O primeiro que teve oportunidade de manifestar esta curiosidade pública foi o empregado da recepção do hotel quando a Tertuliano Máximo Afonso pediu um documento que o identificasse, e há que dar graças ao céu por não lhe ter perguntado primeiro como se chamava, porque bem poderia ter sucedido que Tertuliano Máximo Afonso tivesse deixado sair, pela força do hábito, o nome que durante trinta e oito anos havia sido o seu e agora é pertença de um corpo destroçado que numa câmara frigorífica qualquer aguarda a autópsia a que os mortos de acidente por via de regra não escapam. O cartão de identidade que apresentou tem pois o nome de António Claro, a cara da fotografia aposta nele é a mesma que o recepcionista tem na sua frente e que detidamente se poria a examinar se houvesse razão para dar-se a esse trabalho. Não a há, Tertuliano Máximo Afonso já assinou a sua ficha de hóspede, nestes casos serve um simples rabisco desde que mostre alguma semelhança com a assinatura formal, já tem a chave do quarto na mão, já disse que não traz bagagem, e para reforçar uma verosimilhança que ninguém lhe havia pedido, explicou que perdeu o avião, que deixou as malas no aeroporto, e por isso é que não fica mais que uma noite. Tertuliano Máximo Afonso mudou de nome, mas continua a ser a mesma pessoa que acompanhámos à loja dos vídeos, que sempre fala mais do que é preciso, que não sabe ser natural, o que lhe valeu foi que o empregado da recepção tem outros assuntos em que pensar, o telefone que toca, uns quantos estrangeiros que acabam de chegar ajoujados de malas e sacos de viagem. Tertuliano Máximo Afonso subiu ao quarto, pôs-se à vontade, foi à casa de banho para aliviar a bexiga, salvo ter perdido o avião, como disse ao recepcionista, parecia que não tinha outras preocupações, mas isso foi enquanto não se estendeu na cama com a intenção de descansar um pouco, imediatamente a imaginação lhe pôs diante um automóvel reduzido a um montão de sucata e dentro dele, miseramente sangrando, dois corpos destroçados. Voltaram as lágrimas, voltaram os soluços, e sabe-se lá por quanto tempo continuaria assim se de súbito a escandalizada recordação da mãe não tivesse irrompido no seu desnorteado cérebro. Sentou-se de um pulo, deitou mão ao telefone ao mesmo tempo que se ia cobrindo mentalmente de insultos, sou uma besta, um estúpido, um idiota total, um imbecil, não passo de um cretino, como foi possível não ter pensado que a polícia me iria bater à porta, que interrogaria os vizinhos para averiguar se tenho parentes, que a vizinha de cima lhe daria a morada e o número do telefone da minha mãe, como foi possível esquecer-me de uma coisa que se metia pelos olhos dentro, como foi possível. Ninguém atendia de lá. O telefone tocava, tocava, mas ninguém apareceu a perguntar, Quem fala, para que finalmente Tertuliano Máximo Afonso pudesse responder, Sou eu, estou vivo, a polícia enganou-se, depois explico. A mãe não se encontrava em casa, e este facto, insólito noutra situação, só podia significar que vinha a caminho, que tinha alugado um táxi e vinha a caminho, talvez até já tivesse chegado, e, sendo assim, foi pedir a chave à vizinha de cima e agora está chorando o seu desgosto, pobre mãe, que bem me tinha avisado. Tertuliano Máximo Afonso marcou o número do seu telefone, e uma vez mais não lhe responderam. Esforçou-se por pensar serenamente, por aclarar a turvação do espírito, ainda que a polícia tivesse sido exemplarmente diligente precisou de tempo para realizar e concluir as investigações, há que recordar que esta cidade é um imenso formigueiro de cinco milhões de habitantes irrequietos, que são muitos os acidentes e os acidentados muitos mais, que é necessário identificá-los, ir depois à procura das famílias, tarefa nem sempre fácil porque há pessoas tão descuidadas que vão para a estrada sem ao menos um papel no bolso que previna, Se me suceder algum desastre, chamem fulano ou fulana de tal. Felizmente Tertuliano Máximo Afonso não é dessas pessoas, pelos vistos também Maria da Paz não o era, na agenda de cada um deles, na folhinha reservada aos dados pessoais, estava tudo quanto era necessário a uma identificação perfeita, pelo menos para as primeiras necessidades, que quase sempre acabam por ser as últimas. Ninguém que não fosse um fora-da-lei andaria a passear-se por aí com documentos falsos ou subtraídos a outra pessoa, donde é legítimo concluir, reportando-nos ao caso presente, que aquilo que pareceu à polícia o era de facto, tanto mais que, Dão havendo quaisquer motivos para duvidar da identidade de uma das vítimas, não se vê por que diabo de razão teria de havê-los em relação à outra. Tertuliano Máximo Afonso ligou novamente, e novamente não teve resposta. Já não pensa em Maria da Paz, agora o que quer saber é onde está Carolina Máximo, os táxis de hoje são máquinas potentíssimas, não as chocolateiras de antigamente, e, numa situação dramática como esta, nem seria preciso aliciar o condutor com a promessa de uma gratificação para que ele pisasse o acelerador, em menos de quatro horas deveria aqui estar, e, sendo este dia sábado e tempo de férias, com o trânsito nas ruas reduzido ao mínimo, ela já tinha mais do que obrigação de estar em casa para tranquilizar o desassossego deste filho. Tornou a ligar e, desta vez, sem que o esperasse, o gravador entrou em funcionamento, Fala Tertuliano Máximo Afonso, deixe o seu recado por favor, o choque foi fortíssimo, de tão perturbado que tem estado não se deu conta de que o mecanismo de gravação não havia entrado em acção antes, e agora foi como se de repente tivesse ouvido uma voz que não era sua, a voz de um morto desconhecido que amanhã vai ser necessário substituir pela de um vivo qualquer para que não impressione as pessoas sensíveis, operação de tirar-e-pôr que todos os dias é realizada milhares e milhares de vezes em todos os lugares do mundo, ainda que em tal não nos agrade pensar. Tertuliano Máximo Afonso precisou de alguns segundos para serenar e recuperar a sua própria voz, depois, trémulo, disse, Minha mãe, não é verdade o que lhe disseram, estou vivo e são, depois lhe explicarei o que se passou, repito, estou vivo e são, vou dar-lhe o nome do hotel em que me encontro hospedado, o número do quarto e o número do telefone, ligue assim que chegar aí, não chore mais, não chore mais, talvez Tertuliano Máximo tivesse dito terceira vez estas palavras, se ele próprio não tivesse rebentado em lágrimas, pela mãe, por Maria da Paz, cuja recordação aí estava outra vez, também por piedade de si mesmo. Exausto, deixou-se cair na cama, sentia-se fraco, débil como uma criança doente, lembrou-se de que não havia ali-doçado e a ideia, em vez de lhe despertar o apetite, provocou-lhe uma náusea tão violenta que teve de levantar-se e correr como pôde à casa de banho onde os sucessivos arrancos não lhe fizeram subir do estômago mais do que uma espuma amarga, Voltou ao quarto, sentou-se na cama com a cabeça entre as mãos deixando vogar o pensamento como um barquinho de cortiça que desce a corrente e de vez em quando, ao chocar com uma pedra, por um instante muda de rumo. Foi graças a este divagar meio consciente que se lembrou de algo importante que deveria ter comunicado à mãe. Ligou para casa pensando que a máquina lhe iria fazer outra vez a desfeita de não funcionar, e soltou um suspiro de alívio quando o gravador, após uns segundos de hesitação, deu sinal de vida. Usou poucas palavras para deixar o recado, disse apenas, Tome nota de que é António Claro o nome, não se esqueça, e depois, como se tivesse acabado de descobrir um elemento de peso para a definitiva elucidação das comutativas e instáveis identidades em liça, aditou a seguinte informação, O cão chama-se Tomarctus. Quando a mãe chegar já não precisará de lhe recitar os nomes do pai e dos avós, dos tios maternos e paternos, já não terá de falar do braço partido quando caiu da figueira, nem da sua primeira namorada, nem do raio que deitou abaixo a chaminé da casa quando ele tinha dez anos. Para que Carolina Afonso venha a ter a certeza absoluta de que diante de si se encontra o filho das suas entranhas não fará falta o maravilhoso instinto maternal nem as científicas provas confirmadoras do ADN, o nome de um simples cão bastará.
Passou quase uma hora antes que o telefone tocasse. Sobressaltado, Tertuliano Máximo Afonso levantou-o rapidamente, esperando ouvir a voz da mãe, mas o que lhe saiu foi o empregado da recepção, que dizia, Está aqui a senhora Carolina Claro, que lhe quer falar, É a minha mãe, balbuciou, eu desço, eu desço já. Saiu a correr, ao mesmo tempo que se ia repreendendo, Tenho de dominar-me, não devo exagerar nas mostras de carinho, quanto menos dermos nas vistas, melhor. A lentidão do elevador ajudou-o a moderar o caudal de emoções, e foi já um Tertuliano Máximo Afonso bastante aceitável aquele que apareceu no átrio do hotel e abraçou a idosa senhora, a qual, fosse por acerto do instinto ou por efeito de meditada ponderação no táxi que a trouxe aqui, retribuiu com comedimento as demonstrações de afecto filial, sem as vulgares exuberâncias passionais que se exprimem em frases do tipo Ai o meu rico filho, embora, no caso do presente drama, devesse ser Ai o meu pobre filho a mais adequada à situação. Os abraços, os choros convulsos tiveram de esperar até chegarem ao quarto, até que a porta se fechou e o filho ressuscitado pôde dizer Minha mãe, e ela não teve outras palavras senão as que conseguiam sair-lhe do coração agradecido, És tu, és tu. Esta mulher, porém, não é das que são fáceis de contentar, daquelas a quem um afago faz logo olvidar um agravo, que neste caso nem contra ela havia sido, mas contra a razão, o respeito, e também o senso comum, para que não se diga que já nos esquecemos de quem fez tudo quanto pôde para que a história dos homens duplicados não terminasse em tragédia. Carolina Máximo não empregará este termo, dirá apenas, Há duas pessoas mortas, agora conta-me desde o princípio como foi possível que isto acontecesse, e não me ocultes nada, por favor, o tempo das meias verdades chegou ao fim, e o das meias mentiras também. Tertuliano Máximo Afonso puxou uma cadeira para a mãe se sentar,. sentou-se ele próprio na borda da cama, e começou o seu relato. Desde o princípio, como lhe fora exigido. Ela não o interrompeu, somente por duas vezes se alterou a sua expressão, a primeira na altura em que António Claro dizia que ia levar Maria da Paz à casa de campo para fazer amor com ela, a segunda quando o filho explicou como e porque havia ido a casa de Helena e o que depois lá se passou. Moveu os lábios a dizer, Loucos, mas a palavra não se ouviu. A tarde havia descido, a penumbra já encobria as feições de um e do outro. Quando Tertuliano Máximo Afonso se calou, a mãe fez a pergunta inevitável, E agora, Agora, minha mãe, o Tertuliano Máximo Afonso que fui está morto, e o outro, se quiser continuar a fazer parte da vida, não terá outro remédio que ser António Claro, E por que não contar a verdade, por que não dizer o que se passou, por que não pôr todas as coisas nos seus lugares, Acabou de ouvir o que sucedeu, Sim, e depois, Pergunto-lhe, minha mãe, se realmente acha que estas quatro pessoas, as mortas e as vivas, deveriam ser atiradas à praça pública para regalo e disfrute da feroz curiosidade do mundo, e que ganharíamos com isso, os mortos não ressuscitariam e os vivos começariam a morrer nesse dia, Que fazer, então, A mãe acompanhará o enterro do falso Tertuliano Máximo Afonso e chorá-lo-á como se ele fosse o seu filho, a Helena irá também, mas ninguém poderá saber por que está ela ali, E tu, Já lhe disse, sou António Claro, quando acendermos a luz a cara que lhe aparecerá será a dele, não a minha, És o meu filho, Sim, sou o seu filho, mas não o poderei ser, por exemplo, na cidade onde nasci, estou morto para as pessoas de lá, e quando a mãe e eu nos quisermos ver terá de ser num lugar em que ninguém tenha tido conhecimento da existência de um professor de História chamado Tertuliano Máximo Afonso, E Helena, Amanhã irei pedir-lhe que me perdoe e restituir-lhe este relógio e esta aliança de casamento, E para chegar a isso tiveram de morrer duas pessoas, Que eu matei, e uma delas vítima inocente, sem nenhuma culpa. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se e foi acender a luz. A mãe estava a chorar. Durante alguns minutos permaneceram calados, evitando olhar-se um ao outro. Depois a mãe murmurou enquanto passava o lenço húmido pelas pálpebras, A velha Cassada tinha razão, não devias ter deixado entrar o cavalo de madeira, Agora já não há remédio, Sim, agora já não há remédio, e no futuro também não o haverá, todos estaremos mortos. Ao cabo de um curto silêncio Tertuliano Máximo Afonso perguntou, A polícia falou-lhe das circunstâncias do acidente, Disseram-me que o carro saiu da faixa e foi chocar contra um camião TIR que seguia em sentido contrário, também me disseram que a morte deles deve ter sido instantânea, É estranho, Estranho, quê, Tinha a ideia de que ele seria um bom condutor, Algo terá sucedido, Podia ter derrapado, podia haver óleo na estrada, Disso não me falaram, só que o carro saiu da faixa e foi chocar com o camião. Tertuliano Máximo Afonso tomou a sentar-se na borda da cama, olhou o relógio e disse, Vou pedir à recepção que lhe reservem um quarto, jantamos e fica no hotel esta noite, Prefiro ir para casa, depois de comermos chamas um táxi, Eu levo-a, ninguém me verá, E como me vais levar tu, se já não tens carro, Estou com o que era dele. A mãe abanou a cabeça tristemente e disse, O carro dele, a mulher dele, só falta que passes a ter também a sua vida, Terei de descobrir outra melhor para mim, e agora, por favor, vamos comer qualquer coisa, tréguas à desgraça. Estendeu as mãos para a ajudar a levantar-se, depois abraçou-a e disse, Lembre-se de apagar as chamadas que deixei no gravador, todos os cuidados são poucos com os gatos que se esquecem de meter o rabo para dentro. Quando acabaram de jantar, a mãe tornou a pedir, Chama-me um táxi, Eu levo-a a casa, Não podes arriscar-te a que te vejam, além disso arrepia-me só de pensar em sentar-me nesse carro, Acompanho-a no táxi e volto, Já tenho idade para andar sozinha, não insistas. À despedida Tertuliano Máximo Afonso disse, Faça por descansar, minha mãe, que bem precisa, O mais certo é que não consigamos dormir os dois, nem eu nem tu, respondeu ela.
Teve razão. Pelo menos Tertuliano Máximo Afonso não pôde fechar os olhos durante horas e horas, via o carro a sair da faixa e a precipitar-se contra o focinho enorme do camião, porquê, perguntava-se, porquê se desviou dessa maneira, talvez lhe tivesse rebentado um pneu, não, não pode ser, se assim fosse a polícia não deixaria de o referir, é certo que o carro já levava às costas um bom par de anos de contínuo serviço, mas ainda não há três meses tinha passado por uma revisão a sério e não se lhe encontrou nenhuma mazela, quer mecânica, quer eléctrica. Adormeceu já pela madrugada, mas o sono durou pouco, mal passava das sete quando bruscamente acordou com a ideia de que havia algo urgente à sua espera, seria a visita a Helena, mas para isso ainda era demasiado cedo, que será então, de repente fez-se luz na sua cabeça, o jornal, tinha de ver o que trazia o jornal, um acidente destes, praticamente às portas da cidade, é notícia. Levantou-se de um salto, vestiu-se à pressa, e saiu a correr. O recepcionista nocturno, não o que o atendera na véspera, olhou-o com desconfiança, e Tertuliano Máximo Afonso teve de dizer, Vou comprar o jornal, não fosse o outro pensar que o agitado hóspede se queria ir embora sem pagar. Não teve de ir longe, havia um quiosque na primeira esquina. Comprou três jornais, algum deles deveria falar do desastre, e voltou rapidamente ao hotel. Subiu ao quarto e começou a folheá-los ansiosamente à procura da secção dos acidentes de trânsito. Só no terceiro jornal encontrou a notícia. Havia uma fotografia que mostrava o estado de ruína em que o carro tinha ficado. Com todo o corpo a tremer, Tertuliano Máximo Afonso leu, saltando por cima dos pormenores, direito ao essencial, Ontem, pelas 9.30 da manhã, registou-se quase à entrada da cidade um violento choque entre um automóvel de turismo e um camião TIR. Os dois ocupantes do automóvel, Fulano e Fulana, imediatamente identificados pela documentação de que eram portadores, já estavam mortos quando os socorros chegaram. O condutor do camião apenas sofreu ligeiros ferimentos nas mãos e na cara. Interrogado pela polícia, que não lhe atribuiu qualquer responsabilidade pelo acidente, declarou que quando o automóvel ainda vinha a certa distância, antes de se ter desviado, lhe tinha parecido ver os dois ocupantes forcejando um com o outro, embora não pudesse dar uma certeza absoluta por causa dos reflexos dos pára-brisas. Informações posteriormente colhidas pela nossa redacção revelaram que os dois infortunados viajantes eram noivos. Tertuliano Máximo Afonso leu outra vez a notícia, pensou que àquela hora ainda ele se encontrava na cama com Helena, e depois, como era inevitável, relacionou a hora matutina a que António Claro regressava com a declaração do motorista do camião. Que se teria passado entre eles, perguntou-se, que teria sucedido na casa de campo para que ainda continuassem a discutir no automóvel, e mais que a discutir, a forcejar, como havia dito, com aptidão expressiva pouco comum, a única testemunha presencial do acidente. Tertuliano Máximo Afonso olhou o relógio. Faltavam poucos minutos para as oito horas, Helena já deveria estar levantada, Ou porventura não, o mais provável foi ter tomado um comprimido para dormir, ou para escapar, que é verbo mais certo, pobre Helena, tão inocente de tudo como estava Maria da Paz, mal ela imagina o que a espera. Eram nove horas quando Tertuliano Máximo Afonso saiu do hotel. Tinha pedido na recepção o necessário para barbear-se, tomou o pequeno-almoço e agora vai dizer a Helena a palavra que ainda falta para que a incrível história dos homens duplicados se acabe de uma vez e a normalidade da vida retome o seu curso, deixando as vítimas atrás de si, conforme é uso e costume. Se Tertuliano Máximo Afonso tivesse perfeita consciência do que vai fazer, do golpe que vai desferir, talvez fugisse dali sem dar explicações nem justificações, talvez deixasse as coisas na situação a que chegaram, a apodrecer, mas a sua mente encontra-se como embotada, sob a acção de uma espécie de anestesia que lhe ensurdeceu a dor e agora o está a empurrar mais além da vontade. Estacionou o carro em frente do prédio, atravessou a rua, entrou no elevador, Leva o jornal dobrado debaixo do braço, mensageiro da desgraça, voz e palavra do destino, ele é a pior das Cassandras, aquela que tem por único ofício dizer, Aconteceu. Não quis abrir a porta com a chave que tem no bolso, em verdade não há mais espaço para desforços, desforras e vinganças. Tocou a campainha como aquele vendedor de livros que gabava as sublimes virtudes culturais da enciclopédia em que minuciosamente se descrevem os hábitos do tamboril, mas o que ele agora deseja, com todas as forças da sua alma, é que a pessoa que vier atendê-lo lhe diga, mesmo mentindo, Não preciso, já tenho. A porta abriu-se e Helena apareceu na meia penumbra do corredor. Encarava-o com assombro, como se tivesse perdido toda a esperança de voltar a vê-lo, mostrava-lhe o pobre rosto desfeito, os olhos pisados, era evidente que tinha falhado o comprimido que tomara para escapar de si própria. Onde estiveste, balbuciou, que se passou, não vivo desde ontem, não vivo desde que saíste daqui. Deu dois passos para os braços dele, que não se abriram, que só por piedade a não repeliram, e depois entraram juntos, ela ainda agarrada a ele, ele desajeitado, tosco, como um boneco de engonços que não acerta com os movimentos. Não falou ainda, não pronunciará uma palavra antes que ela esteja sentada no sofá, e o que lhe vai dizer parecerá apenas a inócua declaração de quem desceu à rua para comprar o jornal e agora, sem qualquer intenção oculta, se limita a comunicar, Trouxe-lhe as notícias, e estenderá a página aberta, e apontará o lugar da tragédia, Aqui está, e ela não reparará que ele não a tratou por tu, lerá com atenção o que está escrito, desviará os olhos da fotografia do carro esmagado, e murmurará, pesarosa, quando terminar, Que horror, porém, se desta maneira falou foi só porque é uma mulher de coração sensível, na verdade aquela desgraça não lhe toca a ela directamente, notou-se até, em contradição com a significação solidária das palavras pronunciadas, um certo tom que se assemelhava a alívio, obviamente involuntário, mas que as palavras ditas a seguir já expressaram de modo inteligível, Foi uma infelicidade, não me dá nenhuma alegria, pelo contrário, mas ao menos serviu para acabar com a confusão. Tertuliano Máximo Afonso não se tinha sentado, estava de pé diante dela, como devem permanecer os mensageiros em exercício, porque outras notícias há para dar, e estas vão ser as piores. Para Helena, o jornal já é uma coisa do passado, o presente concreto, o presente palpável, é este seu marido regressado, António Claro se chama, ele vai dizer-lhe o que fez na tarde de ontem e esta noite, que assuntos importantes foram esses para a ter deixado sem uma palavra durante tantas horas. Tertuliano Máximo Afonso percebe que não pode esperar nem mais um minuto, ou então será obrigado a calar-se para sempre. Disse, O homem que morreu não era Tertuliano Máximo Afonso. Ela fitou-o inquieta e deixou sair da boca três palavras que de pouco serviam, Quê, que disseste, e ele repetiu, sem a olhar, Não era Tertuliano Máximo Afonso o homem que morreu. A inquietação de Helena transformou-se de súbito em um medo absoluto, Quem era, então, O seu marido. Não havia outra maneira de lho dizer, não havia no mundo um só discurso preparatório que valesse, era inútil e cruel pretender aplicar a ligadura antes da ferida. Em desespero, alucinada, Helena ainda tentou defender-se da catástrofe que lhe desabava em cima, Mas os documentos de que o jornal fala eram desse Tertuliano de má morte. Tertuliano Máximo Afonso tirou a carteira do bolso do casaco, abriu-a, extraiu lá de dentro o cartão de identidade de António Claro e estendeu-lho. Ela pegou-lhe, olhou a fotografia que havia nele, olhou o homem que tinha na frente, e compreendeu tudo. A evidência dos factos reconstituiu-se-lhe na mente como um jorro brutal de luz, a monstruosidade da situação asfixiava-a, durante um rápido momento pareceu que ia perder os sentidos. Tertuliano Máximo Afonso adiantou-se, agarrou-lhe as mãos com força, e ela, abrindo uns olhos que eram como uma lágrima imensa, retirou-as bruscamente, mas depois, sem força, abandonou-as, o choro convulso tinha-lhe evitado o desmaio, agora os soluços abalavam-lhe o peito sem compaixão, Também chorei assim, pensou ele, é assim que choramos perante o que não tem remédio. E agora, perguntou ela lá do fundo da cisterna onde se afogava, Desapareço para sempre da sua vida, respondeu ele, não me tomará a ver nunca mais, gostaria de lhe pedir perdão, mas não me atrevo, seria ofendê-la outra vez, Não foste o único culpado, Sim, mas a minha responsabilidade é maior, sou réu de cobardia e por causa dela duas pessoas estão mortas, Maria da Paz era realmente tua noiva, Sim, Amava-la, Gostava dela, íamos casar, E deixaste que ela fosse com ele, Já lhe disse, por cobardia minha, por fraqueza, E vieste aqui para te vingares, Sim. Tertuliano Máximo Afonso endireitou-se, deu um passo atrás. Repetindo os movimentos que António Claro havia feito quarenta e oito horas antes, desafivelou o relógio de pulso, que pôs sobre a mesa, e depois colocou-lhe ao lado a aliança de casamento. Disse, Mando-lhe pelo correio este fato que tenho vestido. Helena pegou no anel, olhou-o como se fosse esta a primeira vez. Distraidamente, parecendo que queria desfazer o invisível sinal deixado, Tertuliano Máximo Afonso esfregou entre o indicador e o polegar da mão direita o dedo da esquerda de onde retirara a aliança. Nenhum deles pensou, nenhum deles virá alguma vez a pensar que a falta deste anel no dedo de António Claro poderia ter sido a causa directa das duas mortes, e contudo assim foi. Ontem de manhã, na casa de campo, António Claro dormia ainda quando Maria da Paz acordou. Ele estava deitado sobre o lado direito, com a mão esquerda descansando na almofada onde ela pousava a cabeça, mesmo à altura dos olhos.