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O que sim pode ser desde já excluído do embrionário projecto é a aventada serventia de duplo que Tertuliano Máximo Afonso acaso viesse a prestar ao actor Daniel Santa-Clara, concordemos que seria faltar ao devido respeito intelectual pedir a um professor de História que aceitasse ser parceiro nas frivolidades pilosas da sétima arte. Bebia António Claro o último gole de café quando outra ideia lhe cruzou as sinapses do cérebro, a qual vinha a ser meter-se no carro e ir dar uma vista de olhos à rua e ao prédio onde Tertuliano Máximo Afonso reside. As acções dos seres humanos, apesar de não serem já dirigidas por irresistíveis instintos hereditários, repetem-se com tão assombrosa regularidade que cremos ser lícito, sem forçar a nota, admitir a hipótese de uma lenta mas constante formação de um novo tipo de instinto, supomos que sociocultural será a palavra adequada, o qual, induzido por variantes adquiridas de tropismos repetitivos, e desde que respondendo a idênticos estímulos, faria com que a ideia que ocorreu a um tenha necessariamente de ocorrer a outro. Primeiro foi Tertuliano Máximo Afonso a vir a esta rua dramaticamente mascarado, todo de escuro vestido numa luminosa manhã de verão, agora é António Claro que se dispõe a ir à rua dele sem cuidar das complicações que poderão advir de apresentar-se naqueles sítios de cara descoberta, salvo se, enquanto se está barbeando, duchando e arranjando, o dedo da inspiração lhe vier tocar na fronte, recordando-lhe que guardou numa gaveta qualquer da sua roupa, acomodado numa caixa de charutos vazia, em ar de sensibilizadora recordação profissional, o bigode com que Daniel Santa-Clara interpretou há cinco anos o papel de recepcionista na comédia Quem Porfia Mata Caça. Como o ditado antigo sabiamente ensina, encontrarás o que precisas se guardaste o que não prestava. Onde reside o tal professor de História vai sabê-lo não tarda António Claro pela benemérita lista telefónica, hoje um pouco de esguelha na prateleira onde sempre a têm, como se tivesse sido arrumada à pressa por uma mão nervosa depois de nervosamente ter sido consultada. Já apontou na agenda de bolso a direcção, também o número do telefone, embora fazer uso dele não se inclua nas suas intenções de hoje, se algum dia vier a ligar para casa de Tertuliano Máximo Afonso quer poder fazê-lo de qualquer sítio onde esteja, sem ter de depender de uma lista telefónica que se havia esquecido de guardar e por isso não a encontra quando tão precisa era. Já está pronto para sair, tem o bigode pegado no seu lugar, não bastante seguro por haver perdido algo de aderência com os anos, em todo o caso não é de recear que caia no momento justo, passar por diante da casa e deitar-lhe uma olhadela será só uma questão de segundos. Quando estava a colocá-lo, guiando-se pelo espelho, lembrou-se de que, cinco anos antes, havia tido que rapar o bigode natural que então lhe ornamentava o espaço entre o nariz e o lábio superior, só porque ao realizador do filme não tinham parecido apropriados aos fins em vista nem o perfil nem o desenho respectivos. Chegados a este ponto, preparemo-nos para que um leitor dos atentos, descendente em linha recta daqueles ingénuos mas espertíssimos rapazinhos que nos tempos do antigo cinema gritavam da plateia para o rapaz da fita que o mapa da mina estava escondido na fita do chapéu do cínico e malvado inimigo caído aos seus pés, preparemo-nos para que nos chamem à pedra e nos denunciem, como uma distracção imperdoável, a desigualdade de procedimento entre a personagem Tertuliano Máximo Afonso e a personagem António Claro, que, em situações em tudo semelhantes, tem o primeiro de entrar num centro comercial para poder colocar ou retirar os seus postiços de barba e bigode, ao passo que o segundo se dispõe a sair de casa com pleno à-vontade e à luz plena do dia levando na cara um bigode que, pertencendo-lhe de direito, não é seu de facto. Esquece esse leitor atento o que já por várias vezes foi assinalado no curso deste relato, isto é, que assim como Tertuliano Máximo Afonso é, a todas as luzes, o outro do actor Damel Santa-Clara, assim também o actor Daniel Santa-Clara, embora por outra ordem de razões, é o outro de António Claro. A nenhuma vizinha do prédio ou da rua parecerá estranho que esteja a sair agora com bigode quem ontem entrou sem ele, quando muito dirá, se reparar na diferença, Já vai preparado para a filmagem. Sentado dentro do carro, com a janela aberta, António Claro consulta o roteiro e o mapa, aprende deles o que nós já sabíamos, que a rua onde Tertuliano Máximo Afonso mora está no outro extremo da cidade, e, tendo correspondido amavelmente aos bons-dias de um vizinho, pôs-se em marcha. Levará quase uma hora para chegar ao destino, a tentar a sorte passará três vezes diante do prédio com um intervalo de dez minutos como se andasse à procura de um lugar livre para arrumar o carro, poderia suceder que uma coincidência afortunada fizesse descer Tertuliano Máximo Afonso à rua, porém, aqueles que gozam de informações sobre os deveres que o professor de História tem de cumprir, sabem que ele, neste preciso instante, se encontra tranquilamente sentado à secretária, trabalhando com aplicação na proposta que o director da escola lhe encomendou, como se do resultado desse esforço dependesse o seu futuro, quando o certo, e isto sim podemos já antecipá-lo, é que o professor Tertuliano Máximo Afonso não voltará a entrar numa sala de aula em toda a sua vida, seja na escola a que algumas vezes tivemos de acompanhá-lo, seja em qualquer outra. A seu tempo se saberá porquê. António Claro viu o que havia para ver, uma rua sem importância, um prédio igual a tantos, ninguém poderá imaginar que naquele segundo andar direito, por trás daquelas inocentes cortinas, esteja vivendo um fenómeno da natureza não menos extraordinário que as sete cabeças da hidra de Lerna e outras quejandas maravilhas. Que Tertuliano Máximo Afonso mereça em verdade um qualificativo que o expulsaria da normalidade humana é questão que se encontra ainda por dilucidar, uma vez que continuamos a desconhecer qual destes dois homens foi o primeiro a nascer. Se esse tal foi Tertuliano Máximo Afonso, então é a António Claro que cabe a designação de fenómeno da natureza, uma vez que, tendo surgido em segundo lugar, se apresentou para ocupar neste mundo, abusivamente, tal como a hidra de Lerna, e por isso a matou Hércules, um lugar que não era o seu. Em nada o soberano equilíbrio do universo teria sido perturbado se António Claro tivesse nascido e fosse actor de cinema noutro sistema solar qualquer, mas aqui, na mesma cidade, por assim dizer, para um observador a olhar-nos da lua, porta com porta, todas as desordens e confusões são possíveis, sobretudo as piores, sobretudo as mais terríveis. E para que não se pense que, pelo facto de o conhecermos há mais tempo, alimentamos alguma preferência especial por Tertuliano Máximo Afonso, apressamo-nos a recordar que, matematicamente, sobre a sua cabeça se suspendem tantas inexoráveis probabilidades de ter sido ele o segundo a nascer como a António Claro. Portanto, por muito estranha que a olhos e ouvidos sensíveis possa resultar a construção sintáctica, é legítimo dizer que o que tiver de ser, já foi, e não falta mais que escrevê-lo. António Claro não tornou a passar na rua, quatro esquinas adiante, disfarçadamente, não fosse dar-se a casualidade de algum bom cidadão lhe surpreender o movimento e chamar a polícia, tirou o bigode de Daniel Santa-Clara, e, como não tinha outra coisa que fazer, tomou o caminho de casa, onde o esperava, para estudo e anotações, o guião do seu próximo filme. Tornaria a sair para almoçar num restaurante perto, descansaria numa breve sesta e voltaria a trabalhar até à chegada da mulher. Não era ainda o personagem principal, mas já teria o seu nome nos cartazes que na altura seriam afixados estrategicamente na cidade, e estava quase certo de que a crítica não deixaria passar sem um comentário elogioso, ainda que breve, a interpretação do papel de advogado que desta vez lhe havia sido distribuído. A sua única dificuldade estava na enorme quantidade de advogados de todas as formas e feitios que tinha visto no cinema e na televisão, acusadores públicos e particulares de diferentes estilos de parlenda forense, desde a blandiciosa à agressiva, defensores mais ou menos bem-falantes para quem estar convencido da inoc