Lavado e enxuto, penteado sem o auxílio do espelho, entrou no quarto, fez rapidamente a cama, vestiu-se e passou à cozinha para preparar o pequeno-almoço, composto, como de costume, de sumo de laranja, torradas, café com leite, iogurte, os professores precisam de ir bem alimentados à escola para poderem arrostar com o duríssimo trabalho de plantar árvores ou simples arbustos da sabedoria em terrenos que, na maior parte dos casos, puxam mais para o sáfaro que para o fecundo. Ainda é muito cedo, a sua aula não principiará antes das onze, mas, ponderadas as circunstâncias, compreende-se que estar em casa não seja o que hoje mais lhe apeteça. Voltou à casa de banho a lavar os dentes, e, enquanto o fazia, ocorreu-lhe se seria dia de vir limpar-lhe a casa a vizinha do andar de cima, uma mulher já de idade, viúva e sem filhos, que há seis anos lhe aparecera à porta a oferecer os seus serviços depois de se ter apercebido de que o novo vizinho também vivia só. Não, hoje não é dia, poderá deixar o espelho tal como está, a espuma já começou a secar, desfaz-se ao mais leve contacto dos dedos, mas por enquanto ainda se mantém agarrada e não se vê ninguém a espreitar por baixo dela. O professor Tertuliano Máximo Afonso está pronto para sair, já decidiu que levará o carro para reflectir com calma sobre os últimos e perturbadores sucessos, sem ter de padecer os apertões e os atropelos dos transportes públicos que, por óbvios motivos económicos, com mais frequência tem sido seu costume utilizar. Meteu os exercícios dentro da pasta, parou três segundos a olhar o resguardo do vídeo, era uma boa altura para seguir os conselhos do senso comum, retirar a cassete do leitor, metê-la na caixa e ir dali directamente à loja, Aqui tem, diria ao empregado, pensei que teria interesse, mas não, não valeu a pena, e foi uma perda de tempo, Quer levar outro, perguntaria o empregado esforçando-se por recordar o nome deste cliente que ainda ontem cá esteve, dispomos de um sortido muito completo, bons filmes de todos os géneros, tanto antigos como modernos, ah, Tertuliano, claro está que as duas últimas palavras somente seriam pensadas e o sorriso irónico paralelo apenas imaginado. Demasiado tarde, o professor de História Tertuliano Máximo Afonso já vai a descer a escada, não é esta a primeira batalha que o senso comum terá de resignar-se a perder.
Devagar, como quem decidiu aproveitar a primeira hora da manhã para gozar de um passeio, deu uma volta pela cidade, durante a qual, apesar da ajuda de alguns sinais vermelhos e amarelos mais tardos no passar, não lhe serviu de nada puxar pela cabeça para encontrar saída para uma situação que, como para qualquer pessoa informada seria evidente, está, toda ela, nas suas mãos. O mau do caso é que, e ele próprio o confessou a si mesmo, em voz alta, ao entrar na rua onde a escola está situada, Quem me dera que fosse capaz de atirar este disparate para trás das costas, esquecer-me desta loucura, olvidar este absurdo, aqui fez uma pausa para pensar que o primeiro elemento da frase teria sido suficiente, e depois concluiu, Mas não posso, o que mostra à sociedade a que ponto já chegou a obsessão deste desnorteado homem. A aula de História, como foi mencionado antes, é só às onze, e ainda faltam quase duas horas. Mais cedo ou mais tarde o colega de Matemática aparecerá nesta sala dos professores onde Tertuliano Máximo Afonso, que o espera, finge, com falsa naturalidade, rever os exercícios que trouxe na pasta. Um observador atento talvez não levasse muito tempo a aperceber-se da simulação, mas para tal teria de saber que nenhum professor, destes rotineiros, iria pôr-se a reler pela segunda vez o que já deixara corrigido na primeira, e não tanto pela possibilidade de encontrar novos erros e portanto ter de introduzir novas emendas, mas por uma mera questão de prestígio, de autoridade, de suficiência, ou apenas porque o corrigido, corrigido está, e não necessita nem admite volta atrás. Não faltaria mais que ter Tertuliano Máximo Afonso de emendar os seus próprios erros, supondo que em um destes papéis, que agora está olhando sem ver, corrigiu o que estava certo e pôs uma mentira no lugar de uma verdade inesperada. As melhores invenções, nunca será de mais lembrá-lo, são as de quem não sabia. Foi nesta altura que o professor de Matemática entrou. Viu o colega de História e foi logo direito a ele, Bons dias, disse, Olá, bons dias, Interrompo, perguntou, Não, não, que ideia, estava só a passar uma segunda vista de olhos, praticamente já tenho tudo corrigido, Que tal vão, Quem, Os seus rapazes, O costume, assim assim, nem bem, nem mal, Exactamente como nós quando tínhamos a idade deles, disse o de Matemática, a sorrir. Tertuliano Máximo Afonso estava à espera de que o colega lhe perguntasse se finalmente se tinha decidido a alugar o vídeo, se o vira, se gostara, mas o professor de Matemática parecia ter esquecido o assunto, apartado o espírito do interessante diálogo do dia anterior. Foi servir-se de um café, voltou a sentar-se e, sossegadamente, estendeu o jornal em cima da mesa, disposto a inteirar-se do estado geral do mundo e do país. Depois de percorrer os títulos da primeira página e franzir o nariz a cada um deles, disse, Às vezes pergunto-me se a primeira culpa do desastre a que este planeta chegou não terá sido nossa, disse, Nossa, de quem, minha, sua, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, fazendo-se interessado, mas confiando que a conversa, mesmo com um início tão afastado das suas preocupações, acabasse por levá-los ao âmago do caso, Imagine um cesto de laranjas, disse o outro, imagine que uma delas, lá no fundo, começa a apodrecer, imagine que, uma após outra, vão todas podrecendo, quem é que poderá, nessa altura, pergunto eu, dizer onde a podridão principiou, Essas laranjas a que está a referir-se são países, ou são pessoas, quis saber Tertuliano Máximo Afonso, Dentro de um país, são as pessoas, no mundo são os países, e como não há países sem pessoas, por elas é que o apodrecimento começa, inevitavelmente, E por que teríamos tido de ser nós, eu, você, os culpados, Alguém foi, Observo-lhe que não está a tomar em consideração o factor sociedade, A sociedade, meu querido amigo, tal como a humanidade, é uma abstracção, Como a matemática, Muito mais que a matemática, ao pé delas a matemática é tão concreta como a madeira desta mesa, Que me diz, então, dos estudos sociais, Não é raro que os chamados estudos sociais sejam tudo menos estudos sobre pessoas, Livre-se de que o ouçam os sociólogos, condená-lo-iam à morte cívica, pelo menos, Contentar-se com a música da orquestra em que se toca e com a parte que nela lhe coube tocar, é um erro muito espalhado, sobretudo entre os que não são músicos, Alguns terão mais responsabilidades que outros, você e eu, por exemplo, estamos relativamente inocentes, ao menos dos males piores, Esse costuma ser o discurso da boa consciência, Que o diga a boa consciência, não deixa por isso de ser verdade, O melhor caminho para uma desculpabilização universal é chegar à conclusão de que, porque toda a gente tem culpas, ninguém é culpado, Se calhar não há nada que possamos fazer, são os problemas do mundo, disse Tertuliano Máximo Afonso, como para rematar a conversação, mas o matemático rectificou, O mundo não tem mais problemas que os problemas das pessoas, e, tendo deixado cair esta sentença, meteu o nariz no jornal. Os minutos passavam, a hora da aula de História aproximava-se, e Tertuliano Máximo Afonso não via maneira de entrar no assunto que lhe interessava. Poderia, claro está, interpelar o colega directamente, perguntar-lhe, de olhos nos olhos, A propósito, a propósito já se sabe que não vinha, mas as muletas da linguagem existem precisamente para situações como estas, uma urgente necessidade de passar a outro assunto sem parecer que se tem particular empenho nele, uma espécie de faz-de-conta-que-me-lembrei-agora-mesmo socialmente aceite, A propósito, diria, você notou que o empregado da recepção no filme é o meu vivo retrato, mas isto seria o mesmo que exibir a carta principal de um jogo, meter terceira pessoa num segredo que ainda nem sequer era de duas, com a subsequente e futura dificuldade para furtar-se a perguntas curiosas, por exemplo, Então, já se encontrou com esse tal seu sósia. Foi neste momento que o professor de Matemática levantou os olhos do jornal, Então, perguntou, sempre alugou o filme, Aluguei, aluguel, respondeu Tertuliano Máximo Afonso alvoroçado, quase feliz, E que lhe pareceu, É divertido, Fez-lhe bem à depressão, quer dizer, ao marasmo, Marasmo ou depressão, tanto dá, não é no nome que está o mal, Fez-lhe bem, Acho que sim, pelo menos consegui rir com algumas situações. O professor de Matemática levantou-se, tinha também os seus alunos à espera, que ocasião melhor do que esta para que Tertuliano Máximo Afonso pudesse enfim dizer, A propósito, quando foi que viu o Quem Porfia Mata Caça pela última vez, a pergunta não tem importância, é só uma curiosidade, A última vez foi primeira e a primeira foi última, Quando o viu, Há coisa de um mês, emprestou-mo um amigo, Julguei que fosse seu, da sua colecção, Homem, se fosse meu ter-lho-ia emprestado, não o faria ir gastar dinheiro no aluguer. Estavam já no corredor, a caminho das aulas, Tertuliano Máximo Afonso sentindo o espírito solto, aliviado, como se o marasmo se tivesse evaporado de repente, desaparecido no infinito espaço, quem sabe se para não voltar nunca mais. Na próxima esquina separar-se-iam, cada qual para seu lado, e foi depois de lá chegarem, quando já ambos tinham dito, Até logo, que o professor de Matemática, quatro passos andados, se voltou para trás e perguntou, A propósito, você reparou que na fita há um actor, um secundário, que se parece muitíssimo consigo, pusesse você um bigode como o dele e seriam como duas gotas de água. Como um fulmíneo raio, o marasmo veio disparado das alturas e reduziu a ciscos a fugaz boa disposição de Tertuliano Máximo Afonso. Apesar disso, fazendo das tripas coração, ainda pôde responder com uma voz que parecia desmaiar em cada sílaba, Sim, reparei, é uma coincidência assombrosa, absolutamente extraordinária, e acrescentou, esboçando um sorriso sem cor, A mim só me falta o bigode e a ele ser professor de História, no resto qualquer diria que somos iguais. O colega olhou-o com estranheza, como se acabasse de reencontrá-lo depois de uma longa ausência, Agora me recordo de que você, aqui há uns anos, também usava bigode, disse, e Tertuliano Máximo Afonso, desatendendo a cautela, tal como aquele homem perdido que não quis ouvir conselhos, respondeu, Se calhar, nesse tempo, o professor era ele. O de Matemática aproximou-se, pôs-lhe a mão no ombro, paternal, Homem, você está realmente muito deprimido, uma coisa destas, uma coincidência como há tantas, sem importância, não deveria afectá-lo a este ponto, Não estou afectado, simplesmente dormi pouco, passei mal a noite, O mais provável foi ter passado mal a noite precisamente por estar afectado.
O professor de Matemática sentiu o ombro de Tertuliano Máximo Afonso tornar-se tenso debaixo da sua mão, como se todo o corpo, dos pés à cabeça, tivesse endurecido de repente, e foi tão forte o choque recebido, a impressão tão intensa, que o forçou a retirar o braço. Fê-lo o mais devagar que pôde, procurando que não se percebesse que sabia ter sido repelido, mas a insólita dureza do olhar de Tertuliano Máximo Afonso não lhe permitia dúvidas, o pacífico, o dócil, o submisso professor de História a quem se habituara a tratar com amigável mas superior indulgência, é neste momento outra pessoa. Perplexo, como se o tivessem posto diante de um jogo de que não soubesse as regras, disse, Bom, vemo-nos mais tarde, hoje não almoço na escola. Tertuliano Máximo Afonso baixou a cabeça como única resposta e foi para a aula.
Ao contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos um grau acima do mero exercício escolar, o homem não havia mudado, o homem era o mesmo. A repentina alteração de humor observada em Tertuliano Máximo Afonso e que tão abalado havia deixado o professor de Matemática não fora mais que uma simples manifestação somática da patologia psíquica vulgarmente conhecida como ira dos mansos. Fazendo um breve desvio à matéria central, talvez consigamos entender-nos melhor se nos reportarmos à divisão clássica, é certo que algo desacreditada pelos modernos avanços da ciência, que distribuía os temperamentos humanos em quatro grandes tipos, a saber, o melancólico, produzido pela bílis negra, o fleumático, que obviamente resultava da fleuma, o sanguíneo, relacionado não menos obviamente com o sangue, e finalmente o colérico, que era consequência da bílis branca. Como facilmente se verifica, nesta divisão quaternária e primariamente simétrica dos humores não havia lugar onde pudesse arrumar-se a comunidade dos mansos. No entanto, a História, que nem sempre se equivoca, assegura-nos que eles já existiam, e até em grande número, naqueles tempos remotos, tal como hoje a Actualidade, capítulo da História que sempre está por escrever, nos diz que não só continuam a existir, como existem ainda em muito maior número. A explicação desta anomalia, que, aceitando-a, tanto nos serviria para compreender as obscuras penumbras da Antiguidade como as festivas iluminações do Agora, talvez possa encontrar-se no facto de, quando da definição e estabelecimento do quadro clínico acima descrito, um outro humor haver sido esquecido. Referimo-nos à lágrima. É surpreendente, para não dizer filosoficamente escandaloso, que algo tão visível, tão corrente e tão abundante como sempre foram as lágrimas tenha passado despercebido aos venerandos sábios da Antiguidade e tão pouca consideração mereça aos não menos sábios se bem que menos venerandos do Agora. Perguntar-se-á que tem esta extensa digressão que ver com a ira dos mansos, sobretudo se tomarmos em conta que a Tertuliano Máximo Afonso, que tão flagrantemente lhe deu vazão, não o vimos chorar até agora. A denúncia que acabamos de fazer da ausência da lágrima na teoria da medicina humoral não significa que os mansos, por natureza mais sensíveis, e portanto mais propensos a essa manifestação líquida dos sentimentos, andem todo o santo dia de lenço na mão assoando o nariz e enxugando de minuto a minuto os olhos pisados de choro. Significa, sim, que muito bem poderá uma pessoa, homem ou mulher, estar a despedaçar-se no seu interior por efeito da solidão, do desamparo, da timidez, daquilo que os dicionários descrevem como um estado afectivo desencadeado nas relações sociais e com manifestações volitivas, posturais e neurovegetativas, e não obstante, às vezes até por causa de uma simples palavra, por um dá-cá-aquela-palha, por um gesto bem intencionado mas em excesso protector, como aquele que há pouco escapou ao professor de Matemática, eis que o pacífico, o dócil, o submisso de repente desaparecem da cena e em seu lugar, desconcertante e incompreensível para os que da alma humana já supunham saber tudo, surge o ímpeto cego e arrasador da ira dos mansos. O mais normal é que dure pouco, mas dá medo quando se manifesta. Por isso, para muita gente, a prece mais fervorosa, na hora de ir para a cairia, não é o consabido pai-nosso ou a sempiterna ave-maria, mas sim esta, Livrai-nos, Senhor, de todo o mal, e em particular da ira dos mansos. Aos alunos de História ter-lhes-ia saído bem a oração, se dela fizessem consumo habitual, o que, tendo em consideração o jovens que são, é mais do que duvidoso. Já lhes chegará o tempo. É verdade que Tertuliano Máximo Afonso entrou na aula de cara amarrada, o que, observado por um estudante que se cria mais perspicaz que a maioria, o levou a sussurrar para o colega do lado, Parece que o tipo vem com a mosca, mas não era certo, o que se notava no professor já era o efeito final da tormenta, uns últimos e dispersos golpes de vento, uma bátega de chuva que se tinha deixado ficar para trás, as árvores menos flexíveis levantando custosamente a cabeça. A prova de que era assim foi que depois de fazer a chamada com voz firme e serena disse, Tinha pensado guardar para a semana que vem a revisão do nosso último exercício escrito, mas fiquei ontem com a noite livre e resolvi adiantar trabalho. Abriu a pasta, tirou os papéis, que pôs em cima da mesa, e continuou, As emendas estão feitas, as notas dadas em função dos erros cometidos, mas, ao contrário do costume, que seria entregar-vos simplesmente os exercícios, vamos dedicar o tempo desta aula à análise dos erros, isto é, quero ouvir de cada um de vocês as razões por que crêem ter errado, pode ser, inclusive, que as razões que me forem dadas me levem a mudar a nota. Fez uma pausa, e acrescentou, Para melhor. Os sorrisos na aula acabaram de levar as nuvens para longe.