É o que geralmente se diz, e, porque se diz geralmente, aceitamos a sentença sem mais discussão, quando o nosso dever de gente livre seria questionar energicamente um destino despótico que determinou, sabe-se lá com que maliciosas intenções, que a pêra verde é o filme, e não os exercícios ou o livro. Como professor, e de História ainda por cima, este Tertuliano Máximo Afonso, haja vista a cena a que acabámos de assistir na cozinha, confiando o seu futuro imediato e porventura o que virá depois dele a três migalhas de pão e a um papaguear infantil e sem sentido, é um mau exemplo para os adolescentes que o destino, o mesmo ou outro, pôs nas suas mãos. Não caberá infelizmente neste relato uma antecipação dos prováveis efeitos perniciosos da influência de um tal professor na formação das jovens almas dos educandos, por isso as deixamos aqui, sem outra esperança que a de que venham a encontrar, um dia, no caminho da vida, uma influência de sinal contrário que as livre, quem sabe se in extremis, da perdição irracionalista que neste momento as ameaça.
Tertuliano Máximo Afonso lavou cuidadosamente a louça do jantar, desde sempre constitui para ele uma inviolável obrigação deixar tudo limpo e reposto nos seus sítios depois de ter comido, o que vem ensinar-nos, regressando por uma última vez às jovens almas acima citadas, para as quais semelhante procedimento seria, talvez, se não com alta probabilidade, risível, e a obrigação letra-morta, que até de alguém tão pouco recomendável em temas, assuntos e questões relacionadas com o livre-arbítrio é possível aprender alguma coisa. Tertuliano Máximo Afonso recebeu dos regrados costumes da família em que foi gerado esta e outras boas lições, em particular de sua mãe, por fortuna ainda viva e de saúde, a quem certamente irá visitar um destes dias, lá na pequena cidade da província onde o futuro professor abriu os olhos para o mundo, berço dos Máximos maternos e dos Afonsos paternos, e em que lhe calhou ser o primeiro Tertuliano acontecido, nado há quase quarenta anos. Ao pai, não terá outra solução que ir visitá-lo ao cemitério, assim é a puta da vida, sempre se nos acaba. A má palavra passou-lhe pela cabeça sem que a tivesse convocado, foi por ter pensado no pai enquanto saía da cozinha e sentir a saudade dele, Tertuliano Máximo Afonso é pouco de dizer asneiras, a tal ponto que se em alguma rara ocasião lhe sucede largá-las, ele próprio se surpreende com a estranheza, com a falta de convencimento dos seus órgãos fonadores, cordas vocais, câmara palatina, língua, dentes e lábios, como se estivessem articulando, contrariados, pela primeira vez, uma palavra de um idioma até aí desconhecido. Na pequena divisão da casa que lhe serve de escritório e de sala de estar há um sofá de dois lugares, uma mesinha baixa, de centro, uma cadeira de assento estofado que parece hospitaleira, o aparelho de televisão em frente dela, no ponto de fuga, e, posta de canto, a jeito de receber a luz da janela, a secretária onde os exercícios de História e a cassete estão à espera de ver quem ganha. Duas das paredes estão forradas de livros, a maioria deles com as rugas do uso e a murchidão da idade. No chão um tapete com motivos geométricos, de cores surdas, ou talvez desbotadas, ajuda a sustentar um ambiente de conforto que não passa de simples mediania, sem fingimentos nem pretensões a parecer mais do que é, o sítio de viver de um professor do ensino secundário que ganha pouco, como parece ser obstinação caprichosa das classes docentes em geral, ou condenação histórica que ainda não acabaram de purgar. A migalha do meio, isto é, o livro que Tertuliano Máximo Afonso tem andado a ler, um ponderoso estudo das antigas civilizações mesopotâmicas, encontra-se onde foi deixado na noite de ontem, aqui sobre a mesinha de centro, à espera, também, como as outras duas migalhas, à espera, como as coisas sempre estão, todas elas, a isso não podem escapar, é a fatalidade que as governa, parece que faz parte da sua invencível natureza de coisas. De uma personalidade como se tem vindo a anunciar a deste Tertuliano Máximo Afonso, que já deu algumas mostras de espírito vagueador, e até algo evasivo, no pouco tempo que leva de conhecido, não causaria surpresa neste momento uma exibição de conscientes simulações consigo mesmo, folheando os exercícios dos alunos com falsa atenção, abrindo o livro na página em que a leitura havia ficado interrompida, mirando desinteressado a cassete por um lado e pelo outro, como se ainda não se tivesse decidido sobre o que finalmente quererá fazer. Mas as aparências, nem sempre tão enganadoras quanto se diz, não é raro que se neguem a si mesmas e deixem surdir manifestações que abrem caminho à possibilidade de sérias diferenças futuras num padrão de comportamento que, no geral, parecia apresentar-se como definido. Esta laboriosa explicação poderia ter-se evitado se em seu lugar, sem mais rodeios, tivéssemos dito que Tertuliano Máximo Afonso se dirigiu directamente, isto é, em linha recta, à secretária, pegou na cassete, percorreu com os olhos as informações do verso e do anverso da caixa, apreciou neste as caras sorridentes, bem-dispostas dos intérpretes, notou que só o nome de um deles, o principal, uma actriz jovem e bonita, lhe era familiar, aviso de que o filme, na hora dos contratos, não devia ter sido contemplado com atenções especiais por parte dos produtores, e logo, com o firme movimento de uma vontade que parecia nunca haver duvidado de si mesma, empurrou a cassete para dentro do aparelho de vídeo, sentou-se na cadeira, carregou no botão de arranque do comando a distância e acomodou-se para passar o melhor possível um serão, que, se pela amostra já pouco prometia, menos ainda deveria cumprir. E assim foi. Tertuliano Máximo Afonso riu por duas vezes, sorriu três ou quatro, a comédia, a par de levezinha, segundo a expressão conciliadora do colega de Matemática, era principalmente absurda, disparatada, um engendro cinematográfico em que a lógica e o senso comum tinham ficado a protestar do lado de fora da porta porque não lhes havia sido permitida a entrada lá onde o desatino estava a ser perpetrado. O título, o tal Quem Porfia Mata Caça, era uma daquelas metáforas óbvias, do tipo branco é galinha o põe, caça, caçada e caçadores era coisa que não se via na história, tudo se limitava a um caso de frenética ambição pessoal que a actriz jovem e bonita encarnava o melhor que lhe tinham ensinado, salpicado o dito caso de mal-entendidos, manobras, desencontros e equívocos, no meio dos quais, por infelicidade, a depressão de Tertuliano Máximo Afonso não conseguiu encontrar o menor lenitivo. Quando o filme terminou, Tertuliano estava mais irritado consigo mesmo que com o colega. A este desculpava-o a boa intenção, mas a si, que já tinha muito boa idade para não andar a correr atrás de foguetes, o que lhe doía, como aos ingénuos sempre sucede, era isso mesmo, a sua ingenuidade. Em voz alta, disse, Amanhã vou devolver esta merda, desta vez não houve surpresa, achou que lhe assistia o direito de desabafar pela via grosseira, e, além disso, havia que ter em consideração que esta só era a segunda indecência que deixara escapar nas últimas semanas, e a primeira delas, ainda por cima, tinha sido apenas em pensamento, o que é apenas em pensamento não conta. Olhou o relógio e viu que ainda não eram onze horas. É cedo, murmurou, e com isto quis dizer, como se viu logo a seguir, que ainda tinha tempo para se punir a si mesmo pela leviandade de ter trocado a obrigação pela devoção, o autêntico pelo falso, o duradouro pelo precário. Sentou-se à secretária, puxou para si, cuidadosamente, os exercícios de História, como querendo pedir-lhes perdão pelo abandono, e trabalhou pela noite dentro, como mestre escrupuloso que sempre se tinha prezado de ser, cheio de pedagógico amor pelos seus alunos, mas exigentíssimo nas datas e implacável nos cognomes. Era tarde quando chegou ao final da empreitada que havia imposto a si mesmo, porém, ainda repeso da falta, ainda contrito do pecado, e como quem tinha decidido trocar um cilício doloroso por outro não menormente correctivo, levou para a cama o livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas, no capítulo que tratava dos semitas amorreus e, em particular, do seu rei Hamurabi, o do código. Ao cabo de quatro páginas adormeceu serenamente, sinal de que tinha sido perdoado.
Acordou uma hora depois. Não sonhara, nenhum horrível pesadelo lhe havia desordenado o cérebro, não esbracejou a defender-se do monstro gelatinoso que se lhe viera pegar à cara, abriu apenas os olhos e pensou, Há alguém em casa. Devagar, sem precipitação, sentou-se na cama e pôs-se à escuta. O quarto é interior, mesmo durante o dia não chegam aqui os rumores
de fora, e a esta altura da noite, Que horas serão, o silêncio costuma ser total. E era total. Quem quer que fosse o intruso, não se movia de onde estava. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o braço para a mesa-de-cabeceira e acendeu a luz.
O relógio marcava quatro e um quarto. Como a maior parte da gente comum, este Tertuliano Máximo Afonso tem tanto de corajoso como de cobarde, não é um herói desses invencíveis de cinema, mas também não é nenhum cagarola, dos que se mijam pelas pernas abaixo quando ouvem ranger à meia-noite a porta da masmorra do castelo. É verdade que sentiu eriçaram-se-lhe os pêlos do corpo, mas isso até aos lobos sucede quando se enfrentam a um perigo, e a ninguém que esteja em seu juízo perfeito lhe passará pela cabeça sentenciar que os lupinos são uns miseráveis cobardes. Tertuliano Máximo Afonso vai demonstrar que também não o é. Deixou-se escorregar subtilmente da cama, empunhou um sapato à falta de arma mais contundente e, usando de mil cautelas, assomou-se à porta do corredor. Olhou a um lado, depois a outro. A percepção de presença que o fizera despertar tornou-se um pouco mais forte. Acendendo as luzes à medida que avançava, ouvindo ressoar-lhe o coração na caixa do peito como um cavalo a galope, Tertuliano Máximo Afonso entrou na casa de banho e depois na cozinha. Ninguém. E a presença, ali, era curioso, pareceu-lhe que baixava de intensidade. Regressou ao corredor e enquanto se ia aproximando da sala de estar percebeu que a invisível presença se tomava mais densa a cada passo, como se a atmosfera se tivesse posto a vibrar pela reverberação de uma oculta incandescência, como se o nervoso Tertuliano Máximo Afonso caminhasse por um terreno radioactivamente contaminado levando na mão um contador Geíger que irradiasse ectoplasmas em vez de emitir avisos sonoros. Não havia ninguém na sala. Tertuliano Máximo Afonso olhou ao redor, ali estavam, firmes e impávidas, as duas altas estantes cheias de livros, as gravuras emolduradas das paredes, às quais até agora não se tinha feito referência, mas é certo, ali estão, e ali, e ali, e ali, a secretária com a máquina de escrever, a cadeira, a mesa baixa ao meio com uma pequena escultura colocada exactamente no centro geométrico, e o sofá de dois lugares, e o aparelho de televisão. Tertuliano Máximo Afonso murmurou em voz muito baixa, com temor, Era isto, e então, pronunciada a última palavra, a presença, silenciosamente, como uma bola de sabão rebentando, desapareceu. Sim, era aquilo, o aparelho de televisão, o leitor de vídeo, a comédia que se chama Quem Porfia Mata Caça, uma imagem lá dentro que havia regressado ao seu sítio depois de ir acordar Tertuliano Máximo Afonso à cama. Não imaginava qual ela poderia ser, mas tinha a certeza de que a reconheceria quando aparecesse. Foi ao quarto, vestiu um roupão por cima do pijama para não apanhar frio e voltou. Sentou-se na cadeira, carregou outra vez no botão de arranque do comando a distância e, inclinado para a frente, com os cotovelos assentes nos joelhos, todo ele olhos, já sem risos nem sorrisos, repassou a história da mulher jovem e bonita que queria triunfar na vida. Ao cabo de vinte minutos, viu-a entrar num hotel e dirigir-se ao balcão de recepção, ouviu-lhe dizer o nome, Chamo-me Inês de Castro, antes já tinha reparado na interessante e histórica coincidência, ouviu-a depois continuar, Tenho aqui uma reserva, o empregado olhou-a de frente, à câmara, não a ela, ou a ela que se encontrava no lugar da câmara, o que ele disse quase não o chegou a perceber agora Tertuliano Máximo Afonso, o polegar da mão que segurava o comando a distância carregou veloz no botão de parar, porém a imagem já se tinha ido, é lógico que não se gaste película inutilmente com um actor, figurante ou pouco mais, que só entra na história ao fim de vinte minutos, a fita desandou, passou outra vez pela cara do recepcionista, a mulher jovem e bonita tomou a entrar no hotel, tomou a dizer que se chamava Inês de Castro e que tinha uma reserva, agora sim, aqui está, a imagem fixh do empregado da recepção olhando de frente quem o olhava a ele. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lho permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pêlos do corpo, o que ali estava não era verdade, não podia ser verdade, qualquer pessoa equilibrada por acaso ali presente o tranquilizaria, Que ideia, meu caro Tertuliano, tenha a bondade de observar que ele usa bigode, enquanto você tem a cara rapada. As pessoas equilibradas são assim, têm o costume de simplificar tudo, e depois, mas sempre tarde de mais, é que as vemos assombrarem-se com a copiosa diversidade da vida, então lembram-se de que os bigodes e as barbas não têm vontade própria, crescem e prosperam quando se lhes permite, às vezes também por pura indolência do portador, mas, de um instante para outro, só porque a moda variou ou porque a pilosa monotonia os tornou molestos ao espelho, desaparecem sem deixar rasto. Não esquecendo ainda, porque tudo pode acontecer quando se trate de actores e artes cénicas, a forte probabilidade de que o fino e bem tratado bigode do empregado da recepção seja, simplesmente, um postiço. Tem-se visto. Estas considerações, que, por óbvias, saltariam com toda a naturalidade à vista de qualquer pessoa, poderia Tertuliano Máximo Afonso tê-las produzido por sua própria conta se não estivesse tão concentrado a procurar no filme outras situações em que aparecesse o mesmo actor secundário, ou figurante com linhas de texto, como com mais rigor conviria designá-lo. Até ao final da história, o homem do bigode, sempre no seu papel de recepcionista, apareceu em mais cinco ocasiões, de cada vez com escasso trabalho, embora na última lhe fosse dado trocar duas frases pretendidamente maliciosas com a dominadora Inês de Castro e depois, enquanto ela se afastava balançando os quadris, olhá-la com expressão caricatamente libidinosa, que o realizador devia ter considerado irresistível ao apetite de riso do espectador. Escusado dizer que se Tertuliano Máximo Afonso não achou graça na primeira vez, muito menos achou na segunda. Tinha regressado à primeira imagem, aquela em que o empregado da recepção, num grande plano, fita a direito Inês de Castro, e analisava, minucioso, a imagem, traço por traço, feição por feição, Tirando umas leves diferenças, pensou, o bigode sobretudo, o cabelo de corte diferente, a cara menos cheia, é igual a mim. Sentia-se tranquilo agora, sem dúvida a semelhança era, por assim dizer, assombrosa, mas daí não passava, semelhanças é o que não falta no mundo, vejam-se os gémeos, por exemplo, o que seria para admirar é que havendo mais de seis mil milhões de pessoas no planeta não se encontrassem ao menos duas iguais. Que nunca poderiam ser exactamente iguais, iguais em tudo, já se sabe, disse, como se estivesse a conversar com aquele quase seu outro eu que o olhava de dentro do aparelho de televisão. Outra vez sentado na cadeira, ocupando portanto a posição relativa da actriz que interpretava o papel de Inês de Castro, brincou a ser, também ele, cliente do hotel, Chamo-me Tertuliano Máximo Afonso, anunciou, e depois, sorrindo, E você, a pergunta era das mais consequentes, se duas pessoas iguais se encontram, o natural é quererem saber tudo uma da outra, e o nome é sempre a primeira coisa porque imaginamos que essa é a porta por onde se entra. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a fita até ao fim, ali estava a lista dos actores de menor importância, não se lembrava se também seriam mencionados os papéis que representavam, afinal não, os nomes apareciam por ordem alfabética, simplesmente, e eram muitos. Agarrou meio distraído a caixa da cassete, passou uma vez mais os olhos pelo que ali se escrevia e mostrava, os rostos sorridentes dos actores principais, um breve resumo da história, e também, em baixo, numa linha de informações técnicas, em letra pequena, a data do filme. Já tem cinco anos, murmurou, ao mesmo tempo que recordava que o mesmo lhe tinha dito o colega de Matemática. Cinco anos já, repetiu, e, de repente, o mundo levou outro abanão, não era o efeito de uma impalpável e misteriosa presença que o tinha despertado, mas sim algo concreto, e não só concreto, mas também documentável. Com as mãos trémulas abriu e fechou gavetas, desentranhou delas envelopes com negativos e cópias fotográficas, espalhou tudo sobre a secretária, enfim encontrou o que procurava, um retrato seu, de há cinco anos. Tinha bigode, o corte de cabelo diferente, a cara menos cheia.