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cebi que não eras tu quem estava ao telefone, Percebo isso, ouvi-lo a ele é ouvir-me a mim, O que eu pensei, não, não foi pensado, foi antes algo sentido, como uma onda de pânico a apertar-me, a crispar-me a pele, senti que se a voz era igual, todo o mais o seria também, Não tem de ser necessariamente assim, a coincidência talvez não seja total, Ele diz que sim, Teríamos de comprová-lo, E como o faríamos, chamamo-lo aqui, tu despido e ele despido para que eu, nomeada juiz pelos dois, pronuncie a sentença, ou não a possa pronunciar por a igualdade ser absoluta, e se eu me retirar de onde estivermos e voltar logo a seguir não saberei quem é um e quem é outro, e se um dos dois sair, se se for embora daqui, com quem fiquei depois, diz-me, fiquei contigo, fiquei com ele, Distinguir-nos-ias pelas roupas, Sim, se as não tivésseis trocado, Tem calma, estamos só a conversar, nada disso sucederá, Imagina, decidir pelo que está fora e não pelo que está dentro, Tranquiliza-te, E agora pergunto-me que teria querido ele dizer quando lançou aquela de que, pelo facto de vocês serem iguais, morreriam no mesmo instante, Não o afirmou, apenas exprimiu uma dúvida, uma suposição, como se estivesse a interrogar-se a si mesmo, De toda a maneira, não entendo por que achou necessário dizê-lo, se não vinha a propósito, Terá sido para me impressionar, Quem é este homem, que quererá ele de nós, Sei o mesmo que tu, nada, nem do que é, nem do que quer, Disse que é professor de História, Será verdade, não iria inventá-lo, pelo menos pareceu-me ser pessoa culta, quanto a ter-nos telefonado, creio que sucederia o mesmo se, em vez dele, tivesse sido eu a descobrir a semelhança, E como iremos nós sentir-nos daqui em diante, com essa espécie de fantasma a andar pela casa, terei a impressão de estar a vê-lo a ele de cada vez que te olhar a ti, Ainda estamos sob o efeito do choque, da surpresa, amanhã tudo nos parecerá simples, uma curiosidade como tantas outras, não será um gato com duas cabeças nem um vitelo com uma pata a mais, só um par de siameses que nasceram separados, Há pouco falei de medo, de pânico, mas agora percebo que é outra coisa o que estou a sentir, Quê, Não sei explicar, talvez um pressentimento, Mau, ou bom, É só um pressentimento, como uma porta fechada atrás de outra porta fechada, Estás a tremer, Parece que sim. Helena, é este o seu nome e ainda não o conhecíamos, retribuiu alheada o abraço do marido, depois encolheu-se no canto do sofá em que se sentara e fechou os olhos. António Claro quis distraí-la, animá-la com um gracejo, Se algum dia eu chegar a ser um actor de primeira fila, este Tertuliano poderá servir-me de duplo, mando-o a ele fazer as cenas perigosas e enfadonhas, e fico em casa, ninguém se aperceberia da troca. Ela abriu os olhos, sorriu desmaiadamente e respondeu, Um professor de História a fazer de duplo deveria ser coisa digna de ver-se, a diferença é que os duplos de cinema só vêm quando são chamados, e este invadiu-nos a casa, Não penses mais nisso, lê um livro, vê a televisão, entretém-te, Não me apetece ler, muito menos olhar para a televisão, vou-me deitar. Quando António Claro, uma hora mais tarde, foi para a cama, Helena parecia dormir. Ele fingiu que acreditava e apagou a luz, sabendo de antemão que iria levar tempo a adormecer. Lembrava o inquietante diálogo que travara com o intruso, rebuscava intenções ocultas nas frases que lhe tinha ouvido, até que as palavras, por fim, tão cansadas como ele, começavam a tornar-se neutras, perdiam os seus significados, como se já nada tivessem que ver com o mundo mental de quem em silêncio e desesperadamente continuava a pronunciá-las, A infinitude de possibilidades de uma coincidência, Morrem juntos os que são iguais, tinha ele dito, e também, A imagem virtual daquele que se olha ao espelho, A imagem real daquele que do espelho o olha, depois a conversa com a mulher, os pressentimentos dela, o medo, de si para si tomou a resolução, ia avançada a noite, de que o assunto teria de ser resolvido a bem ou a mal, fosse como fosse, e rapidamente, Irei falar com ele. A decisão enganou-lhe o espírito, iludiu-lhe as tensões do corpo, e o sono, encontrando o caminho aberto, avançou de mansinho e deitou-se a dormir. Cansada de se ter forçado a uma imobilidade contra a qual todos os seus nervos protestavam, Helena havia finalmente adormecido, durante duas horas conseguiu repousar ao lado do seu marido António Claro como se nenhum homem se tivesse vindo interpor entre os dois, e assim provavelmente iria continuar até ao amanhecer se o seu próprio sonho não a tivesse despertado de sobressalto. Abriu os olhos para o quarto imerso numa penumbra que era quase escuridão, ouviu o lento e espaçado respirar do marido, e de súbito percebeu que havia uma outra respiração no interior da casa, alguém que tinha entrado, que se movia lá fora, talvez na sala, talvez na cozinha, agora por trás desta porta que dá para o corredor, em qualquer parte, aqui mesmo. Arrepiada de medo, Helena estendeu o braço para acordar o marido, mas, no último instante, a razão fê-la deter-se. Não há ninguém, pensou, não é possível que esteja alguém aí fora, são imaginações minhas, às vezes acontece saírem os sonhos do cérebro que os sonhava, então chamamos-lhes visões, fantasmagorias, premonições, advertências, avisos do além, quem respira e anda aí pela casa, quem há pouco se sentou no meu sofá, quem está escondido atrás da cortina da janela, não é aquele homem, é a fantasia que tenho dentro da cabeça, esta figura que avança direita a mim, que me toca com mãos iguais às deste outro homem adormecido ao meu lado, que me olha com os mesmos olhos, que com os mesmos lábios me beijaria, que com a mesma voz me diria as palavras de todos os dias, e as outras, as próximas, as íntimas, as do espírito e as da carne, é uma fantasia, nada mais que uma louca fantasia, um pesadelo nocturno nascido do medo e da angústia, amanhã todas as coisas tomarão ao seu lugar, não será preciso que cante um galo para expulsar os sonhos maus, bastará que toque o despertador, toda a gente sabe que nenhum homem pode ser exactamente igual a outro num mundo em que se fabricam máquinas para acordar. A conclusão era abusiva, ofendia o bom senso, o simples respeito pela lógica, mas a esta mulher, que toda a noite vagara entre as imprecisões de um obscuro pensar feito de movediços farrapos de bruma que mudavam de forma e de direcção a cada momento, pareceu-lhe nada menos que irrespondível e irrefutável. Até aos razoamentos absurdos deveríamos estar agradecidos se forem daqueles que no meio da amarga noite nos restituem um pouco de serenidade, mesmo que ela seja tão fraudulenta como esta é, e nos dão a chave com que finalmente franquearemos titubeantes a porta do sono. Helena abriu os olhos antes da hora a que o despertador devia tocar, travou-o para que o marido não acordasse, e, deitada de costas, com os olhos fitos no tecto, deixou que as suas confusas ideias se fossem a pouco e pouco ordenando e tomassem o caminho onde se reuniriam num pensar já racional, já coerente, livre de assombrações inexplicáveis e de fantasias com explicação demasiado fácil. Mal conseguia crer que entre as quimeras, as verdadeiras, as mitológicas, aquelas que vomitavam chamas e tinham a cabeça de um leão, a cauda de um drago e o corpo de uma cabra, porque essa também poderia haver sido a figura em que se mostrassem os flácidos monstros da insónia, mal podia crer que a tivesse atormentado, como uma tentação imprópria, para não dizer indecente, a imagem de outro homem que ela não teria necessidade de despir para saber como seria fisicamente, da cabeça aos pés, todo ele, a seu lado dorme um igual. Não se censurou porque aquelas ideias em realidade não lhe pertenciam, tinham sido o fruto equívoco de uma imaginação que, sacudida por uma emoção violenta e fora do comum, saltara dos carris, o que conta é que está lúcida e alerta neste momento, senhora dos seus pensamentos e do seu querer, as alucinações da noite, sejam as da carne, sejam as do espírito, sempre se dissiparam no ar com as primeiras claridades da manhã, essas que reordenam o mundo e o recolocam na sua órbita de sempre, reescrevendo de cada vez os livros da lei. É tempo de se levantar, o local da empresa de turismo onde trabalha está no outro extremo da cidade, seria estupendo, todas as manhãs o pensa durante o caminho, se conseguisse que a transferissem para uma das agências centrais, e o maldito trânsito, nesta hora de ponta, justifica copiosamente a designação de infernal que alguém, num momento feliz de inspiração, lhe deu não se sabe quando nem em que país. O marido continuará deitado por mais uma hora ou duas, hoje não tem filmagens que o reclamem, e as actuais, segundo parece, estão a chegar ao fim. Helena deslizou para fora da cama com uma leveza que, sendo em si natural, se viu aperfeiçoada pelos dez anos que já leva vividos como atenta e dedicada esposa, logo moveu-se sem ruído pelo quarto enquanto despendurava o roupão e o vestia, depois saiu para o corredor. Por aqui tinha andado a visita nocturna, junto à frincha desta porta havia respirado antes de entrar para se ir esconder atrás da cortina, não, não há que temer, não se trata de um vicioso segundo assalto da imaginação de Helena, é ela própria a fazer ironia com as suas tentações, tão pouca coisa, afinal, agora que as pode comparar com a rosada claridade que entra por aquela janela, a da sala de estar em que ontem à noite se sentiu tão afligida como a menina do conto abandonada no bosque. Está ali o sofá em que o visitante se sentou, e não foi por acaso que o fez, de todos os sítios em que teria podido descansar, se era isso o que queria, foi este o que escolheu, o sofá de Helena, como para partilhá-lo com ela ou dele se apropriar. Não faltam motivos para pensar que quanto mais intentemos repelir as nossas imaginações, mais elas se divertirão a procurar e atacar os pontos da armadura que consciente ou inconscientemente tínhamos deixado desguarnecidos, Um dia, esta Helena, que tem pressa e um horário profissional a cumprir, nos dirá por que razão se foi sentar ela também no sofá, por que razão durante um longo minuto ali ficou aninhada, por que razão, tendo sido tão firme ao despertar, agora se comporta como se o sonho a tivesse tomado outra vez nos braços e a embalasse docemente. E também porquê, já vestida e pronta para sair, abriu a lista telefónica e copiou para um papel a direcção de Tertuliano Máximo Afonso. Entreabriu a porta do quarto, o marido ainda parecia dormir, mas o seu sono já não era mais que o último e difuso limiar da vigília, podia portanto aproximar-se da cama, dar-lhe um beijo na testa e dizer, Cá vou, e depois receber na boca o beijo dele e os lábios do outro, meu Deus, esta mulher deve estar louca, as coisas que faz, as coisas que lhe passam pela cabeça. Estás atrasada, perguntou António Claro a esfregar os olhos, Ainda tenho dois minutos, respondeu ela, e sentou-se na borda da cama, Que vamos fazer com esse homem, Que tencionas fazer tu, Esta noite, enquanto esperava o sono, pensei que devia ir falar com ele, mas agora não sei se será o mais conveniente, Ou lhe abrimos a porta, ou lha fechamos, não vejo outra solução, de uma maneira ou outra a nossa vida mudou, já não voltará a ser a mesma, Está na nossa mão decidir, Mas não está na nossa mão, ou de quem quer que seja, obrigar o que foi a que deixe de ser, o aparecimento desse homem é um facto que não podemos apagar ou remover, mesmo que não o deixemos entrar, mesmo que lhe fechemos a porta, ficará à espera do lado de fora até não conseguirmos aguentar mais, Estás a ver as coisas demasiado negras, talvez, no fim de contas, tudo possa ser resolvido com um simples encontro, ele prova-me que é igual a mim, eu digo-lhe sim senhor tem razão, e, feito isto, adeus até nunca mais, faça-nos o favor de não voltar a incomodar-nos, Ele continuaria à espera do lado de fora da porta, Não lha abriríamos, Já entrou, está dentro da tua cabeça e da minha cabeça, Acabaremos por esquecer, É possível, não é certo. Helena levantou-se, olhou o relógio e disse, Tenho de ir, estou a atrasar-me, deu dois passos para sair, mas ainda perguntou, Vais telefonar-lhe, vais marcar um encontro, Hoje não, respondeu o marido soerguendo-se num cotovelo, nem amanhã, esperarei uns dias mais, talvez não seja má ideia apostar na indiferença, no silêncio, dar tempo ao assunto para que apodreça por si mesmo, Tu o saberás, até logo. A porta da escada abriu-se e fechou-se, não nos dirão se Tertuliano Máximo Afonso estava sentado num dos degraus, à espera. António Claro tomou a estender-se na cama, se a vida não tivesse realmente mudado, como havia dito a mulher, virar-se-ia para o outro lado e dormiria ainda uma hora, parece ser verdade o que os invejosos afirmam, que os actores precisam de dormir muito, será uma consequência da vida irregular que levam, mesmo saindo tão pouco à noite como Daniel Santa-Clara. Cinco minutos depois António Claro estava levantado, um pouco estranho na hora, embora a justiça mande que se diga que quando os deveres da sua profissão o determinam este actor, preguiçoso segundo todas as evidências, é tão capaz de madrugar como a mais matutina das cotovias. Espreitou o céu pela janela do quarto, não era difícil prever que o dia seria de calor, e foi à cozinha preparar o pequeno-almoço. Pensava no que a mulher havia dito, Temo-lo dentro da cabeça, o feitio dela é este, ser peremptória, não precisamente peremptória, o que ela tem é o dom das frases curtas, condensadas, demonstrativas, empregar quatro palavras para dizer o que outros não seriam capazes de expressar nem em quarenta, e mesmo assim ficando a meio do caminho. Não tinha a certeza de que a melhor solução fosse a que havia alvitrado, esperar um tempo antes de se passar à ofensiva, quer isso viesse a suceder num encontro pessoal e secreto, sem testemunhas que fossem depois dar com a língua nos dentes, quer por uma seca chamada telefónica, daquelas que deixam o interlocutor entupido, sem respiração e sem réplica. Mais duvidava, porém, da eficácia da sua capacidade dialéctica para cortar pela raiz, e sem protelações, a esse Tertuliano Máximo Afonso de má morte, qualquer veleidade, presente ou futura, de lançar na vida das duas pessoas que moram nesta casa factores de perturbação psicológica e conjugal tão perversos como aqueles de que implicitamente já tinha feito gala e aqueles a que explicitamente já havia dado origem, como foi, por exemplo, ter tido Helena, ontem à noite, o atrevimento de declarar, Terei a impressão de estar a vê-lo a ele de cada vez que te olhar a ti. Com efeito, só uma mulher que tivesse sido seriamente tocada nos seus fundamentos morais poderia ter atirado semelhantes palavras à cara do seu próprio marido sem reparar no elemento adulterino que nelas se encontrava presente, diáfano, é certo, mas revelador quanto baste. Tem no entretanto António Claro a passear-lhe no cérebro, ainda que sem dúvida, irritado, o negasse se lho fizéssemos notar, um esboço de ideia que só por cautela não iremos ao extremo de classificar como estando à altura de um Maquiavel, ao menos enquanto não se tiverem manifestado os seus eventuais efeitos, segundo toda a probabilidade negativos. Tal ideia, que por ora não passa de um mero bosquejo mental, consiste, nem mais nem menos, e por muito escandaloso que nos pareça, em examinar se será possível, com habilidade e astúcia, retirar da parecença, da semelhança, da igualdade absoluta, no caso de virem a confirmar-se, alguma vantagem de ordem pessoal, isto é, se António Claro ou Daniel Santa-Clara conseguirão arranjar maneira de saírem a ganhar de um negócio que de momento nada tem para apresentar de favorável aos seus interesses. Se do próprio responsável da ideia não podemos, neste momento, esperar que nos ilumine os caminhos, sem nenhuma dúvida tortuosos, por onde vagamente estará imaginando que alcançará os seus objectivos, não se conte connosco, simples transenitores de pensamentos alheios e fiéis copistas das suas acções, para que antecipemos os passos seguintes de uma procissão que ainda agora vai no adro.