O professor de Matemática sentiu o ombro de Tertuliano Máximo Afonso tornar-se tenso debaixo da sua mão, como se todo o corpo, dos pés à cabeça, tivesse endurecido de repente, e foi tão forte o choque recebido, a impressão tão intensa, que o forçou a retirar o braço. Fê-lo o mais devagar que pôde, procurando que não se percebesse que sabia ter sido repelido, mas a insólita dureza do olhar de Tertuliano Máximo Afonso não lhe permitia dúvidas, o pacífico, o dócil, o submisso professor de História a quem se habituara a tratar com amigável mas superior indulgência, é neste momento outra pessoa. Perplexo, como se o tivessem posto diante de um jogo de que não soubesse as regras, disse, Bom, vemo-nos mais tarde, hoje não almoço na escola. Tertuliano Máximo Afonso baixou a cabeça como única resposta e foi para a aula.
Ao contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos um grau acima do mero exercício escolar, o homem não havia mudado, o homem era o mesmo. A repentina alteração de humor observada em Tertuliano Máximo Afonso e que tão abalado havia deixado o professor de Matemática não fora mais que uma simples manifestação somática da patologia psíquica vulgarmente conhecida como ira dos mansos. Fazendo um breve desvio à matéria central, talvez consigamos entender-nos melhor se nos reportarmos à divisão clássica, é certo que algo desacreditada pelos modernos avanços da ciência, que distribuía os temperamentos humanos em quatro grandes tipos, a saber, o melancólico, produzido pela bílis negra, o fleumático, que obviamente resultava da fleuma, o sanguíneo, relacionado não menos obviamente com o sangue, e finalmente o colérico, que era consequência da bílis branca. Como facilmente se verifica, nesta divisão quaternária e primariamente simétrica dos humores não havia lugar onde pudesse arrumar-se a comunidade dos mansos. No entanto, a História, que nem sempre se equivoca, assegura-nos que eles já existiam, e até em grande número, naqueles tempos remotos, tal como hoje a Actualidade, capítulo da História que sempre está por escrever, nos diz que não só continuam a existir, como existem ainda em muito maior número. A explicação desta anomalia, que, aceitando-a, tanto nos serviria para compreender as obscuras penumbras da Antiguidade como as festivas iluminações do Agora, talvez possa encontrar-se no facto de, quando da definição e estabelecimento do quadro clínico acima descrito, um outro humor haver sido esquecido. Referimo-nos à lágrima. É surpreendente, para não dizer filosoficamente escandaloso, que algo tão visível, tão corrente e tão abundante como sempre foram as lágrimas tenha passado despercebido aos venerandos sábios da Antiguidade e tão pouca consideração mereça aos não menos sábios se bem que menos venerandos do Agora. Perguntar-se-á que tem esta extensa digressão que ver com a ira dos mansos, sobretudo se tomarmos em conta que a Tertuliano Máximo Afonso, que tão flagrantemente lhe deu vazão, não o vimos chorar até agora. A denúncia que acabamos de fazer da ausência da lágrima na teoria da medicina humoral não significa que os mansos, por natureza mais sensíveis, e portanto mais propensos a essa manifestação líquida dos sentimentos, andem todo o santo dia de lenço na mão assoando o nariz e enxugando de minuto a minuto os olhos pisados de choro. Significa, sim, que muito bem poderá uma pessoa, homem ou mulher, estar a despedaçar-se no seu interior por efeito da solidão, do desamparo, da timidez, daquilo que os dicionários descrevem como um estado afectivo desencadeado nas relações sociais e com manifestações volitivas, posturais e neurovegetativas, e não obstante, às vezes até por causa de uma simples palavra, por um dá-cá-aquela-palha, por um gesto bem intencionado mas em excesso protector, como aquele que há pouco escapou ao professor de Matemática, eis que o pacífico, o dócil, o submisso de repente desaparecem da cena e em seu lugar, desconcertante e incompreensível para os que da alma humana já supunham saber tudo, surge o ímpeto cego e arrasador da ira dos mansos. O mais normal é que dure pouco, mas dá medo quando se manifesta. Por isso, para muita gente, a prece mais fervorosa, na hora de ir para a cairia, não é o consabido pai-nosso ou a sempiterna ave-maria, mas sim esta, Livrai-nos, Senhor, de todo o mal, e em particular da ira dos mansos. Aos alunos de História ter-lhes-ia saído bem a oração, se dela fizessem consumo habitual, o que, tendo em consideração o jovens que são, é mais do que duvidoso. Já lhes chegará o tempo. É verdade que Tertuliano Máximo Afonso entrou na aula de cara amarrada, o que, observado por um estudante que se cria mais perspicaz que a maioria, o levou a sussurrar para o colega do lado, Parece que o tipo vem com a mosca, mas não era certo, o que se notava no professor já era o efeito final da tormenta, uns últimos e dispersos golpes de vento, uma bátega de chuva que se tinha deixado ficar para trás, as árvores menos flexíveis levantando custosamente a cabeça. A prova de que era assim foi que depois de fazer a chamada com voz firme e serena disse, Tinha pensado guardar para a semana que vem a revisão do nosso último exercício escrito, mas fiquei ontem com a noite livre e resolvi adiantar trabalho. Abriu a pasta, tirou os papéis, que pôs em cima da mesa, e continuou, As emendas estão feitas, as notas dadas em função dos erros cometidos, mas, ao contrário do costume, que seria entregar-vos simplesmente os exercícios, vamos dedicar o tempo desta aula à análise dos erros, isto é, quero ouvir de cada um de vocês as razões por que crêem ter errado, pode ser, inclusive, que as razões que me forem dadas me levem a mudar a nota. Fez uma pausa, e acrescentou, Para melhor. Os sorrisos na aula acabaram de levar as nuvens para longe.