Depois do almoço, Tertuliano Máximo Afonso participou, com a maior parte dos seus colegas, numa reunião que havia sido convocada pelo director a fim de ser analisada a última proposta de actualização pedagógica emanada do ministério, das mil e tantas que fazem da vida dos infelizes docentes uma tormentosa viagem a Marte através de uma interminável chuva de ameaçadores asteróides que, com demasiada frequência, acertam em cheio no alvo. Quando chegou a sua vez de falar, num tom indolente e monocórdico que os presentes estranharam, limitou-se a repetir uma ideia que ali deixara já de ser novidade e que era motivo invariável de alguns risinhos complacentes do plenário e de mal disfarçada contrariedade do director, Em minha opinião, disse ele, a única opção importante, a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História, é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou, segundo a minha opinião, de diante para trás, todo o mais, não sendo despiciendo, está condicionado pela escolha que se fizer, toda a gente sabe que assim é, mas continua a fazer-se de conta que não. Os efeitos da perorata foram os de sempre, suspiro de mal resignada paciência do director, trocas de olhares e murmúrios entre os professores. O de Matemática também sorriu, mas o seu sorriso foi de amistosa cumplicidade, como se dissesse, Você tem razão, nada disto é para levar a sério. O gesto que Tertuliano Máximo Afonso lhe enviou meio disfarçadamente do outro lado da mesa significava que agradecia a mensagem, porém, ao mesmo tempo, algo que ia junto e que, na falta de um termo melhor, designaremos por sub-esto, recordava-lhe que o episódio do corredor não fora de todo esquecido. Por outras palavras, ao passo que o gesto principal se mostrava abertamente conciliador, dizendo, O que lá vai, lá vai, o subgesto, de pé atrás, matizava, Sim, mas não tudo. Neste meio-tempo a palavra tinha sido dada ao professor seguinte, e, enquanto este, ao contrário de Tertuliano Máximo Afonso, discorre com facúndia, propriedade e proficiência, aproveitemos para desenvolver um pouco, pouquíssimo para o que a complexidade da matéria necessitaria, a questão dos subgestos, que aqui, pelo menos tanto quanto é do nosso conhecimento, pela primeira vez se levanta. É costume dizer-se, por exemplo, que Fulano, Beltrano ou Sicrano, numa determinada situação, fizeram um gesto disto, ou daquilo, ou daqueloutro, dizemo-lo assim, simplesmente, como se o isto, ou o aquilo, ou o aqueloutro, dúvida, manifestação de apoio ou aviso de cautela, fossem expressões forjadas de uma só peça, a dúvida, sempre metódica, o apoio, sempre incondicional, o aviso, sempre desinteressado, quando a verdade inteira, se realmente a quisermos conhecer, se não nos contentarmos com as letras gordas da comunicação, reclama que estejamos atentos à cintilação múltipla dos subgestos que vão atrás do gesto como a poeira cósmica vai atrás da cauda do cometa, porque esses subgestos, para recorrermos a uma comparação ao alcance de todas as idades e compreensões, são como as letrinhas pequenas do contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão lá. Embora ressalvando a modéstia que as conveniências e o bom gosto aconselham, em nada nos surpreenderia se, num futuro muito próximo, o estudo, a identificação e a classificação dos subgestos viessem, cada um por si e conjuntamente, a tornar-se num dos mais fecundos ramos da ciência semiológica em geral. Casos mais extraordinários que este se têm visto. O professor que estava no uso da palavra concluiu agora mesmo o seu discurso, o director vai dar continuação à roda de intervenções, mas Tertuliano Máximo Afonso levanta energicamente a mão direita, em sinal de que quer falar, O director perguntou-lhe se o que tinha para comentar se reportava aos pontos de vista que acabavam de ser expendidos, e acrescentou que, no caso de assim ser, as normas assemblárias em uso determinavam, como ele não deveria ignorar, que se aguardasse o final das declarações de todos os participantes, mas Tertuliano Máximo Afonso respondeu que não senhor, não é um comentário nem se reporta às pertinentes considerações do prezado colega, que sim senhor, conhece e sempre acatou as normas, tanto as que estão em uso como as que caíram em desuso, o que simplesmente pretendia era pedir licença para se retirar por ter assuntos urgentes a tratar fora da escola. Desta vez não foi um subgesto, mas sim um subtom, um harmónico, digamos, o que veio dar nova força à incipiente teoria acima exposta quanto à importância que deveríamos dar às variações, não só segundas e terceiras, mas também quartas e quintas, da comunicação, tanto a gestual como a oral. No caso que nos interessa, por exemplo, todos os presentes se haviam apercebido de que o subtom emitido pelo director expressara um sentimento de alívio profundo por baixo das palavras que tinha efectivamente pronunciado, Ora essa, por quem é, disponha sempre. Tertuliano Máximo Afonso despediu-se da assembleia com um aceno amplo de mão, um gesto para o geral, um subgesto para o director, e saiu. O carro estava estacionado perto da escola, em poucos minutos encontrava-se dentro dele, olhando firmemente o caminho em direcção ao que seria, por enquanto, o seu único destino consequente com os acontecimentos sucedidos desde a tarde do dia anterior, a loja onde alugara o vídeo do filme Quem Porfia Mata Caça. Esboçara um plano no refeitório enquanto, sozinho, almoçava, aperfeiçoara-o sob o escudo protector das soporíferas intervenções dos colegas, e agora tinha na sua frente o empregado da loja de vídeos, aquele que achara muita graça ao facto de o cliente se chamar Tertuliano e que, após a transacção comercial que não tardará a realizar-se, passará a ter motivos mais que suficientes para reflectir sobre a concomitância entre a raridade de um nome e o estranhíssimo comportamento de quem o usa. Ao princípio não pareceu que assim fosse acontecer, Tertuliano Máximo Afonso entrou como qualquer pessoa, deu, como qualquer pessoa, as boas-tardes, e, como qualquer pessoa, pôs-se a percorrer as estantes, devagar, detendo-se aqui e além, torcendo o pescoço para ler as lombadas das caixas que continham as cassetes, até que finalmente se dirigiu ao balcão e disse, Venho comprar o vídeo que levei daqui ontem, não sei se se recorda, Recordo-me perfeitamente, foi o Quem Porfia Mata Caça, Exacto, venho comprá-lo, Com todo o prazer, mas, se me permite a observação, obviamente faço-a só no seu interesse, seria melhor que nos devolvesse a cassete que alugou e levasse um vídeo novo, é que, com o uso, sabe, sempre há uma certa deterioração tanto da imagem como do som, mínima, sim, mas com o tempo começa-se a notar, Não vale a pena, disse Tertuliano Máximo Afonso, para aquilo que pretendo, o que levei serve muito bem. O empregado registou perplexo as intrigantes palavras para-aquilo-que- pretendo, não é frase que em geral se considere necessário aplicar a um vídeo, um vídeo quer-se para ver, foi para isso que nasceu, que o fabricaram, não há que dar-lhe mais voltas. A singularidade do cliente, porém, não iria ficar por aqui. Na mira de atrair futuras transacções, o empregado tinha resolvido distinguir Tertuliano Máximo Afonso com a melhor prova de apreço e consideração comercial que existe desde os fenícios, Desconto-lhe o aluguer no preço, dissera, e quando procedia à subtracção ouviu que o cliente lhe perguntava, Tem por acaso outros filmes da mesma produtora, Suponho que quererá dizer do mesmo realizador, rectificou o empregado cautelosamente, Não, não, eu disse da mesma produtora, é a produtora que me interessa, não o realizador, Desculpe-me, é que, em tantos anos de actividade neste ramo, nunca nenhum cliente me tinha feito tal pedido, perguntam pelos títulos dos filmes, muitas vezes vêm pelos nomes dos actores, e só muito de tempos a tempos é que alguém me fala de um realizador, de produtores é que nunca, Digamos então que pertenço a um tipo especial de clientes, Realmente, assim parece, senhor Máximo Afonso, murmurou o empregado, depois de lançar um rápido olhar à ficha do cliente. Sentia-se aturdido, confuso, mas também satisfeito pela súbita e feliz inspiração que tivera de se dirigir ao cliente tratando-o pelos apelidos, os quais, sendo também nomes próprios, talvez lograssem, a partir de agora, no seu espírito, empurrar para a sombra o nome autêntico, o nome verdadeiro, aquele que em uma má hora lhe dera vontade de rir. Esquecera-se de que tinha ficado a dever uma resposta ao cliente, se dispunha ou não dispunha na loja doutros filmes da mesma produtora, foi preciso que Tertuliano Máximo Afonso lhe repetisse a pergunta, acrescentando-lhe uma aclaração que esperava fosse capaz de corrigir a reputação de pessoa excêntrica que pelos vistos já havia adquirido no estabelecimento, A razão do meu interesse por ver outros filmes desta produtora relaciona-se com o facto de ter actualmente em fase bastante adiantada de preparação um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, em suma, os sinais ideológicos que uma determinada empresa produtora de cinema, descontando o grau efectivo de consciência com que o faça, vai, passo a passo, metro a metro, fotograma a fotograma, difundindo entre os consumidores. À medida que Tertuliano Máximo Afonso havia desenrolado o seu discurso, o empregado, de puro assombro, de pura admiração, ia arregalando mais e mais os olhos, definitivamente conquistado por um cliente que não só sabia o que queria como também dava as melhores razões para querê-lo, coisa sobre todas rara no comércio e em particular nestas lojas de aluguer de vídeos. Há que dizer, no entanto, que uma aborrecida nódoa maculava de interesse baixamente mercantil o puro assombro e a pura admiração patentes na arroubada cara do empregado, e foi ela, em simultâneo, o pensamento de que sendo a produtora em questão uma das mais activas e antigas do mercado, este cliente, a quem não devo esquecer-me de tratar sempre por senhor Máximo Afonso, acabará deixando na caixa registadora uma boa quantidade de dinheiro quando chegar ao fim do tal trabalho, estudo, ensaio, ou lá o que seja. Evidentemente, haveria que levar em conta que nem todos os filmes tinham sido comercializados em vídeo, mas, ainda assim, o negócio prometia, valia a pena, A minha ideia, para começar, disse o empregado, já recuperado do deslumbramento primeiro, seria pedir à produtora uma lista de todos os filmes, Sim, talvez, respondeu Tertuliano Máximo Afonso, mas isso não e o mais urgente, aliás é muito provável que não venha a precisar de ver todos os filmes produzidos, portanto principiaremos pelos que têm aqui, e depois, consoante os resultados e as conclusões a que for chegando, assim orientarei as minhas futuras escolhas. As esperanças do empregado murcharam subitamente, ainda o balão estava em terra e parecia que já perdia gás. Mas, enfim, os pequenos negócios têm destes problemas, não é porque o burro deu o coice que se lhe vai partir a perna, e se não foste capaz de enriquecer em vinte e quatro meses, talvez o possas conseguir se te esforçares vinte e quatro anos. Com a armadura moral mais ou menos restabelecida graças às virtudes curativas destes pedacinhos de ouro da paciência e da resignação, o empregado anunciou enquanto dava a volta ao balcão e se dirigia às estantes, Vou ver o que temos por aí, ao que Tertuliano Máximo Afonso respondeu, Se os houver, bastar-me-ão cinco ou seis para começar, desde que possa levar trabalho para esta noite, já seria bom, Seis vídeos são pelo menos nove horas de visionamento, lembrou o empregado, terá de fazer serão. Desta vez Tertuliano Máximo Afonso não respondeu, olhava o cartaz anunciador de um filme da mesma companhia produtora, chamava-se A Deusa do Palco e devia ser muito recente. Os nomes dos principais actores encontravam-se escritos em diferentes tamanhos e dispunham-se no espaço do cartaz de acordo com o lugar de maior ou menor relevância que ocupavam no firmamento cinematográfico nacional. Evidentemente, não estaria ali o nome do actor que em Quem Porfia Mata Caça interpreta o papel de recepcionista de hotel. O empregado da loja regressou da sua exploração, trazia empilhados seis vídeos que colocou em cima do balcão, Temos mais, mas como disse que só queria cinco ou seis, Está bem assim, amanhã ou depois passarei por aqui para levar os que tiver encontrado, Acha que devo encomendar mais alguns dos que faltam, perguntou o empregado, tentando avivar as amortecidas esperanças, Comecemos pelos que tem aqui, depois veremos. Não valia a pena insistir, o cliente sabia realmente o que queria. De cabeça, o empregado multiplicou por seis o preço unitário dos vídeos, pertencia às escolas antigas, ao tempo em que ainda não existiam calculadoras de bolso nem com elas se sonhava, e disse um número. Tertuliano Máximo Afonso rectificou, Esse é o preço dos vídeos, não é o valor do aluguer, Como tinha comprado o outro, pensei que também queria comprar estes, justificou-se o empregado, Sim, pode suceder que venha a comprá-los, algum ou até mesmo todos, mas primeiro preciso de os ver, de os visionar, creio que é esta a palavra correcta, saber se têm o que procuro. Vencido pela irrefutabilidade da lógica do cliente, o empregado refez as contas rapidamente e enfiou os vídeos num saco de plástico. Tertuliano Máximo Afonso pagou, deu as boas-tardes até amanhã e saiu. Quem te pôs o nome de Tertuliano sabia o que fazia, resmungou entredentes o vendedor frustrado.
Para o relator, ou narrador, na mais do que provável hipótese de se preferir uma figura beneficiada com o sinete da aprovação académica, o mais fácil, chegado a este ponto, seria escrever que o percurso do professor de História através da cidade, e até entrar em casa, não teve história. Como uma máquina manipuladora do tempo, mormente no caso de o escrúpulo profissional não ter permitido a invenção de uma zaragata de rua ou de um acidente de trânsito com a única finalidade de encher os vazios da intriga, aquelas três palavras, Não Teve História, empregam-se quando há urgência em passar ao episódio seguinte ou quando, por exemplo, não se sabe muito bem que fazer com os pensamentos que a personagem está a ter por sua própria conta, sobretudo se não têm qualquer relação com as circunstâncias vivenciais em cujo quadro supostamente se determina e actua. Ora, nesta exacta situação se encontrava o professor e novel amador de vídeos Tertuliano Máximo Afonso enquanto ia guiando o seu carro. É verdade que pensava, e muito, e com intensidade, mas os pensamentos dele eram a tal extremo alheios ao que nas últimas vinte e quatro horas tinha andado a viver, que se resolvêssemos tomá-los em consideração e os trasladássemos a este relato, a história que nos havíamos proposto contar teria de ser inevitavelmente substituída por outra. É certo que poderia valer a pena, melhor ainda, uma vez que conhecemos tudo sobre os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso, sabemos que valeria a pena, mas isso representaria aceitar como baldados e nulos os duros esforços até agora cometidos, estas quarenta compactas e trabalhosas páginas já vencidas, e voltar ao princípio, à irónica e insolente primeira folha, desaproveitando todo um honesto trabalho realizado para assumir os riscos de uma aventura, não só nova e diferente, mas também altamente perigosa, que, não temos dúvidas, a tanto os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso nos arrastariam. Fiquemos portanto com este pássaro na mão em vez da decepção de ver dois a voar. Além disso, não há tempo para mais. Tertuliano Máximo Afonso acabou de arrumar o carro, percorre a pequena distância que o separa de casa, numa das mãos leva a sua pasta de professor, na outra o saco de plástico, que pensamentos haveria de ter agora se não deitar contas a quantos vídeos irá conseguir visionar, bicudo verbo, antes de ir para a cama, é o resultado de interessar-se por secundários, fosse este uma estrela e tê-lo-íamos aí logo às primeiras imagens. Tertuliano Máximo Afonso já abriu a porta, já entrou, também já fechou a porta, põe a pasta em cima da secretária e, ao lado, o saco com os vídeos. O ar está limpo de presenças, ou talvez simplesmente não se notem, como se o que aqui entrou ontem à noite se tivesse tornado, entretanto, parte inseparável da casa. Tertuliano Máximo Afonso foi ao quarto mudar de roupa, abriu o frigorífico da cozinha para ver se lhe apetecia algo do que tinha dentro, tornou a fechá-lo e voltou à sala com um copo e uma lata de cerveja. Tirou os vídeos do saco e dispô-los por ordem de datas de produção, desde o mais antigo, O Código Maldito, dois anos antes do já visto Quem Porfia Mata Caça, até ao mais recente, A Deusa do Palco, do ano passado. Os quatro restantes, também seguindo a mesma ordem, são Passageiro Sem Bilhete, A Morte Ataca de Madrugada, O Alarme Tocou Duas Vezes e Telefona-me Outro Dia. Um movimento reflexo, involuntário, provocado certamente pelo último destes títulos, fê-lo virar a cabeça para o seu próprio telefone. A luz que informava haver chamadas no gravador estava acesa. Hesitou uns segundos, mas acabou por carregar no botão que as faria ouvir. A primeira era de uma voz feminina que não se anunciou, provavelmente por de antemão saber que a reconheceriam, disse apenas, Sou eu, e logo continuou, Não sei o que se passa contigo, há uma semana que não me telefonas, se a tua intenção é acabar, melhor que mo digas na cara, o facto de termos discutido no outro dia não devia ser motivo para esse silêncio, mas tu lá sabes, quanto a mim sei que gosto de ti, adeus, um beijo. A segunda chamada foi da mesma voz, Por favor, telefona-me. Havia uma terceira chamada, mas essa era do colega de Matemática, Meu caro, dizia, tenho a impressão de que você hoje se aborreceu comigo, mas, com toda a sinceridade, não recordo o que é que eu possa ter feito ou dito para que tal sucedesse, penso que deveríamos conversar, esclarecer qualquer mal-entendido que se tenha metido entre nós, se eu tiver de vir a pedir-lhe desculpas, rogo-lhe que tome já esta chamada como o princípio delas, um abraço, creio que deve saber que sou seu amigo. Tertuliano Máximo Afonso franziu as sobrancelhas, recordava vagamente que acontecera na escola algo irritante ou desagradável em que entrava o de Matemática, mas não conseguia lembrar-se do que fosse. Fez desandar o mecanismo de escuta, ouviu novamente as duas primeiras chamadas, desta vez com um meio sorriso e uma expressão fisionómica daquelas a que costumamos chamar sonhadoras. Levantou-se para retirar do leitor a cassete de Quem Porfia Mata Caça e introduzir-lhe O Código Maldito, mas no último momento, já com o dedo no botão de arranque, apercebeu-se de que, se o fizesse, iria cometer uma gravíssima infracção, saltar um dos pontos sequenciais do plano de acção que havia elaborado, isto é, copiar do final de Quem Porfia Mata Caça os nomes dos secundários de terceira ordem, esses que, não obstante preencherem um tempo e um espaço na historieta, não obstante pronunciarem algumas palavras e servirem de satélites, minúsculos, claro está, ao serviço dos enlaces e das órbitas cruzadas das estrelas, não têm direito a um nome daqueles de pôr e tirar, tão necessários na vida como na ficção, embora talvez não pareça bem dizê-lo. É certo que o poderia fazer depois, em qualquer altura, mas a ordem, como do cão se diz também, é a melhor amiga do homem, embora, como o cão, de quando em quando morda. Ter um lugar para cada coisa e ter cada coisa no seu lugar sempre foi uma regra de ouro nas famílias que prosperaram, assim como tem sido abundantemente demonstrado que executar em boa ordem o que se deve foi sempre a mais sólida apólice de seguro contra as avantesmas do caos. Tertuliano Máximo Afonso pôs a correr rapidamente para o fim a já conhecida fita de Quem Porfia Mata Caça, travou-a onde lhe interessava, na tal lista dos secundários, e, com a imagem parada, copiou para uma folha de papel os nomes dos homens, só os dos homens, porque desta vez, contra o que tem sido habitual, o objecto da busca não é uma mulher. Supomos que o que aí ficou dito foi mais do que bastante para se poder entender a operação que Tertuliano Máximo Afonso havia delineado na sua árdua cavilação, ou seja, proceder à identificação do recepcionista do hotel, esse que foi o seu retrato escrito e escarrado no tempo em que usava bigode, que certamente o continua a ser agora, sem ele, e quem sabe se amanhã também, quando as entradas do cabelo nas fontes de um começarem a abrir caminho em direcção à calvície do outro. O que Tertuliano Máximo Afonso se propôs, no fim de contas, foi uma modesta repetição do prestidigitado ovo-de-colombo, tomar nota de todos os nomes de actores secundários, tanto dos filmes em que tenha participado o empregado do hotel como daqueles a que não tenha sido chamado. Por exemplo, se neste filme que acaba de introduzir no leitor, O Código Maldito, não lhe aparecer a sua cópia humana, poderá riscar na primeira lista todos aqueles nomes que em Quem Porfia Mata Caça se repetirem, Já sabemos que para um neanderthal não lhe serviria de nada a cabeça se se visse numa situação destas, mas para um professor de História, habituado a lidar com figuras dos mais desvairados lugares e épocas, considere-se que ainda ontem esteve a ler no erudito livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas o capítulo que trata dos semitas amorreus, esta versão pobre do tesouro escondido não passa de uma brincadeira de crianças que talvez não devesse ter merecido da nossa parte tão miúda e circunstanciada explicação. Afinal, ao contrário do que antes havíamos suposto, o recepcionista do hotel reapareceu mesmo em O Código Maldito, agora na figura de um caixa de banco que, sob a ameaça de uma pistola e exagerando os tremeliques de medo, decerto para tornar-se mais convincente aos insatisfeitos olhos do realizador, não teve outro remédio que transferir o conteúdo do cofre para uma bolsa que o assaltante lhe tinha atirado pelo guichê dentro, ao mesmo tempo que rosnava com a boca torcida que caracteriza o género gangsteril, Ou tu me enches o saco, ou eu te encho de chumbo, escolhe. Fazia bom uso dos verbos e das conjugações reflexas, este bandido. O caixa interveio mais duas vezes na acção, a primeira para responder a perguntas da polícia, a segunda quando o gerente do banco decidiu retirá-lo do balcão porque, traumatizado pelo sucedido, todos os clientes tinham começado a parecer-lhe ladrões. Faltou dizer que este caixa de banco usava o mesmo tipo de bigode fino e lustroso que o empregado do hotel. Desta vez, Tertuliano Máximo Afonso já não sentiu suores frios a escorrerem-lhe pelas costas abaixo, já não lhe tremeram as mãos, parava a imagem por alguns segundos, observava-a com uma curiosidade fria, e seguia adiante. Tratando-se de um filme em que o homem idêntico, sósia, siamês desligado, prisioneiro do castelo de zenda ou algo ainda à espera de classificação havia participado, o método para prosseguir na busca da sua identidade real teria de ser naturalmente diferente, marcando-se agora todos os nomes que, em comparação com a primeira lista, aparecessem repetidos na segunda. Foram dois, apenas dois, os que Tertuliano Máximo Afonso assinalou com uma cruz. Ainda vinha distante a hora de jantar, o apetite não dava a mínima mostra de impaciência, poderia portanto ver o filme que cronologicamente se seguia, Passageiro Sem Bilhete era o seu título, e bem poderiam ter-lhe chamado Tempo Perdido, ao homem da máscara de ferro não o haviam contratado. Tempo perdido, diz-se, mas afinal não tanto, porque graças a ele alguns nomes mais puderam ser riscados na primeira lista e na segunda, Por exclusão de partes, hei-de conseguir lá chegar, disse em voz alta Tertuliano Máximo Afonso, como se de repente tivesse sentido a necessidade de uma companhia. O telefone tocou. O menos provável de todos os possíveis era que se tratasse do colega de Matemática, o mais possível de todos os prováveis era que fosse a mesma mulher que antes fizera as duas chamadas. Também podia ser a mãe querendo saber lá de longe como estava de saúde o filho querido. Após uns quantos toques, o telefone calou-se, sinal de que o mecanismo do gravador entrara em funcionamento, a partir de agora as palavras registadas ficarão à espera de quando e quem as quiser escutar, a mãe que pergunta, Como tens passado, meu filho, o amigo que insiste, Não creio ter feito nada errado, a amante que se desespera, Não te merecia isto. Seja o que for que se encontre ali dentro, a Tertuliano Máximo Afonso não lhe apetece ouvi-lo. Para se distrair, mais porque o estômago tivesse reclamado alimento, foi à cozinha preparar uma sanduíche e abrir outra cerveja. Sentou-se num banco, mastigou sem prazer a escassa comida, enquanto o pensamento, deixado à solta, se entregava aos seus devaneios. Percebendo que a vigilância consciente tinha esmorecido numa espécie de delíquio, o senso comum, que depois da sua enérgica primeira intervenção havia andado não se sabe por onde, insinuou-se entre dois fragmentos inconclusos daquele vago discorrer e perguntou a Tertuliano Máximo Afonso se ele se sentia feliz com a situação que tinha criado. Devolvido ao sabor amargo de uma cerveja que perdera rapidamente a frescura e à mole e húmida consistência de um fiambre de baixa qualidade espremido entre duas fatias de falso pão, o professor de História respondeu que a felicidade não tinha nada que ver com o que se estava a passar ali, e, quanto à situação, pedia licença para recordar que não fora ele quem a criara. De acordo, não a criaste tu, respondeu o senso comum, mas a maior parte das situações em que nos metemos nunca teriam chegado tão longe se não as tivéssemos ajudado, e tu não me vais negar que ajudaste esta, Tratou-se de pura curiosidade, nada mais, Já discutimos isso, Tens alguma coisa contra a curiosidade, O que eu estou a observar é que a vida, até agora, não te ensinou a compreender que a nossa melhor prenda, nossa do senso comum, tem sido precisamente, e desde sempre, a curiosidade, Em minha opinião, senso comum e curiosidade são incompatíveis, Como te enganas, suspirou o senso comum, Prova-mo, Quem julgas tu que inventou a roda, Não sabemos, Sabemos, sim senhor, a roda foi inventada pelo senso comum, só uma enorme quantidade de senso comum é que teria sido capaz de a inventar, E a bomba atómica, foi também o teu senso comum que a inventou, perguntou Tertuliano Máximo Afonso no tom triunfante de quem acabou de apanhar o adversário descalço, Não, essa não, a bomba atómica inventou-a também um senso, mas esse de comum não tinha nada, O senso comum, perdoa-me que to diga, é conservador, aventuro-me mesmo a afirmar que é reaccionário, Essas cartas acusatórias sempre chegam, mais cedo ou mais tarde toda a gente as escreve e toda a gente as recebe, Então será certo, se são assim tantos os que têm estado de acordo em escrevê-las e os que não têm outra alternativa que recebê-las, a não ser escrevê-las também, Devias saber que estar de acordo nem sempre significa compartilhar uma razão, o mais de costume é reunirem-se pessoas à sombra de uma opinião como se ela fosse um guarda-chuva, Tertuliano Máximo Afonso abriu a boca para responder, se a expressão abriu a boca é permitida tratando-se de um diálogo todo ele silencioso, todo ele mental, como foi o caso deste, mas o senso comum já ali não estava, tinha-se retirado sem ruído, não propriamente derrotado, mas indisposto consigo mesmo por ter permitido que a conversa se desviasse do assunto que o tinha feito reaparecer. Se é que não fora simplesmente sua a culpa de que assim tivesse sucedido. De facto, não é raro que o senso comum se equivoque nas sequências, para mal depois de ter inventado a roda, para pior depois de ter inventado a bomba atómica. Tertuliano Máximo Afonso olhou o relógio, fez contas ao tempo que lhe tomaria outro filme, na verdade começava a sentir os efeitos da mal dormida noite anterior, as pálpebras, com a ajuda também da cerveja, pesavam-lhe como chumbo, mesmo a abstracção em que há pouco caíra não devia ter tido outra causa. Se vou já para a cama, disse, acordo provavelmente daqui por duas ou três horas, e depois é pior. Decidiu ver um bocado de A Morte Ataca de Madrugada, até podia ser que o tipo não entrasse neste filme, isso simplificaria tudo, saltaria para o final, tomaria nota dos nomes, e então, sim, iria para a cama.