actua sobre os próprios conteúdos da História, de alguma maneira os contaminando e deformando, assim também o cinema, repito, participa, com muito maior rapidez e não menor intencionalidade, na propagação generalizada de toda uma rede desses sinais ideológicos, em regra interessadamente orientados. Fez uma pausa e, com o meio sorriso indulgente de quem se desculpa pela aridez de uma exposição que se tinha esquecido de tomar em consideração a insuficiente capacidade compreensiva do auditório, acrescentou, Espero vir a ser mais claro quando passar estas reflexões ao papel. Apesar das suas mais do que justas reservas, Maria da Paz não pôde impedir-se de o olhar com certa admiração, afinal ele é um habilitado professor de História, um profissional idóneo com provas dadas de competência, presume-se que saiba do que fala mesmo quando lhe aconteça ter de abordar assuntos fora da sua directa especialidade, ao passo que ela não passa de uma simples empregada bancária de nível médio, sem preparação para captar de maneira cabal quaisquer sinais ideológicos que não tenham começado, ao menos, por explicar como se chamam e o que pretendem. No entanto, ao longo de toda a fala de Tertuliano Máximo Afonso, apercebera-se de uma espécie de roce incómodo na sua voz, uma desarmonia que lhe distorcia em certos momentos a elocução, assim como o característico vibrato de uma vasilha rachada quando se lhe bate com os nós dos dedos, que acuda alguém a ajudar Maria da Paz, a informá-la de que justamente com aquele som é que as palavras nos saem da boca quando a verdade que parecemos estar a dizer é a mentira que escondemos. Pelos vistos, sim, pelos vistos vieram avisá-la, ou com as meias palavras do costume lho deram a entender, não há outra explicação para o facto de subitamente se ter apagado a admiração nos olhos dela e de no seu lugar ter surgido uma expressão dolorida, um ar de compassiva lástima, falta saber se de si própria ou do homem que se encontra sentado na sua frente. Tertuliano Máximo Afonso compreendeu que o discurso fora ofensivo, além de inútil, que são muitas as maneiras de faltar ao respeito que se deve à inteligência e à sensibilidade dos outros e que esta havia sido uma das mais grosseiras. Maria da Paz não veio aqui para que lhe dessem explicações acerca de procedimentos sem pés nem cabeça, seja qual for a ponta por onde se lhes pegue, veio para saber quanto terá de pagar para que lhe seja devolvida, se tal é possível ainda, a pequena felicidade em que imaginou haver vivido nos últimos seis meses. Mas também é certo que Tertuliano Máximo Afonso não lhe irá dizer, como a coisa mais natural deste mundo, Imagina que descobri um tipo que é meu exacto duplicado e que esse tipo aparece como actor em uns quantos destes filmes, em caso algum lho diria, e menos ainda, se é permitido juntar estas últimas palavras às imediatamente anteriores, quando a frase poderia ser interpretada por Maria da Paz como mais uma manobra de diversão, ela que veio aqui só para saber quanto terá de pagar para que lhe seja restituída a pequena felicidade em que imaginava haver vivido nos últimos seis meses, que nos seja perdoada esta repetição em nome do direito que a qualquer pessoa assiste de dizer uma e outra vez onde lhe dói. Fez-se um silêncio difícil, Maria da Paz deveria tomar agora a palavra, desafiá-lo Se já acabaste o teu estúpido discurso sobre essa patranha dos sinais ideológicos, falemos de nós, mas o medo deu-lhe de repente um nó na garganta, o pavor de que a mais simples palavra pudesse vir estilhaçar o cristal da sua frágil esperança, por isso se cala, por isso espera que Tertuliano Máximo Afonso principie, e Tertuliano Máximo Afonso está de olhos baixos, parece absorto na contemplação das suas chinelas de quarto e da pálida fímbria de pele que assoma onde terminam as perneiras das calças do pijama, a verdade é outra e bem diferente, Tertuliano Máximo Afonso não se atreve a levantar os olhos com medo de que eles se desviem para os papéis que estão em cima da secretária, a lista dos filmes e dos nomes dos actores, com as suas cruzinhas, os seus riscos, os seus pontos de interrogação, tudo tão apartado do malfadado discurso sobre os sinais ideológicos que neste momento lhe parece ter sido obra de outra pessoa. Ao contrário do que geralmente se pensa, as palavras auxiliadoras que abrem caminho aos grandes e dramáticos diálogos são em geral modestas, comuns, corriqueiras, ninguém diria que perguntar, Queres um café, poderia servir de introdução a um amargo debate sobre sentimentos que se perderam ou sobre a doçura de uma reconciliação a que não se sabe como chegar. Maria da Paz deveria ter respondido com a merecida secura, Não vim cá para tomar café, mas, olhando para dentro de si, viu que não era tal, viu que realmente tinha vindo para tomar um café, que a sua própria felicidade, imagine-se, dependeria desse café. Numa voz que só queria mostrar cansada resignação, mas que o nervosismo fazia tremer, disse, Pois sim, e acrescentou, Eu mesma o preparo. Levantou-se da cadeira, e não é que se tenha detido quando ia a passar ao lado de Tertuliano Máximo Afonso, como conseguiremos nós explicar o que se passou, juntamos palavras, palavras e palavras, as tais de que já falámos noutro sítio, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e, por mais que intentemos, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido descrever, como se um sentimento fosse assim como uma paisagem com montanhas ao longe e árvores ao pé, mas o certo certo é que o espírito de Mana da Paz suspendeu subtilmente o movimento rectilíneo do corpo, à espera sabe-se lá de quê, talvez de que Tertuliano Máximo Afonso se levantasse para a abraçar, ou lhe pegasse suavemente na mão abandonada, e assim foi que sucedeu, primeiro a mão que reteve a mão, depois o abraço que não ousou ir além de uma proximidade discreta, ela não lhe ofereceu a boca, ele não a procurou, há ocasiões em que é mil vezes preferível fazer de menos que fazer de mais, entrega-se o assunto ao governamento da sensibilidade, ela, melhor que a inteligência racional, saberá proceder segundo o que mais convenha à perfeição plena dos instantes seguintes, se para tanto nasceram. Desprenderam-se devagar, ela sorriu um pouco, ele sorriu um pouco, mas nós sabemos que Tertuliano Máximo Afonso tem uma outra ideia na cabeça, que é retirar das vistas de Maria da Paz, o mais depressa possível, os papéis reveladores, por isso não se estranha que quase a tenha empurrado para a cozinha, Vai, vai fazer o café enquanto eu dou uma arrumação a este caos, e então aconteceu o inaudito, como se não desse importância às palavras que lhe saíam da boca ou como se não as entendesse completamente, ela murmurou, O caos é uma ordem por decifrar, Quê, que foi que disseste, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, que já tinha a lista dos nomes a salvo, Que o caos é uma ordem por decifrar, Onde foi que leste isso, a quem o ouviste, Ocorreu-me neste momento, não creio que o tivesse lido alguma vez, e, ouvi-lo a alguém, isso tenho a certeza de que não, Mas como foi que te saiu uma frase dessas, Que tem de especial a frase, Tem muito, Não sei, talvez fosse porque o meu trabalho no banco se faz com algarismos, e os algarismos, quando se apresentam misturados, confundidos, podem aparecer como elementos caóticos a quem os não conheça, no entanto existe neles, latente, uma ordem, na verdade creio que os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontrá-la, Aqui não há algarismos, Mas há um caos, foste tu mesmo que o disseste, Uns quantos vídeos desarrumados, nada mais, E também as imagens que lá estão dentro, pegadas umas às outras de maneira a contarem uma história, isto é, uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar, Os sinais ideológicos, disse Tertuliano Máximo Afonso, pouco seguro de que a referência viesse a propósito, Sim, os sinais ideológicos, se assim o queres, Dá a impressão de que não acreditas em mim, Não importa se acredito em ti ou não, tu lá saberás o que andas a procurar, O que me custa a perceber é como foi que te ocorreu esse achado, a ideia de uma ordem contida no caos e que pode ser decifrada no interior dele, Queres dizer que em todos estes meses, desde que a nossa relação principiou, nunca me consideraste suficientemente inteligente para ter ideias, Ora essa, não se trata disso, tu és uma pessoa bastante inteligente, no entanto, No entanto, não precisas terminar, menos inteligente do que tu, e, claro está, falta-me a boa preparaçãozinha básica, sou uma pobre empregada bancária, Deixa-te de ironias, nunca pensei que fosses menos inteligente do que eu, o que quero dizer é que essa tua ideia é absolutamente surpreendente, Inesperada em mim, De certo modo, sim, O historiador és tu, mas julgo saber que os n