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Tertuliano Máximo Afonso já tinha percebido que o rumo que a conversa havia tomado não lhe convinha, que se estava a afastar cada vez mais do seu objectivo, encaixar nela, com a maior naturalidade possível, a questão da carta, e agora, pela segunda vez neste dia, como se se tratasse de um jogo automático de acções e reacções, a própria Maria da Paz acabara de lhe oferecer a oportunidade, praticamente na palma da mão. Teria porém de ser cauteloso, não a levar a pensar que o motivo da chamada era unicamente o interesse, que afinal não fora para lhe falar de sentimentos que havia ligado, ou sequer dos bons momentos que tinham passado juntos na cama, se a pronunciar a palavra amor se lhe negava a língua. É verdade que o assunto me interessa, disse, conciliador, mas não ao ponto que supões, Ninguém o diria vendo-te como eu te vi, despenteado, de roupão e chinelos, a barba por fazer, rodeado de cassetes por todos os lados, não te parecias em nada ao ajuizado, ao sensatíssimo homem que eu cria conhecer, Estava à vontade, sozinho em casa, compreende-se, mas, já que falaste no assunto, tive uma ideia que poderia facilitar e apressar o trabalho, Espero que não tenciones pôr-me também a ver os teus filmes, não fiz nada que merecesse o castigo, Fica tranquila, os meus ferozes instintos não chegam a esse extremo, a ideia seria simplesmente escrever à empresa produtora pedindo-lhes um conjunto de dados concretos, relacionados, em especial, com a rede de distribuição, a localização das salas de exibição e o número de espectadores por filme, creio que me seria muito útil e me ajudaria a tirar algumas conclusões, Não vejo bem o que tenha isso que ver com os sinais ideológicos de que andas à procura, Pode ser que não tenha tanto quanto imagino, em todo o caso quero tentar, Tu saberás, Sim, mas há um pequeno problema, Qual, Não gostaria de ser eu a escrever essa carta, E por que não vais lá falar pessoalmente, há assuntos que se resolvem melhor cara a cara, e aposto que eles ficariam lisonjeados, um professor de História a interessar-se pelos filmes que produzem, E precisamente o que não quero, misturar a minha qualificação científica e profissional com um estudo que está fora da minha especialidade, Porquê, Não saberia explicar, talvez uma questão de escrúpulo, Então não estou a ver como irás solucionar uma dificuldade que tu próprio estás a criar, Poderias ser tu a escrever a carta, Aí está uma ideia absolutamente disparatada, explica-me como vou eu escrever uma carta a tratar de um assunto para mim tão misterioso como a língua chinesa, Quando digo que escreverias a carta, o que quero dizer realmente é que a escreveria eu em teu nome e dando a tua morada, dessa maneira ficaria a coberto de qualquer indiscrição, Que não seria assim tão grave, suponho que em tal caso a tua honra não se acharia posta em causa nem em dúvida a tua dignidade, Não sejas irónica, já te disse que é apenas uma questão de escrúpulo, Sim, já mo disseste, E não acreditas, Acredito, sim, não te preocupes, Maria da Paz, Sou eu, Sabes bem que te amo, Creio sabê-lo quando mo dizes, depois pergunto-me se será verdade, É verdade, E esta chamada foi porque ansiavas por mo dizer, ou para me pedires que escrevesse essa carta, A ideia da carta veio na continuação da conversa, Sim, mas não pretenderás convencer-me de que a tiveste precisamente quando conversávamos, E certo que já tinha pensado nela de um modo vago, De um modo vago, Sim, de um modo vago, Máximo, Diz, minha querida, Podes escrever a carta, Agradeço-te que tenhas aceitado, na verdade pensei que não te importaria, uma coisa tão simples, A vida, querido Máximo, tem-me ensinado que nenhuma coisa é simples, que só às vezes o parece, e que é justamente quando mais o parecer que mais nos convirá duvidar, Estás a ser céptica, Ninguém nasce céptico, que eu saiba, Então, uma vez que concordas, escreverei a carta em teu nome, Suponho que terei de assiná-la, Não creio que valha a pena, eu mesmo invento uma assinatura, Ao menos, que se pareça um pouco com a minha, Nunca tive jeito para imitar caligrafias, mas farei o melhor que puder, Tem cuidado, vigia-te, quando uma pessoa começa a falsear nunca se sabe até onde chegará, Falsear não seria o termo exacto, falsificar era o que deves ter querido dizer, Obrigado pela rectificação, meu querido Máximo, o que eu estava era a manifestar apenas o desejo de que houvesse uma palavra capaz de exprimir, por si só, o sentido daquelas duas, De ciência minha, uma palavra que em si reuna e funda o falsear e o falsificar, não existe, Se o acto existe, também deveria existir a palavra, As que temos encontram-se nos dicionários, Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisaríamos para nos entendermos uns aos outros, Por exemplo, Por exemplo, não sei que palavra poderia expressar agora a sobreposição e confusão de sentimentos que noto dentro de mim neste instante, Sentimentos, em relação a quê, Não a quê, a quem, A mim, Sim, a ti, Espero que não seja nada de muito mau, Há de tudo, como na botica, mas sossega, não to conseguiria explicar, por mais que o tentasse, Voltaremos a este tema outro dia, Queres dizer que a nossa conversa chegou ao fim, Não foram essas as minhas palavras nem foi esse o sentido delas, Realmente não, desculpa, Em todo o caso, pensando bem, conviria que nos deixássemos ficar por aqui, é visível que há demasiada tensão entre nós, saltam faíscas a cada frase que nos sai da boca, Não era essa a minha intenção, Nem a minha, Mas assim aconteceu, Sim, assim aconteceu, Por isso vamos despedir-nos como bons meninos que somos, desejar-nos boas noites e felizes sonhos, até um destes dias, Liga-me quando quiseres, Assim farei, Maria da Paz, Continuo a ser eu, Gosto de ti, Já mo havias dito.

Depois de ter deixado cair o aparelho no descanso, Tertuliano Máximo Afonso passou as costas da mão pela testa molhada de suor. Tinha conseguido o seu objectivo, não lhe deviam portanto faltar razões para estar satisfeito, mas a condução daquele longo e dificultoso diálogo correra sempre por conta dela mesmo quando não parecia que assim estivesse sucedendo, sujeitando-o a ele a um contínuo rebaixamento que não se objectivava explicitamente nas palavras por um e por outro pronunciadas, mas que, porém, uma a uma, lhe iam deixando um gosto cada vez mais amargo na boca, como é comum dizer-se do sabor da derrota. Sabia que ganhara, mas também se apercebia de que havia na vitória uma parte de ilusão, como se cada um dos seus avanços não tivesse sido mais que a consequência mecânica de um recuo táctico do inimigo, pontes douradas habilmente colocadas para o atraírem, de bandeiras desfraldadas e ao som de trombetas e tambores, a um ponto em que talvez viesse a descobrir-se cercado sem remédio. Para atingir os seus objectivos havia rodeado Maria da Paz de uma rede de discursos capciosos, calculistas, mas, ao fim e ao cabo, eram os nós com que supunha tê-la atado a ela que limitavam a liberdade dos seus próprios movimentos. Durante os seis meses de relação, para não se deixar prender demasiado, mantivera cientemente Maria da Paz à margem da sua vida particular, e agora que tinha decidido terminar a ligação, e para tal só esperasse o momento oportuno, vira-se obrigado não apenas a pedir-lhe ajuda, mas a torná-la partícipe em actos cujas origens e causas, tanto quanto as intenções finais, ela ignorava totalmente. O senso comum chamar-lhe-ia aproveitador sem escrúpulos, mas ele redarguiria que a situação que estava vivendo era única no mundo, que não existiam antecedentes que marcassem pautas de actuação socialmente aceites, que nenhuma lei previra o inaudito caso de duplicação de pessoa, e que, por conseguinte, era ele, Tertuliano Máximo Afonso, quem tinha de inventar, em cada ocasião, os procedimentos, regulares ou irregulares, que o levassem ao seu objectivo. A carta era apenas um deles e se, para a escrever, havia sido necessário abusar da confiança de uma mulher que dizia amá-lo, o crime não era assim tão grave, outros tinham feito coisas piores e ninguém os apontava à condenação pública.