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muito bem lhe apetece e varia a espessura das fatias do queijo conforme os caprichos da ocasião e as preferências estabelecidas. Quando entrou na sala dos professores, viu que ainda havia jornais disponíveis no escaparate, mas para lá chegar teria de passar por uma mesa onde, diante de chávenas de café e copos de água, três colegas conversavam. Mal pareceria seguir adiante, tanto mais que um deles era o seu amigo professor de Matemática, a quem, em compreensão e paciência, tanto estava a dever. Os outros eram uma idosa professora de Literatura e um jovem professor de Ciências Naturais com quem nunca havia criado relações de proximidade afectiva. Deu os bons-dias, perguntou se podia fazer-lhes companhia e, sem esperar resposta, puxou uma cadeira e sentou-se. A uma pessoa não informada dos costumes do lugar poderia parecer um tal procedimento bastante convizinho da má educação, mas os protocolos de relação na sala de professores assim se tinham organizado, de modo por assim dizer natural, não haviam sido passados a escrito, mas assentavam em sólidos alicerces de consenso, uma vez que não entrando na cabeça de ninguém responder negativamente à pergunta, melhor era saltar logo o coro, de concordâncias, umas sinceras, outras não tanto, e dar a coisa por feita. O único ponto delicado, esse, sim, capaz de gerar tensão entre quem já estava e quem acabou de chegar, residia na possibilidade de que o assunto em debate fosse de natureza confidencial, mas isso mesmo havia sido solucionado pelo recurso tácito a outra pergunta, esta retórica por excelência, Interrompo, para a qual só era socialmente admissível uma resposta, De modo nenhum, junte-se a nós. Dizer ao recém-chegado, por exemplo, ainda que com as melhores maneiras, Interrompe, sim senhor, vá sentar-se noutro sítio, causaria uma comoção tal que a rede intra-relacional do grupo seria gravemente abalada e posta em causa. Tertuliano Máximo Afonso voltou com o café que tinha ido buscar, instalou-se e perguntou, Que novidades há, Refere-se às de fora ou às de dentro, perguntou por seu turno o professor de Matemática, As de dentro é cedo para sabê-las, referia-me às de fora, ainda não li os jornais, As guerras que havia ontem continuam hoje, disse a professora de Literatura, Sem esquecer a probabilidade altíssima ou mesmo a certeza de que outra está pronta para começar, acrescentou o professor de Ciências Naturais como se estivessem combinados, E você, como foi o seu fim-de-semana, quis saber o professor de Matemática, Tranquilo, em paz, passei quase todo o tempo a ler um livro de que creio já lhe ter falado, um sobre as civilizações mesopotâmicas, o capítulo que trata dos amorreus é interessantíssimo, Pois eu fui ao cinema com a minha mulher, Ah, fez Tertuliano Máximo Afonso desviando os olhos, Aqui o nosso colega é pouco apreciador de cinema, aparteou o de Matemática para os outros, Nunca afirmei redondamente que não gosto, o que disse e repito é que o cinema não faz parte dos meus afectos culturais, prefiro os livros, Meu caro, não vale a pena enxofrar-se, o assunto não tem importância, sabe bem que foi com a melhor das intenções que lhe sugeri que visse aquele filme, Que significa exactamente enxofrar-se, perguntou a professora de Literatura, tanto por curiosidade como para deitar água na fervura, Enxofrar-se, respondeu o de Matemática, significa irritar-se, zangar-se, ou, com mais precisão, arrufar-se, E por que é arrufar-se, em sua opinião, mais preciso que zangar-se ou irritar-se, perguntou o professor de Ciências Naturais, Não será mais que uma interpretação pessoal que tem que ver com recordações da infância, quando a minha mãe me repreendia ou castigava por qualquer tropelia eu fechava a cara e recusava-me a falar, mantinha um silêncio total que podia durar muitas horas, então ela dizia que eu estava arrufado, Ou enxofrado, Exactamente, Em minha casa, quando eu andava por essas idades, disse a professora de Literatura, a metáfora para os amuos infantis era diferente, Diferente, em quê, Digamos que asinina, Explique-nos lá isso, Amarrar o burro, era o que se dizia, e escusam de ir procurar a expressão nos dicionários porque não a encontram, suponho que fosse exclusiva da família. Todos riram, com excepção de Tertuliano Máximo Afonso, que deixou aparecer um sorriso meio contrariado para corrigir, Exclusiva não creio que o fosse assim tanto, porque em minha casa também se usava. Houve novos risos, a paz estava feita. A professora de Literatura e o professor de Ciências Naturais levantaram-se, disseram logo nos vemos como despedida, provavelmente seriam as suas aulas mais longe, talvez no andar de cima, estes que ficaram sentados dispõem ainda de alguns minutos para o que faltar dizer, De uma pessoa que declarou ter estado durante dois dias entregue à serenidade de uma leitura histórica, observou o colega de Matemática, esperaria eu tudo, menos essa cara atormentada, É impressão sua, não tenho nada que me atormente, devo é ter cara de quem dormiu pouco, Você poderá dar-me as razões que quiser, mas a verdade é que desde que viu aquele filme não parece o mesmo, Que quer dizer com isso de que não pareço o mesmo, perguntou Tertuliano Máximo Afonso num tom inesperado de alarme, Nada senão o que disse, que o noto mudado, Sou a mesma pessoa, Não duvido, É verdade que ando algo apreensivo por causa de uns assuntos de ordem sentimental que ultimamente se me complicaram, são coisas que podem suceder a qualquer, mas isso não significa que me tenha tomado em outra pessoa, Nem eu o disse, não tenho nenhuma dúvida de que continua a chamar-se Tertuliano Máximo Afonso e é professor de História nesta escola, Então não percebo por que é que insiste em dizer que não pareço o mesmo, Desde que viu o filme, Não falemos do filme, já conhece a minha opinião sobre ele, De acordo, Sou a mesma pessoa, Claro que sim, Deveria lembrar-se que tenho andado com uma depressão, Ou marasmo, que era o outro nome que você lhe dava, Exactamente, E que isso merece respeito, Respeito tem-no todo de mim, bem o sabe, mas não era dele que falávamos, Sou a mesma pessoa, Agora é você quem insiste, É certo, ainda há poucos dias o disse, que estou a passar por um período de forte tensão psicológica, e portanto é natural que ela me venha à cara e se note nos meus modos, Claro, Mas isso não quer dizer que tenha mudado moral e fisicamente ao ponto de me parecer a outra pessoa, Eu limitei-me a dizer que você não parecia o mesmo, não que se parecesse a outra pessoa, A diferença não é grande, A nossa colega de Literatura diria que é, pelo contrário, enorme, e ela entende dessas coisas, creio que em subtilezas e matizes a literatura é quase como a matemática, Já eu, pobre de mim, pertenço à área da História, onde os matizes e as subtilezas não existem, Existiriam se a História pudesse ser, digamos assim, o retrato da vida, Estou a estranhá-lo, não é próprio de si ser tão convencionalmente retórico, Tem toda a razão, em tal caso a História não seria a vida, apenas um dos possíveis retratos dela, parecidos, sim, mas nunca iguais. Tertuliano Máximo Afonso desviou novamente os olhos, logo, com um difícil esforço de vontade, voltou a fixá-los no colega, como para averiguar o que haveria escondido por trás da serenidade aparente do seu rosto. O de Matemática sustentou o olhar sem que parecesse dar-lhe especial atenção, depois, com um sorriso em que havia tanto de ironia simpática como de franca benevolência, disse, Talvez um dia me disponha a ver outra vez a tal comédia, pode ser que consiga descobrir o que o faz andar transtornado, supondo que é lá que se encontre a origem do mal. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu da cabeça aos pés, mas, no meio da confusão, no meio do pânico, logrou dar uma resposta plausível, Não se canse, o que me traz transtornado, para usar a sua palavra, é uma ligação de que não sei como sair, se alguma vez, na sua vida, se encontrou em situação semelhante, sabe o que se sente, e agora tenho de ir dar a aula, já estou atrasado, Se não vê inconveniente, e ainda que na história do sítio haja pelo menos um perigoso caso antecedente, acompanho-o até à esquina do corredor, disse o de Matemática, ficando porém solenemente prometido que não repetirei aquele imprudente gesto de lhe pôr a mão no ombro, Assim são as coisas, hoje até podia suceder que não me importasse, Mas eu é que não quero correr riscos, você tem todo o aspecto de estar com as pilhas carregadas até à rolha. Ambos riram, sem qualquer reserva o professor de Matemática, esforçadamente Tertuliano Máximo Afonso, em cujos ouvidos ainda ressoavam as palavras que o haviam posto em pânico, a pior das ameaças que nesta altura alguém lhe poderia fazer. Separaram-se na esquina do corredor e foi cada qual ao seu destino. O aparecimento do professor de História fez perder aos alunos a fagueira ilusão que o atraso já tinha feito nascer, a de que hoje não houvesse aula. Mesmo antes de se sentar, Tertuliano Máximo Afonso anunciou que daí a três dias, portanto na próxima quinta-feira, teriam um novo e último trabalho escrito, Ficam informados de que se trata de um exercício decisivo para a definição final das notas, disse, uma vez que não tenciono proceder a chamadas orais nas duas semanas que faltam para o fim do ano lectivo, além disso, o tempo desta aula e das duas seguintes será exclusivamente dedicado a uma repassagem das matérias dadas, de maneira que possam apresentar-se com ideias frescas no dia do exercício. O exórdio foi bem acolhido pela parte mais imparcial da turma, era patente, a Deus graças, que Tertuliano não tencionava fazer mais sangue que aquele que não pudesse evitar. Daí para diante toda a atenção dos alunos irá ser posta na ênfase com que o professor for tratando cada uma das matérias do curso, porquanto, se a lógica dos pesos e medidas é realmente coisa humana e a sorte a favor um dos seus factores variáveis, tais mudanças de intensidade comunicativa poderiam estar a prenunciar, sem que ele se apercebesse da inconsciente revelação, a escolha dos temas de que o exercício constará. Se é bastamente conhecido que nenhuns seres humanos, incluindo aqueles que já atingiram as idades a que chamamos de senectude, podem subsistir sem ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal, que não diríamos então destas raparigas e destes rapazes que, depois de terem perdido a ilusão de que hoje não haveria aula, se empenham agora em alimentar uma outra ilusão muito mais problemática, a de que o exercício de quinta-feira possa ser para cada um, e portanto para todos, a dourada ponte por onde triunfalmente irão transitar para o ano seguinte. A aula já estava a ponto de acabar quando um empregado bateu à porta e entrou para dizer ao senhor professor Tertuliano Máximo Afonso que o senhor director lhe rogava a especial gentileza de passar pelo seu gabinete logo que terminasse. A exposição que estava a ser desenvolvida, sobre um tratado qualquer, foi despachada em menos de dois minutos, e tão por cima da rama que Tertuliano Máximo Afonso achou por bem dizer, Não se preocupem muito com isto porque não irá sair no exercício. Os alunos trocaram olhares de um entendimento cúmplice, dos quais facilmente se subentendia que as suas ideias sobre as valorações da ênfase tinham acabado de ser confirmadas num caso em que, mais que o significado das palavras, contara o tom despiciendo com que tinham sido pronunciadas. Pouquíssimas vezes uma aula chegou ao fim num tal ambiente de concórdia.