homem, fosse para se encontrar com ele em pessoa, fosse sequer para lhe telefonar a dizer que o terminado, terminado estava, e que o deixasse em paz e sossego, por favor. Aplaudamos energicamente a decisão, porém, e para isso bastará que nos coloquemos no lugar dele, compadeçamo-nos por um momento do estado de nervos em que a chamada deixou o pobre Tertuliano Máximo Afonso, a testa outra vez banhada em suor, as mãos outra vez trémulas, a sensação até agora não conhecida de que o tecto lhe vai cair em cima da cabeça de um momento para o outro. A luz do gravador permanece acesa, sinal de que ainda há lá dentro uma ou mais chamadas. Sob a violenta impressão do choque que a mensagem de António Claro lhe tinha causado, Tertuliano Máximo Afonso havia feito deter-se o mecanismo de leitura e agora treme de ouvir o resto, não vá aparecer-lhe aquela mesma voz, quem sabe se a marcar, desprezando a sua concordância, o dia, a hora e o local do novo encontro. Levantou-se da cadeira e do abatimento em que havia caído, dirigiu-se ao quarto para trocar de roupa, mas ali mudou de ideias, do que mais está a precisar é de um duche de água fria que o sacuda e revigore, que arraste pelo escoadouro abaixo as nuvens negras que lhe toldam a cabeça e lhe têm embotado o raciocínio ao ponto de nem sequer lhe haver ocorrido antes que o mais provável é que a chamada, ou ao menos uma delas, se outras há, seja de Maria da Paz. Acaba de lhe ocorrer agora mesmo, e foi como se uma bênção retardada tivesse finalmente descido do chuveiro, como se um outro banho lustral, não o das três mulheres nuas na varanda, mas o deste homem só e fechado na precária segurança da sua casa, compassivamente, no mesmo escorrer da água e da espuma, o libertasse das sujidades do corpo e dos temores da alma. Pensou em Maria da Paz com uma espécie de nostálgica serenidade, como teria pensado no porto donde partiu um barco que andasse navegando ao redor do mundo. Lavado e enxuto, refrescado e vestido com roupa limpa, voltou à sala para ouvir o resto das mensagens. Começou por suprimir as do director da escola e do professor de Matemática, que não valia a pena conservar, de testa franzida escutou novamente a de António Claro, que fez desaparecer com um golpe seco na tecla respectiva, e dispôs-se a prestar atenção ao que viria a seguir. A quarta chamada foi de alguém que não quis falar a ligação durou a eternidade de trinta segundos, mas do outro lado não saiu nem um sussurro, nenhuma música se percebeu ao fundo, nem sequer uma levíssima respiração se deixou captar por inadvertência, muito menos de propósito resfolegada, como é de uso no cinema quando se quer fazer subir até à angústia a tensão dramática. Não me digam que é outra vez aquele tipo, pensava Tertuliano Máximo Afonso, furioso, enquanto esperava que desligassem. Não era ele, não poderia ser, quem antes havia deixado um discurso tão completo não iria com certeza fazer outra chamada para ficar calado. A quinta e última ligação foi de Maria da Paz, Sou eu, disse ela, como se no mundo não existisse nenhuma outra pessoa que pudesse dizer, Sou eu, sabendo de antemão que seria reconhecida, Imagino que estarás a chegar por estes dias, espero que tenhas descansado bastante, ainda pensei que me telefonarias de casa da tua mãe, mas já devia saber que contigo não se pode contar para estas coisas, enfim, não importa, ficam-te aí as palavras de recebimento de uma amiga, fala-me quando te apetecer, quando tiveres vontade, mas não como quem se sentiu obrigado a fazê-lo, isso seria mau para ti e para mim, às vezes ponho-me a imaginar o maravilhoso que seria se me telefonasses apenas porque sim, simplesmente como alguém a quem lhe deu a sede e vai beber um copo de água, mas isso já sei que seria pedir-te demasiado, nunca finjas comigo uma sede que não sintas, desculpa, o que eu te vinha dizer não era isto, só desejar-te que regresses a casa com saúde, ah, a propósito de saúde, a minha mãe está muito melhor, já sai para ir à missa e a fazer as suas compras, em poucos dias estará tão bem como antes, um beijo, outro, ainda outro. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a cassete para trás e repetiu a audição, primeiro com o sorriso convencido de quem escuta louvores e lisonjas de cujo merecimento não parece ter dúvidas, a pouco e pouco a expressão foi-se-lhe tornando séria, logo reflexiva, logo inquieta, tinha-lhe vindo à lembrança o que a mãe dissera, Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares, e estas palavras ressoavam agora na sua mente como o último aviso de uma Cassada já cansada de não ser ouvida. Olhou o relógio, Maria da Paz deveria ter voltado do banco. Deu-lhe ainda um quarto de hora, depois ligou. Quem fala, perguntou ela, Sou eu, respondeu ele, Até que enfim, Cheguei ainda não há uma hora, foi só tomar um banho e fazer tempo para ter a certeza de te apanhar em casa, Ouviste o recado que te deixei, Ouvi, Tenho a impressão de que disse coisas que deveria haver calado, Como por exemplo, Já não sou capaz de as recordar exactamente, mas foi como se estivesse a pedir-te pela milésima vez que repares em mim, juro sempre que não voltará a suceder e volto sempre a cair na mesma humilhação, Não digas essa palavra, não é justa para ti, e também não o é para mim, apesar de tudo,, Chama-lhe então o que queiras, o que claramente vejo é que esta situação não poderá continuar, ou então acabarei por perder o pouco respeito por mim mesma que ainda conservo, Continuará, O quê, estás a querer dizer-me que os nossos desencontros vão continuar como até aqui, que não terá fim este meu miserável falar para uma parede que nem ao menos me devolve os ecos, Digo-te que te amo, Já te ouvi outras vezes essas palavras, sobretudo na cama, antes, durante, mas nunca depois, E contudo é verdade, amo-te. Por favor, por favor, não me atormentes mais, Ouve-me, Estou a ouvir-te, nunca quis tanto alguma coisa como ouvir-te, A nossa vida vai mudar, Não acredito, Acredita, tens de acreditar, E tu tem cuidado com o que estás a dizer-me, não me dês hoje esperanças que depois não possas ou não queiras cumprir, Nem tu nem eu sabemos o que nos trará o futuro, por isso é para este dia em que estamos que rogo me concedas a tua confiança, E para que vens pedir-me hoje uma coisa que sempre tiveste, Para viver contigo, para que vivamos juntos, Devo estar a sonhar, é impossível que seja verdade o que acabei de ouvir, Não tenho dúvidas em dizê-lo outra vez, se quiseres, Com a condição de que seja pelas mesmas palavras, Para viver contigo, para que vivamos juntos, Repito que não é possível, as pessoas não mudam assim, de uma hora para a outra, que foi que se passou nessa cabeça ou nesse coração para que estejas a pedir-me que vá viver contigo, quando até agora toda a tua preocupação tinha sido fazer-me perceber que semelhante ideia não entrava nos teus planos e que o melhor era não alimentar ilusões, As pessoas podem mudar de uma hora para a outra continuando a ser as mesmas, É então certo que queres que vivamos juntos, Sim, Que amas Mana da Paz o suficiente para querer viver com ela, Sim, Diz-me outra vez, Sim, sim, sim, Basta, não me afogues, que quase estalo, Cuidado, quero-te completa, Importas-te que diga à minha mãe, levava a vida à espera desta alegria, Claro que não me importo, embora ela não morra propriamente de amores por mim, A pobre lá tinha as suas razões, tu andavas a empatar, não te decidias, ela queria ver a filha feliz, e eu de felicidade não dava grandes mostras, as mães são todas iguais, Queres saber o que a minha me disse ontem, num momento em que falávamos de ti, Que foi, Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares, Suponho que essas eram as palavras que andavas a precisar de ouvir, Assim é, Acordaste e eu ainda aqui estava, não sei por quanto tempo mais, mas estava, Diz à tua mãe que a partir de agora pode dormir descansada, Quem não vai dormir sou eu, Quando nos vemos, Amanhã, mal saia do banco, tomo um táxi e vou para aí, Vem a correr, Para os teus braços. Tertuliano Máximo Afonso pousou o telefone, cerrou os olhos e ouviu Maria da Paz a rir e a gritar, Mãezinha, mãezinha, depois viu as duas abraçadas, e em vez de gritos, murmúrios, em vez de risos, lágrimas, às vezes perguntamo-nos por que tardou tanto a felicidade a chegar, por que não veio mais cedo, mas se nos aparece de improviso, como neste caso, quando já não a esperávamos, então o mais provável é que não saibamos que fazer, e não é tanto a questão de escolher entre o rir e o chorar, é a secreta angústia de pensar que talvez não consigamos estar à altura. Como se estivesse a voltar a hábitos esquecidos, Tertuliano Máximo Afonso foi à cozinha ver se encontrava algo para comer. As eternas latas, pensou. Pegado ao frigorífico havia um papel que dizia em grandes letras, vermelhas para que melhor se vissem, Tem sopa no frigorífico, era da vizinha de cima, bendita seja, desta vez as latas esperarão. Moído da viagem, cansado pelas emoções, Tertuliano Máximo Afonso foi para a cama ainda não eram onze horas. Tentou ler uma página das civilizações mesopotâmicas, por duas vezes se lhe foi o livro das mãos, por fim apagou a luz e dispôs-se a dormir. Deslizava devagarinho para o sono quando Maria da Paz lhe veio sussurrar ao ouvido, Que maravilhoso seria se me telefonasses apenas porque sim. Provavelmente diria o resto da frase, mas ele já se tinha levantado, já tinha vestido o roupão por cima do pijama, já mareava o número. Maria da Paz perguntou, És tu, e ele respondeu, Sou eu, deu-me a sede, venho pedir um copo de água.