No dia seguinte, depois de Helena ter saído, António Claro ligou para casa de Maria da Paz. Não se sentia especialmente nervoso ou excitado, o silêncio iria ser o seu escudo protector. A voz que de lá respondeu era baça, com a fragilidade hesitante de quem está convalescente de uma incomodidade física, e, sendo embora, por todos os indícios, de uma mulher já de certa idade, não soa tão quebradiça como a de uma velha, ou uma anciã, para quem prefira os eufemismos. Não foram muitas as palavras que pronunciou, Está lá, está, quem fala, faça o favor de responder, está, está, que falta de respeito, nem em sua própria casa uma pessoa pode estar tranquila, e desligou, mas Daniel Santa-Clara, apesar de não orbitar no sistema solar dos actores de primeira grandeza, tem um excelente ouvido, para parentescos neste caso, por isso não lhe deu nenhum trabalho deduzir que a idosa senhora, se não é a mãe, é a avó, e se não é a avó, é a tia, com exclusão radical, por se encontrar francamente fora das realidades actuais, daquele gasto tópico literário da criada velha que por amor aos seus amos não se casou. Evidentemente, só por uma questão de método, falta ainda averiguar se há homens na casa, um pai, um avô, algum tio, algum irmão, mas com tal possibilidade não terá por que preocupar-se muito António Claro, uma vez que, em tudo e para tudo, para a saúde e para a doença, para a vida e para a morte, não é como Daniel Santa-Clara que irá aparecer a Maria da Paz, mas como Tertuliano Máximo Afonso, e esse, quer como amigo, quer como amante, se não lhe abriram a porta de par em par, deverá, pelo menos, desfrutar das vantagens de um estatuto relacional tacitamente reconhecido. Se a António Claro perguntássemos qual seria a sua preferência, de acordo com os fins que tem em vista, quanto à natureza da relação de Tertuliano Máximo Afonso e de Maria da Paz, se a de amantes, se a de amigos, não tenhamos dúvidas de que nos responderia que se essa relação fosse simplesmente de amizade não teria, para si, nem a metade do interesse que se fossem amantes. Como se pode ver, o plano de acção que António Claro tinha vindo a delinear não só avançou muito na localização dos objectivos como principia a ganhar a consistência de motivos que lhe faltava, embora tal consistência, salvo grave equívoco de interpretação da nossa parte, pareça ter sido conseguida graças a malévolas ideias de desforra pessoal que a situação, tal como se nos apresentava, não prometia nem de modo algum justificava. É verdade que Tertuliano Máximo Afonso desafiou frontalmente Daniel Santa-Clara quando, sem uma palavra, e isso foi talvez o pior, lhe despachou a barba postiça, mas com um pouco de senso comum as coisas poderiam ter ficado por aí, António Claro poderia ter encolhido os ombros e dizer para a mulher, O tipo é imbecil, se pensou que eu me deixaria levar pela provocação, estava muito enganado, atira-me esta porcaria para o caixote do lixo, e se cai na asneira de insistir com disparates destes, chama-se a polícia e acaba-se de uma vez a história, sejam quais forem as consequências. Infelizmente, o senso comum nem sempre aparece quando é necessário, não sendo poucas as vezes em que de uma sua ausência momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras. A prova de que o universo não foi tão bem pensado quanto conviria está no facto de ter o Criador mandado chamar sol à estrela que nos ilumina. Levasse o astro-rei o nome de Senso Comum e já veríamos como andaria hoje esclarecido o espírito humano, e isto tanto no que se refere ao diurno como ao nocturno, porque, não há quem o ignore, a luz que dizemos da lua, luz da lua não é, mas sempre, e unicamente, luz do sol. É caso para pensar que se tantas foram as cosmogonias criadas desde o nascimento da fala e da palavra foi porque todas e] as, uma por uma, falharam miseravelmente, regularidade essa que não augura nada de bom à que, com algumas variações, nos vem consensualmente regendo… Voltemos, porém, a António Claro. Está visto que ele quer, e o mais depressa possível, conhecer Maria da Paz, por más razões meteu-se-lhe a obsessiva vindicação na cabeça, e, como decerto já se terá percebido, não há nem no céu nem na terra forças que daí o consigam arredar. Não poderá, evidentemente, ir postar-se à porta do prédio onde ela vive e perguntar a cada mulher que venha entrando ou saindo, É você a Maria da Paz, também não poderá confiar-se às mãos dos fortuitos acasos da sorte, por exemplo, ir passear uma, duas, três vezes à rua em que ela mora, e à terceira vez dizer à primeira mulher que lhe aparecer pela frente, Você tem cara de ser Maria da Paz, não pode imaginar o enorme prazer que sinto por finalmente a conhecer, sou actor de cinema e chamo-me Daniel Santa-Clara, permita-me que a convide a tomar um café, é só atravessar a rua, estou convencido de que iremos ter muito para dizer um ao outro, a barba, ali sim, a barba, felicito-a por ser tão arguta e não se deixar enganar, mas rogo-lhe que não se assuste, esteja tranquila, quando nos encontrarmos num sítio discreto, um sítio em que eu a possa tirar sem perigo, verá como diante de si vai aparecer uma pessoa a quem conhece bem, creio até que intimamente, e a quem eu, sem a mínima inveja, felicitaria agora mesmo se aqui estivesse, o nosso Tertuliano Máximo Afonso. A pobre senhora ficaria terrivelmente confundida perante a prodigiosa transmutação, inexplicável a todos os títulos nesta altura da narrativa, é indispensável ter sempre presente a ideia condutora fundamental de que as coisas deverão aguardar o seu momento com paciência, não empurrar nem estender o braço por cima do ombro das que chegaram primeiro, não gritar, Aqui estou eu, ainda que não seja de desprezar totalmente a hipótese de que, se uma vez por outra, as deixássemos passar à frente, talvez certos males que se adivinham perdessem parte da virulência, ou se desvanecessem como fumo no ar, por um motivo tão banal como terem perdido a sua vez, Este derramar de considerações e análises, este espraiar complacente de reflexões e derivados em que ultimamente nos temos demorado, não deverão fazer perder de vista a prosaica realidade de que, no fundo, no fundo, o que António Claro quer saber é se Maria da Paz vai valer a pena, se vai realmente valer o trabalho que lhe está a dar. Fosse ela uma mulher desgraciosa, um pau-de-virar-tripas ou, pelo contrário, sofresse de uma excessiva abundância de volumes, o que, tanto num caso como no outro, apressemo-nos já a dizer, não constituiria obstáculo de maior se o amor tivesse posto o resto, e aí veríamos Daniel Santa-Clara a voltar rapidamente para trás, como tantas vezes terá acontecido em tempos passados, naqueles encontros que se tratavam por carta, as estratégias ridículas, as identificações ingénuas, eu levarei uma sombrinha azul na mão direita, eu levarei uma flor branca na botoeira, e finalmente nem sombrinha nem flor, talvez um deles esperando em vão no lugar combinado, ou então nem um nem outro, a flor atirada precipitadamente para a valeta, a sombrinha a esconder um rosto que afinal não quis ser visto. Que vá, porém, Daniel Santa-Clara tranquilo, Maria da Paz é uma mulher jovem, bonita, elegante, bem torneada no corpo e bem feita no carácter, atributo este, em todo o caso, não determinante na matéria em exame, uma vez que a balança em que antes se decidia a sorte da sombrinha e o destino da flor não é hoje especialmente sensível a ponderações dessa natureza. No entanto, António Claro tem ainda uma questão importante para resolver se não quiser passar horas e horas pespegado no passeio em frente da casa de Maria da Paz à espera de que ela apareça, com as fatais e perigosas consequências resultantes da natural desconfiança dos vizinhos, que não levariam muito tempo a telefonar à polícia avisando da presença suspeita de um homem de barbas que com certeza não veio aqui para segurar o prédio com as costas. Há que recorrer, por conseguinte, ao raciocínio e à lógica. O mais provável, evidentemente, é que Maria da Paz trabalhe, que tenha um emprego regular e horas certas de entrar e sair. Como Helena. António Claro não quer pensar em Helena, a si mesmo repete que uma coisa não tem nada que ver com a outra, que o que se passar com Maria da Paz não irá pôr em risco o seu casamento, até se lhe poderia chamar um mero capricho, desses a que se diz serem facilmente sujeitos os homens, se as palavras mais exactas, no caso presente, não fossem antes as de desforra, desforço, despique, desagravo, desafronta, represália, rancor, vindicta, se não mesmo a pior de todas, ódio. Meu Deus, que exagero, o que aí vai, dirão as pessoas felizes que nunca se viram diante de uma cópia de si mesmas, que nunca receberam a insolente desfeita de uma barba postiça dentro de uma caixa e sem, ao menos, um bilhete com uma palavra simpática ou bem-humorada que amenizasse o choque. O que neste momento acaba de passar pela cabeça de António Claro vai mostrar até que ponto, contra o mais elementar bom senso, uma mente dominada por sentimentos inferiores é capaz de obrigar a própria consciência a pactuar com eles, forçando-a, ardilosamente, a por as piores acções em harmonia com as melhores razões e a justificá-las umas pelas outras, numa espécie de jogo cruzado em que sempre o mesmo terá de ganhar ou de perder. O que António Claro acabou de pensar, por incrível que nos pareça, foi que levar a amante de Tertuliano Máximo Afonso para a cama à falsa fé, além de responder à bofetada com uma bofetada mais sonora, será, imagine-se o absurdo propósito, a mais drástica maneira de desagravar a dignidade ofendida de Helena, sua mulher. Ainda que lho rogássemos com todo o empenho, António Claro não nos saberia explicar que ofensas tão singulares teriam sido essas que só uma nova e não menos chocante ofensa poderia supostamente desagravar. Ele tem esta ideia fixa, não há nada a fazer por agora. Já não é pouco que consiga ainda tornar ao raciocínio interrompido, aquele em que se havia lembrado de Helena como similar a Maria da Paz nas suas obrigações de empregadas, aquilo do trabalho regular e das entradas e saídas a horas certas. Em lugar de andar rua acima, rua abaixo, na expectativa de um mais que improvável encontro ocasional, o que deverá fazer é ir para lá muito cedo, colocar-se num sítio onde não seja notado, esperar que Maria da Paz saia e depois segui-la até ao emprego. Nada mais fácil, dir-se-á, e, contudo, que enorme engano. A primeira dificuldade está em ignorar ele se Maria da Paz, ao sair de casa, virará à esquerda ou virará à direita, e portanto até que ponto a sua posição de vigilante, em relação quer à direcção por ela escolhida, quer ao lugar onde ele próprio deixará o carro, virá a complicar ou a facilitar a tarefa do seguimento, sem esquecer ainda, e aqui se apresenta o segundo e não menor embaraço