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ossos antepassados só depois de terem tido as ideias que os fizeram inteligentes é que começaram a ser suficientemente inteligentes para terem ideias, Agora saíste-me paradoxal, eis-me caindo de assombro em assombro, disse Tertuliano Máximo Afonso, Antes que acabes por te transformar em estátua de sal, vou fazer o café, sorriu-se Maria da Paz, e enquanto seguia pelo corredor que a levava à cozinha, foi dizendo, Arruma o caos, Máximo, arruma o caos. A lista dos nomes foi rapidamente metida numa gaveta e fechada à chave, as cassetes soltas voltaram às caixas respectivas, O Paralelo do Terror, que havia ficado no leitor de vídeos, seguiu o mesmo caminho, nunca tinha sido tão fácil ordenar um caos desde que o mundo é mundo. Tem-nos, porém, ensinado a experiência que sempre algumas pontas ficam por atar, sempre algum leite se entorna pelo caminho, sempre algum alinhamento faz barriga para dentro ou para fora, o que, aplicado à situação em análise, significa que Tertuliano Máximo Afonso está consciente de que já leva a sua guerra perdida antes de a ter começado. No ponto a que as coisas chegaram, por causa da superior estupidez do seu discurso sobre os sinais ideológicos, e agora com o golpe de mestre que foi aquela frase sobre a existência de uma ordem no caos, uma ordem decifrável, é impossível dizer à mulher que está lá dentro a fazer o café, A nossa relação chegou ao fim, poderemos continuar como amigos no futuro, se quiseres, mas nada mais do que isso, ou então, Custa-me muito dar-te este desgosto, mas, pesando os meus sentimentos para contigo, já não encontro o entusiasmo do princípio, ou ainda, Foi bonito, foi, mas acabou-se, minha rica, a partir de hoje tu vais à tua vida e eu vou à minha. Tertuliano Máximo Afonso dá voltas à conversa a tentar descobrir em que foi que a sua táctica fracassou, se é que tinha de facto alguma, se é que não se deixou apenas dirigir pelas mudanças de humor de Maria da Paz, como se se tratasse de súbitos focos de incêndio que era necessário ir apagando à medida que surgiam, sem entretanto se dar conta de que o fogo continuava a lavrar-lhe debaixo dos pés. Ela sempre esteve mais segura do que eu, pensou, e neste momento viu distintamente as causas da sua derrota, esta caricata figura que fazia despenteado e de barba crescida, com os chinelos de quarto acalcanhados, as riscas das calças do pijama a aparecerem como franjas murchas, o roupão ponta abaixo ponta acima, há decisões na vida que para Tomá-las é aconselhável estar vestido para sair, já de gravata posta e sapatos engraxados, a isso se chama a maneira nobre, exclamar em tom ofendido, Se a minha presença a incomoda, senhora, não preciso que mo diga, e acto contínuo sai-se pela porta fora, sem olhar para trás, olhar para trás é um risco tremendo, pode a pessoa transformar-se em estátua de sal e ficar para ali à mercê da primeira chuva. Mas Tertuliano Máximo Afonso tem agora outro problema para resolver, e esse requer muito tacto, muita diplomacia, uma habilidade de manobra que até este momento lhe tem faltado, uma vez que, como vimos, a iniciativa sempre esteve nas mãos de Maria da Paz, até mesmo quando à chegada se lançou aos braços do amante como uma mulher a ponto de afogar-se. Foi precisamente isto o que Tertuliano Máximo Afonso pensou, dividido entre a admiração, a contrariedade e uma espécie de perigosa ternura, Parecia que estava a afogar-se e afinal tinha os pés bem assentes no chão. Voltando ao problema, o que Tertuliano Máximo Afonso não poderá permitir-se é deixar Maria da Paz sozinha na sala. Imaginemos que ela aparece com o café, aliás não se compreende por que é que está a demorar-se tanto, um café faz-se em três minutos, já estamos longe do tempo em que era preciso coá-lo, imaginemos que, depois de o terem tomado em santa harmonia, ela lhe diz com segundas intenções ou mesmo sem primeiras, Vai-te arranjar enquanto eu ponho aqui um destes vídeos, a ver se descubro algum dos teus famosos sinais ideológicos, imaginemos que uma sorte maldita quereria que aparecesse na figura de um porteiro de buate ou de um caixa de banco o duplicado de Tertuliano Máximo Afonso, imaginemos o grito que daria Maria da Paz, Máximo, Máximo, vem cá, corre, vem ver um actor igualzinho a ti, a um auxiliar de enfermagem, realmente, poderá chamar-se-lhe tudo, bom samaritano, providência divina, irmão de caridade, sinal ideológico é que não. Nada disto, porém, irá suceder, Maria da Paz trará o café, já se lhe ouvem os passos no corredor, a bandeja com as duas chávenas e o açucareiro, umas bolachas para confortar o estômago, e tudo se passará como Tertuliano Máximo Afonso nunca teria ousado sonhar, beberam o cafezinho calados, mas era um silêncio de companhia, não hostil, o perfeito bem-estar doméstico que para Tertuliano Máximo Afonso se converteu em glória bendita quando a ouviu dizer, Enquanto tu te arranjas, eu arrumo o caos da cozinha, depois deixo-te em paz com o teu estudo, Ora, ora, o estudo, não falemos mais do estudo, disse Tertuliano Máximo Afonso para retirar esta inoportuna pedra do meio do caminho, mas cônscio de que tinha acabado de pôr outra no lugar dela, mais difícil de remover, como não tardará a verificar-se. Fosse como fosse, Tertuliano Máximo Afonso não queria deixar nada entregue ao acaso, barbeou-se num ai, lavou-se num ámen, vestiu-se num suspiro, e tão rapidamente fez tudo isto que quando entrou na cozinha ainda foi muito a tempo de secar a louça. Viveu-se então nesta casa o quadro tão enternecedoramente familiar que é um homem enxugando os pratos e a mulher arrumando-os, poderia ter sido ao contrário, mas o destino ou o azar, chamem-lhe o que quiserem, decidiu que fosse assim para que tivesse de acontecer o que aconteceu num momento em que Maria da Paz levantava altos os braços para acomodar uma travessa numa prateleira, oferecendo sem dar por isso, ou sabendo-o muito bem, a cintura delgada às mãos de um homem que não foi capaz de resistir à tentação. Tertuliano Máximo Afonso deixou a um lado o pano da louça e, enquanto a chávena, que se escapara, se estilhaçava no chão, abraçou-se a Maria da Paz, apertou-a furiosamente contra si, o espectador mais objectivo e imparcial não teria dúvidas em admitir que o chamado entusiasmo do princípio nunca poderia ter sido maior que este. A questão, a dolorosa e sempiterna questão, é saber quanto tempo irá isto durar, se será realmente o reacender de um afecto que algumas vezes terá sido confundido com amor, com paixão, até, ou se só nos encontramos, e mais uma vez, perante o arquiconhecido fenómeno da vela que ao extinguir-se levanta uma luz mais alta e insuportavelmente brilhante, insuportável só por ser a derradeira, não porque a rejeitassem os nossos olhos, que bem quereriam continuar absortos nela. Diz-se e repete-se que enquanto o pau vai e vem folgam as costas, ora, as costas, propriamente ditas, são o que menos está folgando neste momento, diríamos até, se aceitássemos ser grosseiros, que muito mais estará folgando ele, mas o certo, embora não se encontrem aqui grandes razões para lirismos exaltados, é que a alegria, o prazer, o gozo destes dois, atirados sobre a cama, um sobre o outro, literalmente enganchados de pernas e braços, nos levaria a tirar respeitosamente o chapéu e a desejar que lhes seja assim para sempre, estes, ou cada um deles com quem a sorte os vier a emparceirar no futuro, se a vela que está agora a arder não durar mais que o breve e último espasmo, aquele que no mesmo instante em que nos derrete nos costuma endurecer e apartar. Os corpos, os pensamentos. Tertuliano Máximo Afonso pensa nas contradições da vida, no facto de que para ganhar uma batalha às vezes possa ser necessário perdê-la, veja-se este caso de agora, ganhar teria sido conduzir a conversa no sentido do ansiado, total e definitivo rompimento, e essa batalha, pelo menos para os tempos mais próximos, teve de dá-la por perdida, mas ganhar seria conseguir desviar dos vídeos e do imaginário estudo sobre os sinais ideológicos a atenção de Maria da Paz, e essa batalha, por agora, ganhou-a. Diz a sabedoria popular que nunca se pode ter tudo, e não lhe falta razão, o balanço das vidas humanas joga constantemente sobre o ganho e o perdido, o problema está na impossibilidade, igualmente humana, de nos pormos de acordo sobre os méritos relativos do que se deveria perder e do que se deveria ganhar, por isso o mundo está no estado em que o vemos. Maria da Paz também pensa, mas, sendo mulher, portanto mais próxima das coisas elementares e essenciais, recorda a angústia que trazia na alma quando entrou nesta casa, a sua certeza de que se iria daqui vencida e humilhada, e afinal acontecera o que em nenhum momento lhe tinha passado pela fantasia, estar na cama com o homem a quem amava, o que mostra quanto tem ainda de aprender esta mulher se ignora que muitas dramáticas discussões dos casais é ali que acabam e se resolvem, não porque os exercícios do sexo sejam a panaceia de todos os males físicos e morais, embora não falte quem assim pense, mas porque, esgotadas as forças dos corpos, os espíritos aproveitam para levantar timidamente o dedo e pedir autorização para entrar, perguntam se se lhes permite fazer ouvir as suas razões, e se eles, corpos, estão preparados para lhes dar atenção. É então quando o homem diz à mulher, ou a mulher ao homem, Que loucos somos, que estúpidos temos sido, e um deles, misericordiosamente, cala a resposta justa que seria, Tu, talvez, eu só tenho estado à tua espera. Ainda que pareça impossível, é este silêncio cheio de palavras não ditas que salva o que se julgava perdido, como uma jangada que avança do nevoeiro a pedir os seus marinheiros, com os seus remos e a sua bússola, a sua vela e a sua arca do pão. Propôs Tertuliano Máximo Afonso, Podíamos almoçar os dois, não sei é se estás disponível, Naturalmente que sim, sempre estive, Tens lá a tua mãe, queria dizer, Explique-lhe que me apetecia dar um passeio sozinha, que talvez não fosse comer a casa, Uma desculpa para vires aqui, Não precisamente, foi só depois de ter saído de casa que decidi vir falar contigo, Já está falado, Queres dizer, perguntou Maria da Paz, que tudo entre nós continuará como antes, Claro. Esperar-se-ia um pouco mais de eloquência de Tertuliano Máximo Afonso, mas ele sempre poderá defender-se, Não tive tempo, ela agarrou-se a mim aos beijos, e logo eu a ela, daí a nada estávamos outra vez enroscados, foi um que-deus-te-ajude, E ajudou, perguntou a voz desconhecida que há tanto tempo não ouvíamos, Não sei se foi ele, mas lá que valeu a pena, valeu, E agora, Agora, vamos almoçar, E não falam mais do assunto, Qual assunto, O vosso, Já está falado, Não está, Está, Então acabaram-se as nuvens, Acabaram, Quer dizer que já não pensa em rompimentos, Isso é outra coisa, deixemos para o dia de amanhã o que ao dia de amanhã pertence, É uma boa filosofia, A melhor, Desde que se saiba o que é que pertence a esse dia de amanhã, Enquanto lá não chegarmos não se pode saber, Tem resposta para tudo, Também você a teria se se encontrasse na necessidade de mentir tanto quanto eu tenho mentido nos últimos dias, Então, vão almoçar, Pois vamos, Bom proveito, e depois, Depois levo-a a casa e volto, Para ver os vídeos, Sim, para ver os vídeos, Bom proveito, despediu-se a voz desconhecida. Maria da Paz já se tinha levantado, ouvia-se correr a água do duche, em tempos idos sempre se lavavam juntos depois de terem feito amor, mas desta vez nem ela se lembrou nem ele se fez lembrado, ou lembraram-se ambos, mas preferiram calar, há momentos em que o melhor é contentar-se uma pessoa com o que já tem, não seja que se perca tudo.