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mo instante, mal tinha acabado de pronunciar a sentença aparentemente irremissível, uma espécie de lassidão interior, um anseio meio consciente de abdicação, como se uma voz dentro da sua cabeça trabalhasse para lhe fazer ver que talvez a sua obstinação não fosse outra coisa que o último reduto detrás do qual ainda tentava abafar a sua vontade de içar a bandeira branca das rendições incondicionais. Se assim é, cogitou, tenho a obrigação estrita de reflectir a sério no assunto, analisar temores e indecisões que o mais provável é que sejam herança do outro casamento, e sobretudo resolver de uma vez, para meu próprio governo, que vem a ser isso de gostar de uma pessoa ao ponto de querer viver com ela, porque a verdade manda-me reconhecer que nem em tal pensei quando me casei, e a mesma verdade, já agora, manda que confesse que, no fundo, o que me assusta é a possibilidade de falhar outra vez. Estes louváveis propósitos entretiveram a viagem de Tertuliano Máximo Afonso, alternando com imagens fugazes de António Claro que o pensamento, curiosamente, se negava a representar na semelhança total que lhe correspondia, como se, contra a própria evidência dos factos, se recusasse a admitir-lhe a existência. Recordava também fragmentos das conversas que havia tido com ele, sobretudo a da casa no campo, mas com uma impressão singular de distância e alheamento, como se nada daquilo tivesse realmente que ver consigo, como se se tratasse de uma história em tempos lida num livro e da qual não restassem mais que algumas páginas soltas. Prometeu à mãe que nunca mais se encontrará com António Claro e assim será, ninguém o poderá acusar amanhã de haver dado um só passo nesse sentido. A vida vai mudar. Telefonará a Maria da Paz assim que chegar a casa, Devia ter ligado lá de cima, pensou, foi uma falta de atenção que não tem desculpa, nem que fosse, ao menos, para saber do estado de saúde da mãe, era o mínimo, tanto mais que pode bem acontecer que ela venha a ser minha sogra. Sorriu Tertuliano Máximo Afonso a uma perspectiva que vinte e quatro horas antes lhe teria feito crispar os nervos, está visto que as férias lhe fizeram bem ao corpo e ao espírito, sobretudo aclararam-lhe as ideias, é outro homem. Chegou ao fim da tarde, arrumou o carro em frente da porta, e ágil, flexível, bem-disposto, como se não tivesse acabado de fazer, sem parar uma só vez, mais de quatrocentos quilómetros, subiu a escada com a ligeireza de um adolescente, nem dava pelo peso de uma mala que, como é natural, carregava mais à volta que à ida, e pouco lhe faltou para entrar em casa em passo de dança. De acordo com as convenções tradicionais do género literário a que foi dado o nome de romance e que assim terá de continuar a ser chamado enquanto não se inventar uma designação mais conforme às suas actuais configurações, esta alegre descrição, organizada numa sequência simples de dados narrativos em que, de modo deliberado, não se permitiu a introdução de um único elemento de teor negativo, estaria ali, arteiramente, a preparar uma operação de contraste que, dependendo dos objectivos do ficcionista, tanto poderia ser dramática como brutal ou aterradora, por exemplo, uma pessoa assassinada no chão e ensopada no seu próprio sangue, uma reunião consistorial de almas do outro mundo, um enxame de abelhões furiosos de cio que confundissem um professor de História com a abelha-mestra, ou, pior ainda, tudo isto reunido em um só pesadelo, uma vez que, como se tem demonstrado à saciedade, não existem limites para a imaginação dos romancistas ocidentais, pelo menos desde o antes citado Homero, que, pensando bem, foi o primeiro de todos eles. A casa de Tertuliano Máximo Afonso abriu-lhe os braços como uma outra mãe, com a voz do ar murmurou, Vem, meu filho, aqui me encontras à tua espera, eu sou o teu castelo e o teu baluarte, contra mim não vale nenhum poder, porque sou tua mesmo quando estás ausente, e mesmo destruída serei sempre o lugar que foi teu. Tertuliano Máximo Afonso pousou a mala no chão e ligou as luzes do tecto. A sala estava arrumada, sobre os tampos dos móveis não havia um grão de pó, é uma grande e solene verdade que os homens, mesmo vivendo sozinhos, nunca conseguem separar-se inteiramente das mulheres, e agora não estávamos a pensar em Maria da Paz, que por suas pessoais e duvidosas razões apesar de tudo o confirmaria, mas à vizinha do andar de cima, que ontem passou aqui toda a manhã a limpar, com tanto cuidado e atenção como se a casa fosse sua, ou mais ainda, provavelmente, que se o fosse. O gravador de chamadas tem a luz acesa, Tertuliano Máximo Afonso senta-se para escutar. A primeira que lhe saltou lá de dentro foi a do director da escola a desejar-lhe umas boas férias e a querer saber se a redacção da proposta para o ministério ia avançando, Sem prejuízo, escusado seria dizer, do seu legítimo direito ao descanso depois de um ano lectivo tão trabalhoso, a segunda fez ouvir a voz pachorrenta e paternal do colega de Matemática, nada de importante, apenas para perguntar como andava ele a sentir-se do marasmo e sugerir que um largo passeio pelo país, sem nenhuma pressa e em boa companhia, talvez fosse a melhor terapêutica para os seus padecimentos, a terceira chamada era a que António Claro deixou no outro dia, a que começava assim, Boas tardes, fala António Claro, calculo que não estaria à espera de uma chamada minha, bastou que a voz dele tivesse ressoado naquela até aí tranquila sala para se tornar evidente que as convenções tradicionais do romance atrás citadas não são, afinal de contas, um mero e desgastado recurso de narradores ocasionalmente minguados de imaginação, mas sim uma resultante literária do majestoso equilíbrio cósmico, uma vez que o universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências, de modo a culminar, como o vem demonstrando o incessante espectáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto ou uma hora, como um ano ou um século. Recordemos a excelente disposição com que o nosso Tertuliano Máximo Afonso entrou em casa, recordemos, uma vez mais, que, de acordo com as convenções tradicionais do romance, reforçadas pela efectiva existência da maquinaria de compensação universal a que acabámos de fazer fundamentada referência, deveria ter dado de caras com algo que no mesmo instante lhe destruísse a alegria e o afundasse nas vascas do desespero, da aflição, do medo, de tudo o que sabemos que é possível encontrar ao virar uma esquina ou ao meter a chave a uma porta. Os monstruosos terrores que então descrevemos não passaram de exemplos simples, poderiam ter sido aqueles, poderiam ter sido piores, e afinal fiem uns nem outros, a casa abriu maternalmente os braços ao seu proprietário, disse-lhe umas quantas palavras bonitas, das que todas as casas sabem dizer, mas que na maior parte das vezes os seus moradores não aprenderam a ouvir, enfim, para não ter de usar mais palavras, parecia que nada poderia estragar o regresso feliz de Tertuliano Máximo Afonso ao lar. Puro engano, pura confusão, ilusão pura. As rodagens da maquinaria cósmica tinham-se transportado para os intestinos electrónicos do gravador de chamadas, à espera de que um dedo viesse premir o botão que abriria a porta da jaula ao último e mais temível dos monstros, não já o cadáver ensanguentado no chão, não já o inconsistente consistório de fantasmas, não já a nuvem zumbidora e libidinosa dos zângões, mas a voz estudada e insinuadora de António Claro, estes seus instantes rogos, que, por favor, nos tornemos a ver, que, por favor, temos muitas coisas para falar um com o outro, quando nós, os que deste lado estamos, somos boas testemunhas de que ainda ontem, por estas precisas horas, Tertuliano Máximo Afonso estava a prometer à mãe que nunca mais voltaria a ter trato com aquele homem, fosse para se encontrar com ele em pessoa, fosse sequer para lhe telefonar a dizer que o terminado, terminado estava, e que o deixasse em paz e sossego, por favor. Aplaudamos energicamente a decisão, porém, e para isso bastará que nos coloquemos no lugar dele, compadeçamo-nos por um momento do estado de nervos em que a chamada deixou o pobre Tertuliano Máximo Afonso, a testa outra vez banhada em suor, as mãos outra vez trémulas, a sensação até agora não conhecida de que o tecto lhe vai cair em cima da cabeça de um momento para o outro. A luz do gravador permanece acesa, sinal de que ainda há lá dentro uma ou mais chamadas. Sob a violenta impressão do choque que a mensagem de António Claro lhe tinha causado, Tertuliano Máximo Afonso havia feito deter-se o mecanismo de leitura e agora treme de ouvir o resto, não vá aparecer-lhe aquela mesma voz, quem sabe se a marcar, desprezando a sua concordância, o dia, a hora e o local do novo encontro. Levantou-se da cadeira e do abatimento em que havia caído, dirigiu-se ao quarto para trocar de roupa, mas ali mudou de ideias, do que mais está a precisar é de um duche de água fria que o sacuda e revigore, que arraste pelo escoadouro abaixo as nuvens negras que lhe toldam a cabeça e lhe têm embotado o raciocínio ao ponto de nem sequer lhe haver ocorrido antes que o mais provável é que a chamada, ou ao menos uma delas, se outras há, seja de Maria da Paz. Acaba de lhe ocorrer agora mesmo, e foi como se uma bênção retardada tivesse finalmente descido do chuveiro, como se um outro banho lustral, não o das três mulheres nuas na varanda, mas o deste homem só e fechado na precária segurança da sua casa, compassivamente, no mesmo escorrer da água e da espuma, o libertasse das sujidades do corpo e dos temores da alma. Pensou em Maria da Paz com uma espécie de nostálgica serenidade, como teria pensado no porto donde partiu um barco que andasse navegando ao redor do mundo. Lavado e enxuto, refrescado e vestido com roupa limpa, voltou à sala para ouvir o resto das mensagens. Começou por suprimir as do director da escola e do professor de Matemática, que não valia a pena conservar, de testa franzida escutou novamente a de António Claro, que fez desaparecer com um golpe seco na tecla respectiva, e dispôs-se a prestar atenção ao que viria a seguir. A quarta chamada foi de alguém que não quis falar a ligação durou a eternidade de trinta segundos, mas do outro lado não saiu nem um sussurro, nenhuma música se percebeu ao fundo, nem sequer uma levíssima respiração se deixou captar por inadvertência, muito menos de propósito resfolegada, como é de uso no cinema quando se quer fazer subir até à angústia a tensão dramática. Não me digam que é outra vez aquele tipo, pensava Tertuliano Máximo Afonso, furioso, enquanto esperava que desligassem. Não era ele, não poderia ser, quem antes havia deixado um discurso tão completo não iria com certeza fazer outra chamada para ficar calado. A quinta e última ligação foi de Maria da Paz, Sou eu, disse ela, como se no mundo não existisse nenhuma outra pessoa que pudesse dizer, Sou eu, sabendo de antemão que seria reconhecida, Imagino que estarás a chegar por estes dias, espero que tenhas descansado bastante, ainda pensei que me telefonarias de casa da tua mãe, mas já devia saber que contigo não se pode contar para estas coisas, enfim, não importa, ficam-te aí as palavras de recebimento de uma amiga, fala-me quando te apetecer, quando tiveres vontade, mas não como quem se sentiu obrigado a fazê-lo, isso seria mau para ti e para mim, às vezes ponho-me a imaginar o maravilhoso que seria se me telefonasses apenas porque sim, simplesmente como alguém a quem lhe deu a sede e vai beber um copo de água, mas isso já sei que seria pedir-te demasiado, nunca finjas comigo uma sede que não sintas, desculpa, o que eu te vinha dizer não era isto, só desejar-te que regresses a casa com saúde, ah, a propósito de saúde, a minha mãe está muito melhor, já sai para ir à missa e a fazer as suas compras, em poucos dias estará tão bem como antes, um beijo, outro, ainda outro. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a cassete para trás e repetiu a audição, primeiro com o sorriso convencido de quem escuta louvores e lisonjas de cujo merecimento não parece ter dúvidas, a pouco e pouco a expressão foi-se-lhe tornando séria, logo reflexiva, logo inquieta, tinha-lhe vindo à lembrança o que a mãe dissera, Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares, e estas palavras ressoavam agora na sua mente como o último aviso de uma Cassada já cansada de não ser ouvida. Olhou o relógio, Maria da Paz deveria ter voltado do banco. Deu-lhe ainda um quarto de hora, depois ligou. Quem fala, perguntou ela, Sou eu, respondeu ele, Até que enfim, Cheguei ainda não há uma hora, foi só tomar um banho e fazer tempo para ter a certeza de te apanhar em casa, Ouviste o recado que te deixei, Ouvi, Tenho a impressão de que disse coisas que deveria haver calado, Como por exemplo, Já não sou capaz de as recordar exactamente, mas foi como se estivesse a pedir-te pela milésima vez que repares em mim, juro sempre que não voltará a suceder e volto sempre a cair na mesma humilhação, Não digas essa palavra, não é justa para ti, e também não o é para mim, apesar de tudo,, Chama-lhe então o que queiras, o que claramente vejo é que esta situação não poderá continuar, ou então acabarei por perder o pouco respeito por mim mesma que ainda conservo, Continuará, O quê, estás a querer dizer-me que os nossos desencontros vão continuar como até aqui, que não terá fim este meu miserável falar para uma parede que nem ao menos me devolve os ecos, Digo-te que te amo, Já te ouvi outras vezes essas palavras, sobretudo na cama, antes, durante, mas nunca depois, E contudo é verdade, amo-te. Por favor, por favor, não me atormentes mais, Ouve-me, Estou a ouvir-te, nunca quis tanto alguma coisa como ouvir-te, A nossa vida vai mudar, Não acredito, Acredita, tens de acreditar, E tu tem cuidado com o que estás a dizer-me, não me dês hoje esperanças que depois não possas ou não queiras cumprir, Nem tu nem eu sabemos o que nos trará o futuro, por isso é para este dia em que estamos que rogo me concedas a tua confiança, E para que vens pedir-me hoje uma coisa que sempre tiveste, Para viver contigo, para que vivamos juntos, Devo estar a sonhar, é impossível que seja verdade o que acabei de ouvir, Não tenho dúvidas em dizê-lo outra vez, se quiseres, Com a condição de que seja pelas mesmas palavras, Para viver contigo, para que vivamos juntos, Repito que não é possível, as pessoas não mudam assim, de uma hora para a outra, que foi que se passou nessa cabeça ou nesse coração para que estejas a pedir-me que vá viver contigo, quando até agora toda a tua preocupação tinha sido fazer-me perceber que semelhante ideia não entrava nos teus planos e que o melhor era não alimentar ilusões, As pessoas podem mudar de uma hora para a outra continuando a ser as mesmas, É então certo que queres que vivamos juntos, Sim, Que amas Mana da Paz o suficiente para querer viver com ela, Sim, Diz-me outra vez, Sim, sim, sim, Basta, não me afogues, que quase estalo, Cuidado, quero-te completa, Importas-te que diga à minha mãe, levava a vida à espera desta alegria, Claro que não me importo, embora ela não morra propriamente de amores por mim, A pobre lá tinha as suas razões, tu andavas a empatar, não te decidias, ela queria ver a filha feliz, e eu de felicidade não dava grandes mostras, as mães são todas iguais, Queres saber o que a minha me disse ontem, num momento em que falávamos de ti, Que foi, Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares, Suponho que essas eram as palavras que andavas a precisar de ouvir, Assim é, Acordaste e eu ainda aqui estava, não sei por quanto tempo mais, mas estava, Diz à tua mãe que a partir de agora pode dormir descansada, Quem não vai dormir sou eu, Quando nos vemos, Amanhã, mal saia do banco, tomo um táxi e vou para aí, Vem a correr, Para os teus braços. Tertuliano Máximo Afonso pousou o telefone, cerrou os olhos e ouviu Maria da Paz a rir e a gritar, Mãezinha, mãezinha, depois viu as duas abraçadas, e em vez de gritos, murmúrios, em vez de risos, lágrimas, às