Talvez porque não aceite que o cérebro humano jamais opere de forma puramente aleatória.
22 DE JULHO DE 2201
Ontem o chão finalmente parou de sacudir. Richard o predissera. Quando não voltamos para o tanque, há dois dias, na hora costumeira, Richard conjecturou corretamente que a manobra estaria quase completada.
De modo que assim entramos em uma outra fase de nossa incrível odisséia. Meu marido informou-nos que estamos agora viajando a uma velocidade igual a metade da velocidade da luz. Isso significa que cobrimos a distância Terra-Lua a aproximadamente cada dois segundos. Estamos indo, mais ou menos, na direção da estrela Sirius, a mais brilhante estrela verdadeira do céu noturno de nosso planeta natal. Se não houver mais manobras, estaremos na vizinhança de Sirius em mais uns doze anos.
É um alívio que nossa vida possa agora voltar a alguma espécie de equilíbrio local. Simone parece ter ultrapassado os longos períodos no tanque sem quaisquer dificuldades aparentes, mas não acredito que uma experiência como essa possa deixar um bebê inteiramente ileso. É importante para ela que nós agora restabeleçamos nossa rotina diária.
Nos momentos em que estou só, penso muitas vezes naquelas vividas alucinações durante os primeiros dez dias no tanque. Devo admitir que fiquei encantada ao resistir finalmente a várias “zonas de crepúsculo” de total privação sensorial sem desenhos loucos e coloridos ou imagens desconexas inundarem minha mente. Aquela altura eu já começava a me preocupar com minha sanidade e, falando a verdade, eu já ultrapassara de muito o “avassalador”. Embora as alucinações parassem de repente, minhas lembranças da força de tais visões ainda me deixavam assustada cada vez que as pequenas luzes da tampa do tanque se apagavam, durante as últimas semanas.
Tive apenas mais uma visão depois daqueles primeiros dez dias — que pode efetivamente ter sido apenas um sonho extremamente vivido durante um período normal de sono. A despeito do fato de esta imagem em particular não ser tão nítida quanto as anteriores, eu a retenho mesmo assim em detalhe em função de sua semelhança com um dos segmentos alucinatórios ocorridos enquanto estava no fundo do buraco no ano passado.
Em meu sonho ou visão final estava eu sentada com meu pai ouvindo um concerto ao ar livre em local indeterminado. Um cavalheiro oriental idoso, com longa barba branca, estava sozinho no palco, tocando alguma espécie de instrumento de cordas. Ao contrário de minha visão no fundo do buraco, no entanto, meu pai e eu não nos transformamos em passarinhos e voamos para Chinon, na França. Ao invés disso, o corpo de meu pai desapareceu completamente, ficando apenas os olhos. Em poucos segundos, cinco outros pares de olhos formaram um hexágono no ar, acima de mim. Reconheci imediatamente os olhos de Omeh, e os de minha mãe, porém os outros três pares eram desconhecidos. Os olhos nos vértices do hexágono olhavam todos fixamente para mim, sem piscar, como se estivessem tentando comunicar-me alguma coisa.
Logo antes de a música parar, ouvi um único som distinto. Várias vozes emitiram simultaneamente a palavra “Perigo”.
Qual a origem de minhas alucinações, e por que fui eu a única dos três a experimentá-las? Richard e Michael também foram sujeitados à privação sensorial, e ambos confessaram que alguns desenhos bizarros flutuaram “em frente a seus rostos”, porém suas imagens jamais foram coerentes. Se, como conjecturamos, os ramaianos de início injetaram-nos com um ou dois elementos químicos, usando os fios finíssimos que se enrolavam em nossos corpos, para ajudar-nos a dormir naquele ambiente desconhecido, por que seria eu a única a reagir com visões tão delirantes?
Tanto Richard quanto Michael acreditam que a resposta é simples, que eu sou um “indivíduo drogável de imaginação hiperativa”. No que lhes concerne, com isso fica tudo explicado. Sem querer entrar mais no assunto, eles são corteses quando levanto questões ligadas às minhas “viagens”, porém não se mostram interessados. Eu poderia esperar esse tipo de reação de Richard, mas certamente não de Michael.
Na verdade, nem mesmo nosso previsível general O’Toole tem se mostrado inteiramente ele mesmo desde que começaram nossas sessões no tanque. Fica claro que ele tem se preocupado com outros assuntos. Mas ainda hoje pela manhã consegui ter ao menos um vislumbre do que lhe anda indo pela mente.
“Sem que o admitisse conscientemente”, disse Michael afinal, lentamente, depois que eu o importunei com um interrogatório amistoso por vários minutos, “eu sempre redefini e relimitei Deus a cada novo avanço da ciência. Eu havia conseguido integrar um conceito dos ramaianos em meu catolicismo, mas ao fazê-lo eu apenas expandira minha definição limitada d’Ele. Agora, quando me encontro a bordo de uma espaçonave robô viajando a velocidades relativistas, vejo que preciso liberar Deus completamente. Só então pode Ele ser o ente supremo de todas as partículas e processos do universo.”
O desafio de minha vida no futuro próximo fica no outro extremo. Richard e Michael estão fixados em idéias profundas, Richard no campo da ciência e da engenharia, Michael no mundo da alma. Embora me dêem o maior prazer as idéias estimulantes produzidas por cada um dos dois em sua busca particular da verdade, alguém tem de prestar atenção às tarefas quotidianas da vida. Nós três temos a responsabilidade, afinal, de preparar nossa única integrante da nova geração para sua vida adulta.
Está parecendo que a tarefa de ser, entre pai e mãe, a dominante, sempre recairá sobre mim.
É uma responsabilidade que abraço com alegria. Quando Simone me sorri, radiosa, quando descansa em meio a uma mamada, não me preocupo com minhas alucinações, não me importa realmente se Deus existe ou não, e não sinto que tenha maior importância os ramaianos haverem desenvolvido um método para utilizar a água como combustível nuclear. Nesses instantes, a única coisa que realmente importa é ser eu a mãe de Simone.
31 DE JULHO DE 2201
A primavera positivamente chegou em Rama. O degelo começou tão logo a manobra se completou. Aquela altura, a temperatura na superfície atingira uns frígidos vinte e 25° abaixo de zero, e já começávamos a nos preocupar com o quanto a temperatura exterior poderia ainda baixar antes que o sistema de regulagem das condições termais de nossa toca chegasse a seu limite. A temperatura vem subindo uniformemente quase um grau por dia desde então e, se continuar assim, atravessaremos a linha de congelamento em duas semanas. Estamos agora fora do sistema solar, no vácuo quase perfeito que ocupa os imensos vazios entre estrelas vizinhas. Nosso sol ainda é o objeto dominante no céu, porém nenhum dos planetas é sequer visível. Duas ou três vezes por semana Richard procura nos dados telescópicos por algum sinal dos cometas na Nuvem Oort, porém até aqui não viu nada.
De onde vem o calor que esquenta o interior de nosso veículo? Nosso mestre em engenharia, o bonitão cosmonauta Richard Wakefield, deu uma resposta rápida quando Michael lhe fez essa pergunta ontem. “O mesmo sistema nuclear que estava municiando a vasta mudança de velocidade provavelmente está agora gerando o calor. Rama deve ter dois regimes operacionais diferentes.
Quando chega perto de uma fonte de calor, como uma estrela, são desligados todos os seus sistemas primários, inclusive o controle térmico e de propulsão.”
Tanto Michael quanto eu congratulamo-nos com Richard por tal explicação eminentemente plausível. “Porém”, questionei, “ainda há muitas outras perguntas. Por que, por exemplo, teriam de ser dois sistemas diversos de engenharia? E por que desligar todo o sistema primário?”
“Quanto a isso, posso apenas especular”, respondeu Richard com seu sorriso habitual. “Talvez o sistema primário necessite de reparos periódicos que só possam ser levados a cabo quando houver fonte externa de calor e força. Vocês já viram como os vários biomas fazem a manutenção da superfície de Rama.