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ão rural com todo o aspecto de haver beneficiado de um restauro criterioso, mas dando alguns sinais de abandono, como se os proprietários viessem por cá pouco e por pouco tempo de cada vez. O que se espera de uma casa no campo é que tenha plantas à porta e nos parapeitos das janelas, e esta mal as pode mostrar já, apenas uns talos meio secos, uma flor que se despede, só uma corajosa sardinheira ainda luta contra a ausência. A casa está separada do caminho por um muro baixo, e por trás dela, levantando as ramadas sobre o telhado, há dois castanheiros que, pela altura e pela longeva idade que não é difícil supor-lhes, devem ser muito anteriores à construção. Um sítio solitário, ideal para pessoas contemplativas, daquelas que amam a natureza pelo que ela é, sem fazer mais diferença entre o sol e a chuva, entre o calor e o frio, entre o vento e a calma, que a comodidade que nos dão uns e outros nos recusam. Tertuliano Máximo Afonso deu a volta pelas traseiras da casa, por um jardim que em tempos teria merecido esse nome e agora não passa de um espaço mal murado, invadido por cardos e uma maranha de plantas bravas que afogam uma macieira atrofiada e um pessegueiro com o tronco coberto de líquenes, umas quantas figueiras-do-inferno, ou estramónios, que é a palavra culta. Para António Claro, talvez também para a mulher, a casa rural deve ter sido um amor de pouca duração, uma daquelas paixonetas bucólicas que atacam por vezes os citadinos e que, como a palha solta, ardem com força mal se lhes chega um fósforo, e logo não são mais que cinzas negras. Tertuliano Máximo Afonso já pode regressar ao seu segundo andar com vista para o outro lado da rua e esperar a chamada telefónica que o fará voltar aqui no domingo. Meteu-se no carro, desandou por onde tinha vindo e, para mostrar à mulher da janela que não lhe pesava na consciência nenhum delito contra a propriedade alheia, atravessou com repousado vagar a povoação, conduzindo como se estivesse a abrir caminho por entre um rebanho de cabras acostumadas a usar as ruas com a mesma tranquilidade com que vão pastar ao campo, entre as giestas e os tomilhos. Tertuliano Máximo Afonso pensou se valeria a pena, só por satisfazer a curiosidade, procurar o atalho que, diante da casa, parecia descer em direcção ao rio, mas reconsiderou a tempo a ideia, quanto menos pessoas o vissem nestes sítios, melhor. Também é certo que depois de domingo nunca mais aqui voltará, mas sempre seria preferível que ninguém viesse a lembrar-se do homem das barbas. À saída da povoação acelerou, em poucos minutos estava na estrada principal, e menos de uma hora depois entrava em casa. Tomou um banho que o retemperou da soalheira da viagem, mudou de roupa, e, acompanhado de um refresco de limão que tirara do frigorífico, sentou-se à secretária, Não vai continuar a trabalhar na proposta para o ministério, vai, como bom filho, telefonar à mãe. Perguntar-lhe-á como tem passado, ela dirá que bem, e tu como estás, na forma do costume, sem razões de queixa, já andava a estranhar o silêncio, desculpe, é que tenho tido muito que fazer, supõe-se que estas palavras, nos seres humanos, são o equivalente daqueles rápidos toques de reconhecimento que as formigas fazem umas às outras com as antenas quando se topam no carreiro, como se dissessem, És dos meus, já podemos começar a tratar de coisas sérias. E como estão os teus problemas, perguntou a mãe, Vão a caminho de resolver-se, não se preocupe, Que ideia, como se eu não tivesse mais nada que fazer na vida senão preocupar-me, Ainda bem que não toma o assunto demasiado a peito, É porque não vês a minha cara, Vamos, mãe, sossegue, Espero sossegar quando cá estiveres, Já não falta muito tempo, E a tua relação com Maria da Paz, em que pé está neste momento, Não é fácil explicar, Pelo menos, poderás experimentar, É verdade que gosto dela e preciso dela, Outros têm casado com menos razões, Sim, mas percebo que a necessidade é apenas coisa de um momento, nada mais que isso, se amanhã deixar de a sentir, que faço, E o gostar, O gostar é o natural em um homem que vivia só e teve a sorte de conhecer uma mulher simpática, de aspecto agradável, com boa figura e, como é costume dizer-se, de bons sentimentos, Portanto, pouco, Não digo que seja pouco, digo que não é bastante, Amaste a tua mulher, Não sei, não me lembro, já passaram seis anos, Seis anos não dão para esquecer assim tanto, Pensei que a amava, ela deve ter pensado o mesmo a meu respeito, afina) estávamos equivocados os dois, é o que mais se encontra por aí, E não queres que com Maria da Paz venha a acontecer um engano idêntico, Não, não quero, Por ti, ou por ela, Por ambos, Mais por ti do que por ela. em todo o caso, Não sou perfeito, será suficiente que a poupe a ela o que não quero que de mau me suceda a mim, o meu egoísmo, neste caso, não vai ao ponto de não ser capaz de a defender também a ela, Talvez Maria da Paz não se importasse de arriscar, Outro divórcio, o meu segundo, o primeiro para ela, não, minha mãe, nem pensar, Ao fim poderia sair bem, não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, Assim é, Por que o dizes dessa maneira, Que maneira, COM se estivéssemos às escuras e tivesses acendido e apagado uma luz de repente, Foi impressão sua, Repete, Repito, o quê, O que disseste, Para que, Repete, peço-te, Faça-se a sua vontade, assim é, Diz só as duas palavras, Assim é, Não foi o mesmo, Como não foi o mesmo, Não foi o mesmo, Ora, minha mãe, deixe-se de fantasias, por favor, fantasiar em demasia não é o melhor caminho para a paz do espírito, as palavras que eu disse não significam mais que assentimento, concordância, Até aí alcançam as minhas luzes, no tempo em que era nova também consultei dicionários, Não se zangue, Quando vens, Já lhe disse, em breve, Precisamos de ter uma conversa, Teremos todas as conversas que quiser, Só quero uma, Qual, Não finjas que não percebes, quero saber o que se passa contigo, e por favor não me venhas para cá com histórias preparadas, jogo franco e cartas na mesa é o que espero de ti, Essas palavras não parecem suas, Eram muito do teu pai, lembra-te, Porei as cartas todas na mesa, E prometes-me que o jogo será franco, sem truques, Será franco, não haverá truques, Assim é que eu quero o meu filho, Vamos a ver o que terá para me dizer quando lhe puser diante a primeira carta deste baralho, Julgo que já vi tudo quanto havia para ver na vida, Fique-se corri essa ilusão enquanto não falarmos, É assim tão sério, O futuro o dirá quando lá chegarmos, Não tardes, por favor, Talvez esteja aí a meio da semana que vem, Oxalá, Um beijo, minha mãe. Um beijo, meu filho. Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador, depois deixou vagar o pensamento à vontade, como se continuasse a falar com a mãe, As palavras são o diabo,, nós a crer que só deixamos sair da boca para fora aquelas que nos convêm, e de repente aparece uma que se mete pelo meio, não vimos de onde surgiu, não era para ali chamada, e, por causa dela, que não é raro termos depois dificuldade em recordar, o rumo da conserva muda bruscamente de quadrante, passamos a afirmar o que antes negávamos, ou vice-versa, isto que acabou de acontecer aqui foi o melhor dos exemplos, não era intenção minha falar tão cedo à minha mãe desta história de loucos, se é que realmente pensava fazê-lo alguma vez, e de um instante para outro, sem se perceber como, ela passou a ter a promessa formal de que lha contarei, neste minuto, provavelmente, está a marcar uma cruz no calendário, já na segunda-feira da semana que entra, não seja o caso de eu aparecer lá sem ser esperado, conheço-a, cada dia que ela assinalar é o dia em que eu teria obrigação de chegar, a culpa não será sua, se falto. Tertuliano Máximo Afonso não está contrariado, pelo contrário, goza uma indescritível sensação de alívio, como se de súbito lhe tivessem retirado um peso de cima dos ombros, pergunta-se que é que ganhou afinal em ter guardado silêncio durante todos estes dias e não acha uma só resposta justa, daqui a pouco talvez seja capaz de dar mil explicações, cada uma mais plausível que outra, agora só pensa que necessita desafogar-se o mais rapidamente possível, terá o encontro com António Claro no domingo, daqui a dois dias, só se não quiser é que não pega no carro logo na segunda-feira de manhã e vai mostrar à mãe todas as cartas que compõem este quebra-cabeças, verdadeiramente todas, porque uma coisa seria ter-lhe dito há tempos, Existe um homem tão parecido comigo que até a mãe nos confundiria, e outra, muito diferente, será ter de dizer-lhe, Estive com ele, e agora não sei quem sou. Neste mesmo instante, sumiu-se a breve consolação que caridosamente o tinha estado embalando e, em vez dela, como uma dor que de repente se fizesse lembrar, o medo reapareceu. Não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, havia dito a mãe, e esta verdade corriqueira, ao alcance de uma simples dona de casa de província, esta verdade trivial que faz parte da infinita lista das que não vale a pena perder tempo a enunciar porque já a ninguém tiram o sono, esta verdade de todos e igual para todos pode, em algumas situações, afligir e assustar tanto como a pior das ameaças. Cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro, porém, desafiando a contradição com o que acabou de ser dito, talvez a ideia correcta seja a de que o futuro é somente um imenso vazio, a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta. Se o futuro está vazio, pensou Tertuliano Máximo Afonso, então não existe nada a que possa chamar domingo, a sua eventual existência depende da minha existência, se eu neste momento morresse, uma parte do futuro ou dos futuros possíveis ficaria para sempre cancelada. A conclusão x que Tertuliano Máximo Afonso ia chegar, Para que o domingo exista na realidade é preciso que eu continue a existir, foi bruscamente cortada pelo toque do telefone. Era António Claro a perguntar, Recebeu o croquis, Recebi, Tem alguma dúvida, Nenhuma, Fiquei de lhe telefonar amanhã, mas pensei que a carta já devia ter chegado, e portanto venho confirmar o encontro, Muito bem, lá estarei às seis horas, Não se preocupe com o facto de ter de atravessar a povoação, eu usarei um atalho que me leva directamente à casa, assim ninguém terá de estranhar a passagem de duas pessoas com a cara igual, E o automóvel, Qual, O meu, Não tem importância, se houver alguém que o confunda comigo pensará que mudei de carro, aliás, ultimamente, tenho ido poucas vezes à casa, Muito bem, Até depois de amanhã, Até domingo. Depois de desligar, Tertuliano Máximo Afonso pensou que lhe poderia ter dito que levaria uma barba postiça. Também não tem importância, tirá-la-á logo a seguir. O domingo deu um grande passo em frente, Eram seis horas e cinco 'minutos quando Tertuliano Máximo Afonso arrumou o carro em frente da casa, do outro lado do caminho. O automóvel de António Claro já ali está, junto à entrada, encostado ao muro. Entre um e outro há a diferença de uma geração mecânica, nunca Daniel Santa-Clara teria trocado o seu carro por algo que a este de Tertuliano Máximo Afonso se assemelhasse. A cancela está aberta, a porta da casa também, mas as janelas estão fechadas. No interior percebe-se um vulto que quase não se distingue de fora, porém a voz que sai lá de dentro é nítida e precisa, como deve ser a de um artista de platô, Entre, faça de conta que está em sua casa. Tertuliano Máximo Afonso subiu os quatro degraus da escada de acesso e parou no limiar. Entre, entre, repetiu a voz, não faça cerimónia, ainda que, pelo que vejo, não me pareça ser você a pessoa de quem estava à espera, supunha que era eu o actor, mas enganei-me. Sem dizer palavra, com todos os cuidados, Tertuliano Máximo Afonso despegou a barba e entrou. Eis o que se chama ter o sentido teatral do dramático, fez-me lembrar aquelas personagens que aparecem de rompante a exclamar Aqui estou, como se isso tivesse alguma importância, disse António Claro, enquanto emergia da penumbra e aparecia à luz plena que entrava pela porta aberta. Ficaram parados a olhar-se. Lentamente, como se lhe fosse penoso arrancar-se desde o mais fundo do impossível, a estupefacção desenhou-se no rosto de António Claro, não no de Tertuliano Máximo Afonso, que já sabia o que vinha encontrar. Sou a pessoa que lhe telefonou, disse, estou aqui para que se certifique, pelos seus próprios olhos, de que não pretendia divertir-me à sua custa quando lhe dizia que éramos iguais, Efectivamente, balbuciou António Claro numa voz que já não parecia a de Daniel Santa-Clara, imaginei, por causa da sua insistência, que houvesse entre nós uma semelhança grande, mas confesso-lhe que não estava preparado para o que tenho diante de mim, o meu próprio retrato, Agora que já tem a prova, poderei retirar-me, disse Tertuliano Máximo Afonso, Não, isso não, pedi-lhe que entre, agora peço-lhe que nos sentemos a conversar, a casa anda um pouco descuidada, mas estes sofás estão em bom estado e devo ter ainda por aí umas bebidas, gelo é que não há, Não quero dar-lhe trabalho, Ora essa, iria ser mais bem atendido se a minha mulher tivesse vindo, mas não é difícil imaginar como ela estaria a sentir-se neste momento, mais confusa e perturbada que eu, isso com certeza, Julgando por mim próprio, não tenho quaisquer dúvidas, o que tive de viver nestas semanas não o desejaria ao meu pior inimigo, Sente-se, por favor, que prefere para beber, uísque ou conhaque, Sou pouco bebedor, mas mesmo assim prefiro o conhaque, uma gota, nada mais. António Claro trouxe as garrafas e os copos, serviu o visitante, deitou para si três dedos de uísque sem água, depois sentou-se do outro lado da pequena mesa que os separava. Não caio em mim de assombro, disse, Eu já passei por essa fase, respondeu Tertuliano Máximo Afonso, agora só me pergunto que irá acontecer depois disto, Como foi que descobriu, Disse-lho quando lhe telefonei, vi-o num filme, Sim, já me lembro, aquele em que fiz de recepcionista de hotel, Exactamente, Depois viu-me noutros filmes, Exactamente, E como foi que conseguiu chegar até mim, se o nome de Daniel Santa-Clara não vem na lista telefónica, Antes disso ainda tive de encontrar a maneira de o identificar entre os diversos actores secundários que aparecem nos genéricos sem referência à personagem que interpretavam, Tem razão, Levou tempo, mas alcancei o que queria, E por que foi que se deu a esse trabalho, Creio que qualquer outra pessoa no meu lugar teria feito o mesmo, Suponho que sim, o caso era demasiado extraordinário para que não se lhe desse importância, Telefonei às pessoas de apelido Santa-Clara que vinham na lista, Disseram-lhe que não me conheciam, evidentemente, Sim, no entanto uma delas lembrou-se de que era a segunda vez que alguém lhe telefonava a perguntar por Daniel Santa-Clara, Que outra pessoa, antes de você, tinha perguntado por mim, Sim, Seria alguma admiradora, Não, um homem, É estranho, Mais estranho ainda foi ter-me dito que o homem parecia querer disfarçar a voz, Não percebo, por que a disfarçaria ele, Não tenho nenhuma ideia, Pode ter sido impressão da pessoa com quem falou, Talvez, E como foi que finalmente deu comigo, Escrevi à empresa produtora, Surpreende-me que o tenham informado da minha direcção, Também me deram o seu verdadeiro nome, Julguei que só o sabia da primeira conversa que teve com a minha mulher, Disse-mo a empresa, No que me diz respeito, pelo menos que seja do meu conhecimento, foi a primeira vez que o fizeram, Meti na carta um parágrafo a falar da importância dos actores secundários, suponho que isso os terá convencido, O mais natural teria sido precisamente o contrário, Ainda assim, consegui-o, E aqui estamos, Sim, aqui estamos. António Claro bebeu um trago de uísque, Tertuliano Máximo Afonso molhou os lábios no conhaque, depois olharam-se, e no mesmo instante desviaram a vista. Pela porta que continuava aberta entrava a luz declinante da tarde. Tertuliano Máximo Afonso afastou o seu copo para o lado e espalmou as duas mãos sobre o tampo da mesa, com os dedos esticados, em estrela, Comparemos, disse. António Claro tomou outro trago de uísque e colocou as suas em simetria com as dele, pressionando-as contra a mesa para não se perceber que tremiam. Tertuliano Máximo Afonso dava a impressão