O mais certo, portanto, é que Daniel Santa-Clara, se um tal encontro vier a dar-se e se uma tal questão for nele levantada, não preste às teses afluenciais de Maria da Paz mais que uma atenção distraída e sugira transferir a conversa a temas menos áridos, que nos seja desculpada uma tão flagrante contradição, considerando que era de água que falávamos e dos rios que a levam.
Tertuliano Máximo Afonso, depois de colocar na sua frente uma das cartas que Maria da Paz lhe havia escrito há tempos, e após umas quantas experiências para soltar e adestrar a mão, floreteou o melhor que pôde a sóbria, mas elegante assinatura que a rematava. Fê-lo para respeitar o infantil e algo melancólico desejo que ela havia formulado, e não por acreditar que uma maior perfeição na falsificação viesse ajuntar credibilidade a um documento que, como já foi devidamente antecipado, dentro de poucos dias terá desaparecido deste mundo, desfeito em cinzas. Dá vontade de dizer, Tanto trabalho para nada. A carta já se encontra dentro do sobrescrito, o selo está no seu sítio, não falta mais agora que descer à rua e enfiá-la para dentro do marco postal da esquina. Sendo domingo este dia, a furgoneta dos correios não passará a recolher a correspondência, mas Tertuliano Máximo Afonso anseia por ver-se livre da carta o mais depressa possível. Enquanto ela aqui estiver, esta é a sua vivíssima impressão, o tempo manter-se-á parado como um palco deserto. E a mesma impaciência nervosa lhe está provocando a fileira de cassetes no chão. Quer limpar o terreno, não deixar rastos, o primeiro acto acabou, é hora de retirar os adereços de cena. Acabaram-se os filmes de Damel Santa-Clara, acabou-se a ansiedade, Será que entra neste, Será que não entra, Terá bigode, Trará a risca ao meio, acabaram-se as cruzinhas diante dos nomes, acabou-se o quebra-cabeças. Foi neste momento que lhe saltou à memória a chamada que tinha feito ao primeiro dos Santa-Clara da lista telefónica, aquela casa de onde ninguém respondera. Faço uma nova tentativa, perguntou-se. Se a fizesse, se de lá lhe respondessem, se lhe dissessem que Daniel Santa-Clara morava justamente ali, a carta que tanta laboração mental lhe havia exigido tomava-se desnecessária, dispensável, podia rasgá-la e atirá-la para o cesto dos papéis, tão inútil como os rascunhos falhados que lhe tinham preparado o caminho para a redacção final. Compreendeu que estava a precisar de uma pausa, um intervalo de descanso, nem que fosse uma semana ou duas, o tempo de chegar a resposta da produtora, um período em que fizesse de conta que nunca tinha visto Quem Porfia Mata Caça nem o empregado da recepção do hotel, sabendo no entanto que esse falso sossego, essa aparência de tranquilidade teriam um limite, um prazo à vista, e que o pano, chegando a hora, inexoravelmente abriria para o segundo acto. Mas compreendeu também que se não fizesse uma nova ligação ficaria daí para diante atado à obsessão de que se portara cobardemente numa contenda para a qual ninguém o havia desafiado e em que, depois de a ter provocado, entrara por sua única e exclusiva vontade. Andar à procura de um homem chamado Daniel Santa-Clara que não podia imaginar que estava a ser procurado, eis a absurda situação que Tertuliano Máximo Afonso tinha criado, bem mais adequada aos enredos de uma ficção policial sem criminoso conhecido que justificável na vida até aqui sem sobressaltos de um professor de História. Posto entre a espada e a parede, fez então um acordo consigo mesmo, Ligo mais uma vez, se me atenderem e disserem que ele mora lá, atiro fora a carta e aguento-me, logo verei se falo ou não falo, mas, se não me responderem, a carta segue ao seu destino e nunca mais voltarei a ligar, suceda o que suceder. A sensação de fome que tinha sentido até aí fora substituída por uma espécie de palpitação nervosa na boca do estômago, mas a decisão estava tomada, não faria marcha atrás. O número foi marcado, a campainha tocou lá longe, o suor começou a descer-lhe lentamente pela cara abaixo, a campainha tocava e tocava, era já evidente que não havia ninguém na casa, mas Tertuliano Máximo Afonso desafiava a sorte, oferecia ao adversário uma última oportunidade não desligando, até que aqueles toques se tornaram em estridente sinal de vitória e o telefone chamado se calou por si mesmo.