prisioneira da rede viária da cidade que por todos os lados a cerca, como muito bem se pode confirmar neste mapa. Foi durante a espera num sinal vermelho, enquanto Tertuliano Máximo Afonso acompanhava com toques ritmados dos dedos no aro do volante uma canção sem palavras, que o senso comum entrou no carro. Boas tardes, disse, Não te chamei cá, respondeu o condutor, Realmente não me lembro de que algum dia me tenhas pedido para vir, Até o faria se não conhecesse de antemão os teus discursos, Como hoje, Sim, vais dizer-me que pense bem, que não me meta nisto, que é uma imprudência de todo o tamanho, que nada me garante que o diabo não esteja atrás da porta, a conversa de sempre, Pois desta vez enganas-te, o que vais fazer não é uma imprudência, é uma estupidez, Uma estupidez, Sim senhor, uma estupidez, e das grossas, Não vejo em quê, É natural, uma das formas secundárias da cegueira de espírito é precisamente a estupidez, Explica-te, Não é necessário que me digas que te diriges à rua onde mora o teu Daniel Santa-Clara, é curioso, o gato tinha o rabo de fora e tu não reparaste, Que gato, que rabo, deixa as adivinhas e vai direito ao assunto, É muito simples, foi do apelido Claro que se criou o pseudónimo Santa-Clara, Não é pseudónimo, é nome artístico, Já o outro também não quis a vulgaridade plebeia do pseudónimo, chamou-lhe heterónimo, E de que me serviria ter visto o rabo do gato, Reconheço que não muito, à mesma terias de procurar, mas, indo aos Claros da lista telefónica, acabarias por acertar, Já tenho o que me interessa, E agora vais à rua onde ele mora, vais ver o prédio, olhar de baixo o andar em que vive, as janelas, que tipo de gente habita o bairro, que ambiente, que estilo, que modos, foram estas, se não me equívoco, as tuas palavras, Sim, Imagina agora que quando estiveres a olhar as janelas te aparece a uma delas a mulher do actor, enfim, falemos com respeito, a esposa desse António Claro, e te pergunta por que não sobes, ou então, pior ainda, aproveita para te pedir que vás à farmácia comprar uma caixa de aspirinas ou um xarope para a tosse, Disparate, Se te parece disparate, imagina agora que alguém passa e te cumprimenta, não como este Tertuliano Máximo Afonso que és, mas como o António Claro que nunca serás, Outro disparate, Então, se também esta hipótese é disparate, imagina que quando estás no passeio a olhar as janelas ou a estudar o estilo dos moradores te aparece pela frente, em carne e osso, o Daniel Santa-Clara, e os dois ficam a olhar-se iguais a dois cãezinhos de porcelana, cada um como reflexo do outro, mas um reflexo diferente, pois este, ao contrário do que faz o espelho, mostraria o esquerdo onde está o esquerdo e o direito onde está o direito, tu como reagirias se tal acontecesse. Tertuliano Máximo Afonso não respondeu logo, esteve calado durante dois ou três minutos, depois disse, A solução será não sair do carro, Mesmo assim, se eu estivesse no teu lugar não me fiaria, objectou o senso comum, podes ter de parar num sinal vermelho, pode haver um engarrafamento, uma camioneta a descarregar, uma ambulância a carregar, e tu ali posto em exposição, como um peixe no aquário, à mercê de que a adolescente cinéfila e curiosa residente no primeiro andar do prédio onde moras te pergunte qual é o teu próximo filme, Que farei, então, Isso não sei, não é da minha competência, o papel do senso comum na história da vossa espécie nunca foi além de aconselhar cautela e caldos de galinha, principalmente nos casos em que a estupidez já tomou a palavra e ameaça tomar as rédeas da acção, O remédio seria disfarçar-me, De quê, Não sei, terei de pensar, Pelos vistos, para seres quem és, a única possibilidade que te resta é a de que pareças ser outro, Tenho de pensar, Sim, já era tempo, Sendo assim, o melhor é ir para casa, Se não te incomoda, leva-me até à porta, depois cá me arranjarei, Não queres subir, Até hoje nunca me tinhas convidado, Estou a convidar-te agora, Obrigado, mas não devo aceitar, Porquê, Porque também não é saudável para o espírito viver de casa e pucarinho com o senso comum, comer com ele à mesa, dormir com ele na cama, levá-lo ao trabalho, pedir-lhe a sua aprovação ou consentimento antes de dar um passo, alguma coisa tereis de arriscar por vossa própria conta, A quem te referes, A vocês todos, ao género humano, Arrisquei-me a conseguir esta carta e tu nessa altura repreendeste-me, Não há nada que possa orgulhar-te no modo como a conseguiste, apostar na honestidade de uma pessoa como tu o fizeste é uma forma de chantagem bastante repugnante, Falas da Maria da Paz, Sim, falo da Maria da Paz, se eu estivesse no seu lugar abria a carta, lia-a e dava-te com ela na cara até que implorasses perdão de joelhos, Assim procede o senso comum, Assim deveria proceder, Adeus, até outro dia, vou pensar no meu disfarce, Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio. Tertuliano Máximo Afonso encontrou um lugar livre quase à porta do prédio onde morava, arrumou o carro, recolheu o mapa e o roteiro, e saiu. No passeio do outro lado da rua, havia um homem de cara levantada, a olhar para os andares altos em frente. Não tinha quaisquer parecenças de cara ou de figura, a sua presença ali não passaria de uma casualidade, mas Tertuliano Máximo Afonso sentiu um arrepio na espinha ao passar-lhe pela cabeça, não o pôde evitar, a doentia imaginação teve mais força que ele, a possibilidade de que Daniel Santa-Clara andasse à sua procura, eu a ti, tu a mim. Logo arredou a incómoda fantasia, Estou a ver fantasmas, o tipo nem sequer sabe que eu existo, a verdade, porém, é que ainda lhe tremiam os joelhos quando entrou em casa e se deixou cair exausto no sofá. Durante uns minutos esteve imerso numa espécie de sopor, ausentado de si mesmo, como um maratonista cuja força de repente se esgotou ao pisar a linha de chegada. Da energia tranquila que o animava quando saiu do estacionamento e quando, depois, levava o automóvel a um destino que acabara por ver-se frustrado, não tinha ficado mais que uma recordação difusa, de algo não realmente vivido, ou que o havia sido por aquela parte de si agora ausente. Levantou-se com dificuldade, as pernas pareciam-lhe estranhas, como se pertencessem a outra pessoa, e foi à cozinha fazer um café. Bebeu-o em goles vagarosos, consciente da quentura reconfortante que lhe descia pela garganta até ao estômago, depois lavou a chávena e o pires, e voltou à sala. Todos os seus gestos se haviam tornado meditados, lentos, como se estivesse ocupado a manipular substâncias perigosas num laboratório de química, e contudo nada mais tinha que fazer que abrir a lista telefónica na letra C e confirmar as informações que constavam da carta. E depois, que faço, perguntou-se, enquanto ia passando as páginas até encontrar. Havia muitos Claros, mas os Antónios não eram além de meia dúzia. Aqui estava, finalmente, o que tanto trabalho lhe tinha custado, tão fácil que o podia ter feito qualquer pessoa, um nome, uma morada, um número de telefone. Copiou os dados para um papel e repetiu a pergunta, E agora, que faço. Num acto reflexo, levou a mão direita ao auscultador, deixou-a ficar ali enquanto relia uma vez e outra o que havia apontado, depois retirou-a, levantou-se e deu uma volta pela casa, discutindo consigo mesmo que o mais sensato seria deixar a continuação do assunto para depois de acabados os exames, dessa maneira teria de haver-se com uma preocupação a menos, infelizmente tinha-se comprometido com o director da escola a redigir o projecto de proposta sobre o ensino da História, não podia escapar a essa obrigação, Mais dia menos dia não terei outro remédio que pôr mãos a um trabalho de que ninguém vai fazer caso, foi uma rematada estupidez ter aceitado o encargo, porém, não valia a pena fingir que estava a enganar-se a si mesmo, parecer que admitia a hipótese de remeter só para depois do trabalho da escola o primeiro passo no caminho que o deverá levar a António Claro, já que Daniel Santa-Clara, em rigor, não existe, é uma sombra, um títere, um vulto variável que se agita e fala dentro de uma cassete de vídeo e que regressa ao silêncio e à imobilidade quando acaba o papel que lhe ensinaram, ao passo que o outro, esse António Claro, é real, concreto, tão consistente como Tertuliano Máximo Afonso, o professor de História que vive nesta casa e cujo nome pode ser encontrado na letra A da lista telefónica, por muito que alguns afirmem que Afonso não é apelido, mas nome próprio. Está outra vez sentado à secretária, tem o papel com as notas que tomou diante de si, tem a mão direita novamente sobre o auscultador, dá a ideia de que se decidiu finalmente a telefonar, mas quanto tarda a resolver-se este homem, que vacilante, que irresoluto nos saiu, ninguém dirá que é a mesma pessoa que ainda não há multas horas quase arrancou a carta das mãos de Maria da Paz. Num repente, sem pensar, como única maneira de vencer a cobardia paralisante, o número foi marcado. Tertuliano Máximo Afonso escuta o toque da campainha, uma vez, duas vezes, três, muitas, e no momento em que vai para desligar, pensando, com metade de alívio e metade de decepção, que não há ninguém para atender, uma mulher, ofegando como se tivesse vindo a correr do outro extremo da casa, disse simplesmente, Estou, Uma súbita contracção muscular constringiu a garganta de Tertuliano Máximo Afonso, a resposta demorou, deu tempo a que a mulher repetisse, impaciente, Estou, quem fala, por fim o professor de História conseguiu pronunciar quatro palavras, Boas tardes, minha senhora, mas a mulher, em lugar de responder no tom reservado de quem se dirige a um desconhecido de quem ainda por cima não pode ver a cara, disse com um sorriso que transparecia em cada palavra, Se é para disfarçar, não te canses, Desculpe, balbuciou Tertuliano Máximo Afonso, eu vinha só pedir uma informação, Que informação pode querer uma pessoa que conhece tudo da casa para onde ligou, O que eu desejava saber é se é aí que mora o actor Daniel Santa-Clara, Meu caro senhor, eu me encarregarei de comunicar ao actor Daniel Santa-Clara, quando ele chegar, que António Claro telefonou a perguntar se os dois moravam aqui, Não compreendo, começou a dizer Tertuliano Máximo Afonso para ganhar tempo, mas a mulher adiantou-se abruptamente, Não te reconheço, não é teu costume teres brincadeiras destas, diz de uma vez o que queres, a filmagem atrasou-se, é isso, Desculpe, minha senhora, há aqui um engano, eu não me chamo António Claro, Não é o meu marido, perguntou ela, Sou só uma pessoa que desejava saber se o actor Daniel Santa-Clara mora nessa casa.