um pouco de senso comum as coisas poderiam ter ficado por aí, António Claro poderia ter encolhido os ombros e dizer para a mulher, O tipo é imbecil, se pensou que eu me deixaria levar pela provocação, estava muito enganado, atira-me esta porcaria para o caixote do lixo, e se cai na asneira de insistir com disparates destes, chama-se a polícia e acaba-se de uma vez a história, sejam quais forem as consequências. Infelizmente, o senso comum nem sempre aparece quando é necessário, não sendo poucas as vezes em que de uma sua ausência momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras. A prova de que o universo não foi tão bem pensado quanto conviria está no facto de ter o Criador mandado chamar sol à estrela que nos ilumina. Levasse o astro-rei o nome de Senso Comum e já veríamos como andaria hoje esclarecido o espírito humano, e isto tanto no que se refere ao diurno como ao nocturno, porque, não há quem o ignore, a luz que dizemos da lua, luz da lua não é, mas sempre, e unicamente, luz do sol. É caso para pensar que se tantas foram as cosmogonias criadas desde o nascimento da fala e da palavra foi porque todas e] as, uma por uma, falharam miseravelmente, regularidade essa que não augura nada de bom à que, com algumas variações, nos vem consensualmente regendo… Voltemos, porém, a António Claro. Está visto que ele quer, e o mais depressa possível, conhecer Maria da Paz, por más razões meteu-se-lhe a obsessiva vindicação na cabeça, e, como decerto já se terá percebido, não há nem no céu nem na terra forças que daí o consigam arredar. Não poderá, evidentemente, ir postar-se à porta do prédio onde ela vive e perguntar a cada mulher que venha entrando ou saindo, É você a Maria da Paz, também não poderá confiar-se às mãos dos fortuitos acasos da sorte, por exemplo, ir passear uma, duas, três vezes à rua em que ela mora, e à terceira vez dizer à primeira mulher que lhe aparecer pela frente, Você tem cara de ser Maria da Paz, não pode imaginar o enorme prazer que sinto por finalmente a conhecer, sou actor de cinema e chamo-me Daniel Santa-Clara, permita-me que a convide a tomar um café, é só atravessar a rua, estou convencido de que iremos ter muito para dizer um ao outro, a barba, ali sim, a barba, felicito-a por ser tão arguta e não se deixar enganar, mas rogo-lhe que não se assuste, esteja tranquila, quando nos encontrarmos num sítio discreto, um sítio em que eu a possa tirar sem perigo, verá como diante de si vai aparecer uma pessoa a quem conhece bem, creio até que intimamente, e a quem eu, sem a mínima inveja, felicitaria agora mesmo se aqui estivesse, o nosso Tertuliano Máximo Afonso. A pobre senhora ficaria terrivelmente confundida perante a prodigiosa transmutação, inexplicável a todos os títulos nesta altura da narrativa, é indispensável ter sempre presente a ideia condutora fundamental de que as coisas deverão aguardar o seu momento com paciência, não empurrar nem estender o braço por cima do ombro das que chegaram primeiro, não gritar, Aqui estou eu, ainda que não seja de desprezar totalmente a hipótese de que, se uma vez por outra, as deixássemos passar à frente, talvez certos males que se adivinham perdessem parte da virulência, ou se desvanecessem como fumo no ar, por um motivo tão banal como terem perdido a sua vez, Este derramar de considerações e análises, este espraiar complacente de reflexões e derivados em que ultimamente nos temos demorado, não deverão fazer perder de vista a prosaica realidade de que, no fundo, no fundo, o que António Claro quer saber é se Maria da Paz vai valer a pena, se vai realmente valer o trabalho que lhe está a dar. Fosse ela uma mulher desgraciosa, um pau-de-virar-tripas ou, pelo contrário, sofresse de uma excessiva abundância de volumes, o que, tanto num caso como no outro, apressemo-nos já a dizer, não constituiria obstáculo de maior se o amor tivesse posto o resto, e aí veríamos Daniel Santa-Clara a voltar rapidamente para trás, como tantas vezes terá acontecido em tempos passados, naqueles encontros que se tratavam por carta, as estratégias ridículas, as identificações ingénuas, eu levarei uma sombrinha azul na mão direita, eu levarei uma flor branca na botoeira, e finalmente nem sombrinha nem flor, talvez um deles esperando em vão no lugar combinado, ou então nem um nem outro, a flor atirada precipitadamente para a valeta, a sombrinha a esconder um rosto que afinal não quis ser visto. Que vá, porém, Daniel Santa-Clara tranquilo, Maria da Paz é uma mulher jovem, bonita, elegante, bem torneada no corpo e bem feita no carácter, atributo este, em todo o caso, não determinante na matéria em exame, uma vez que a balança em que antes se decidia a sorte da sombrinha e o destino da flor não é hoje especialmente sensível a ponderações dessa natureza. No entanto, António Claro tem ainda uma questão importante para resolver se não quiser passar horas e horas pespegado no passeio em frente da casa de Maria da Paz à espera de que ela apareça, com as fatais e perigosas consequências resultantes da natural desconfiança dos vizinhos, que não levariam muito tempo a telefonar à polícia avisando da presença suspeita de um homem de barbas que com certeza não veio aqui para segurar o prédio com as costas. Há que recorrer, por conseguinte, ao raciocínio e à lógica. O mais provável, evidentemente, é que Maria da Paz trabalhe, que tenha um emprego regular e horas certas de entrar e sair. Como Helena. António Claro não quer pensar em Helena, a si mesmo repete que uma coisa não tem nada que ver com a outra, que o que se passar com Maria da Paz não irá pôr em risco o seu casamento, até se lhe poderia chamar um mero capricho, desses a que se diz serem facilmente sujeitos os homens, se as palavras mais exactas, no caso presente, não fossem antes as de desforra, desforço, despique, desagravo, desafronta, represália, rancor, vindicta, se não mesmo a pior de todas, ódio. Meu Deus, que exagero, o que aí vai, dirão as pessoas felizes que nunca se viram diante de uma cópia de si mesmas, que nunca receberam a insolente desfeita de uma barba postiça dentro de uma caixa e sem, ao menos, um bilhete com uma palavra simpática ou bem-humorada que amenizasse o choque. O que neste momento acaba de passar pela cabeça de António Claro vai mostrar até que ponto, contra o mais elementar bom senso, uma mente dominada por sentimentos inferiores é capaz de obrigar a própria consciência a pactuar com eles, forçando-a, ardilosamente, a por as piores acções em harmonia com as melhores razões e a justificá-las umas pelas outras, numa espécie de jogo cruzado em que sempre o mesmo terá de ganhar ou de perder. O que António Claro acabou de pensar, por incrível que nos pareça, foi que levar a amante de Tertuliano Máximo Afonso para a cama à falsa fé, além de responder à bofetada com uma bofetada mais sonora, será, imagine-se o absurdo propósito, a mais drástica maneira de desagravar a dignidade ofendida de Helena, sua mulher. Ainda que lho rogássemos com todo o empenho, António Claro não nos saberia explicar que ofensas tão singulares teriam sido essas que só uma nova e não menos chocante ofensa poderia supostamente desagravar. Ele tem esta ideia fixa, não há nada a fazer por agora. Já não é pouco que consiga ainda tornar ao raciocínio interrompido, aquele em que se havia lembrado de Helena como similar a Maria da Paz nas suas obrigações de empregadas, aquilo do trabalho regular e das entradas e saídas a horas certas. Em lugar de andar rua acima, rua abaixo, na expectativa de um mais que improvável encontro ocasional, o que deverá fazer é ir para lá muito cedo, colocar-se num sítio onde não seja notado, esperar que Maria da Paz saia e depois segui-la até ao emprego. Nada mais fácil, dir-se-á, e, contudo, que enorme engano. A primeira dificuldade está em ignorar ele se Maria da Paz, ao sair de casa, virará à esquerda ou virará à direita, e portanto até que ponto a sua posição de vigilante, em relação quer à direcção por ela escolhida, quer ao lugar onde ele próprio deixará o carro, virá a complicar ou a facilitar a tarefa do seguimento, sem esquecer ainda, e aqui se apresenta o segundo e não menor embaraço, a possibilidade de que ela tenha o seu próprio carro estacionado à porta, não lhe dando tempo a ele para correr ao seu e meter-se no trânsito sem a perder de vista. O mais provável será que falhe em tudo no primeiro dia, que volte no segundo para falhar uma e acertar noutra, e confiar que o patrono dos detectives, impressionado pela pertinácia deste, tome a seu cuidado fazer do dia terceiro uma perfeita e definitiva vitória na arte de seguir um rasto. António Claro terá ainda um problema para resolver, é certo que relativamente insignificante em comparação com as ingentes dificuldades já solucionadas, mas que requer um tacto e uma naturalidade a toda a prova no seu tratamento. Excepto quando as obrigações do trabalho, filmagens matutinas ou em lugar afastado da cidade, lhe impõem que se arranque cedo ao conforto dos lençóis, Daniel Santa-Clara, como já se terá observado, é propenso a deixar-se ficar no choco da cama uma ou duas horas depois de Helena sair para o emprego. Terá portanto de inventar uma boa explicação para o facto insólito de se propor madrugar, não um dia, mas dois, e talvez mesmo três, quando, como sabemos, se encontra num período de pousio profissional, à espera do sinal de acção para O Julgamento do Ladrão Simpático, em que interpretará o papel de um advogado auxiliar. Dizer a Helena que tem uma reunião com os produtores não seria de todo uma má. ideia se as averiguações sobre Maria da Paz ficassem concluídas em um só dia, mas a probabilidade de que tal sorte suceda é, vistas as circunstâncias, mais do que remota. Por outro lado, os dias precisos às suas indagações não terão de ser necessariamente sucessivos, nem isso seria conveniente, pensando bem, para o fim que tem em vista, porquanto o aparecimento de um homem de barbas três dias a fio na rua onde mora Maria da Paz, além de despertar suspeitas e alarme na vizinhança, como deixámos dito antes, poderia ocasionar o renascimento de pesadelos infantis historicamente fora de tempo, portanto traumáticos a dobrar, quando tão certos estávamos de que o advento da televisão havia limpado da imaginação das crianças modernas, e de uma vez para sempre, a ameaça terrível que o homem das barbas representou para gerações e gerações de infantes inocentes. Posto a pensar nesta via, António Claro chegou rapidamente à conclusão de que não tinha qualquer sentido estar a preocupar-se com hipotéticos segundos e terceiros dias ainda antes de saber o que o primeiro teria para lhe oferecer. Dirá portanto a Helena que amanhã vai participar numa reunião de trabalho na produtora, Terei de lá estar o mais tardar às oito, Tão cedo, estranhará ela, sem demasiada ênfase, Só podia ser nesta hora, o realizador sai para o aeroporto ao meio-dia, Muito bem, disse ela, e foi-se meter na cozinha, fechando a porta, para decidir o que faria para o jantar. Tinha tempo de sobra, mas queria estar sozinha.