Talvez haja um outro conjunto de biomas que executem a manutenção dos sistemas primários.”
“Tenho uma outra idéia”, disse Michael lentamente. “Você acredita que seja por algum motivo predeterminado que estamos a bordo desta espaçonave?”
“O que quer dizer com isso?”, perguntou Richard, com o cenho franzido.
“Você julga que é por acontecimento aleatório que estamos aqui? Ou seria acontecimento provável, dadas todas as probabilidades e a natureza de nossa espécie, que alguns membros da raça humana estivessem dentro de Rama neste momento?”
Gostei da linha de raciocínio de Michael. Estava insinuando, embora não o compreendesse inteiramente, que talvez os ramaianos não fossem apenas gênios na área das ciências exatas e em engenharia. Talvez eles soubessem alguma coisa sobre psicologia universal, também. Richard não estava seguindo a idéia.
“Está sugerindo”, perguntei, “que os ramaianos tenham usado propositadamente seus sistemas secundários na vizinhança da Terra, esperando com isso atrair-nos para um encontro?”
“Isso é um despropósito”, disse Richard imediatamente.
“Mas, Richard”, retrucou Michael, “pense um pouco. Qual seria a probabilidade de qualquer contato se os ramaianos tivessem entrado feito um raio em nosso sistema em fração significativa da velocidade da luz, tivessem dado a volta ao sol e ido alegremente embora? Absolutamente zero. E, como você mesmo sugeriu, pode haver outros ‘estrangeiros’, se assim podemos nos chamar, conosco nesta nave. Duvido que muitas espécies tivessem a capacidade…”
Durante uma pausa na conversa lembrei aos homens que em breve o Mar Cilíndrico iria degelar-se a partir do fundo, e que logo após haveria furacões e maremotos. Todos concordamos que deveríamos recolher o barco a vela de apoio que estava no sítio Beta.
Os homens levaram um pouco mais de doze horas para atravessar o gelo ida e volta. Já era noite quando retornaram. Quando Richard e Michael chegaram na toca, Simone, que sempre tem plena consciência de tudo à sua volta, estendeu os braços para Michael.
“Já vi que alguém está contente porque voltei”, brincou Michael.
“Desde que seja apenas Simone”, disse Richard. Parecia estranhamente tenso e distante.
Na noite passada, esse estranho clima emocional perdurou. “O que foi, querido?”, perguntei-lhe, quando já estávamos sozinhos em nossa esteira. Ele não respondeu logo, de modo que lhe beijei o rosto e fiquei esperando.
“É Michael”, disse ele, afinal. “Eu só compreendi hoje, quando estávamos carregando o barco através do gelo, que ele está apaixonado por você. Precisava ouvi-lo. Ele só fala de você. Você é a mãe perfeita, a esposa perfeita, a amiga perfeita. Chegou até a confessar que tem inveja de mim.”
Acariciei Richard durante alguns segundos, tentando descobrir como deveria responder. “Acho que você está dando importância demais a meia dúzia de comentários casuais, querido”, disse eu finalmente. “Michael estava apenas expressando sua afeição honesta. Eu também gosto muito dele…”
“Eu sei — e é isso que me incomoda”, interrompeu-me Richard abruptamente. “Ele toma conta de Simone a maior parte do tempo, quando você está ocupada, vocês dois conversam horas a fio enquanto fico ocupado com meus projetos…”
Ele calou-se e ficou a me fixar, com um olhar estranho e desamparado.
Era algo de assustador. Esse não era o mesmo Richard Wakefield que eu conheço intimamente há mais de um ano. Um arrepio me percorreu todo o corpo antes que seus olhos se suavizassem e ele me beijasse.
Depois que fizemos amor e ele adormeceu, Simone ficou inquieta e resolvi amamentá-la. Enquanto o fazia, fiquei pensando em todo o tempo passado desde que Michael nos encontrou na base do elevador de cadeiras. Não havia nada que eu pudesse mencionar que devesse causar o mínimo ciúme em Richard. Até mesmo fazer amor tem continuado a ser uma atividade regular e satisfatória, embora confesse que não muito imaginativa desde o nascimento de Simone.
O olhar de louco que eu vira nos olhos de Richard continuou a me assombrar mesmo depois de eu ter acabado de amamentar Simone. E prometi a mim mesma que encontraria mais ocasiões para ficar sozinha com Richard nas próximas semanas.
6
20 DE JUNHO DE 2202
Verifiquei hoje que estou realmente grávida de novo. Michael ficou encantado, Richard surpreendentemente quase sem reação. Quando falei com Richard em particular, ele admitiu que seus sentimentos eram confusos, porque Simone finalmente atingira o estágio no qual já não precisava de atenção constante. Lembrei-o de que quando conversamos, há dois meses, sobre termos um outro filho, ele concordara com entusiasmo. Richard sugeriu-me que sua ansiedade por ser pai uma segunda vez fora muito influenciada por eu estar “obviamente excitada” no momento.
O novo bebê deve chegar em meados de março. A essa altura já devemos ter concluído o quarto das crianças, ficando com bastante espaço para toda a família. Lamento que Richard não esteja emocionado com a idéia de ser pai novamente, mas fico contente que Simone vá ter uma companhia para brincar.
15 DE MARÇO DE 2203
Catherine Colin Wakefield (nós a chamaremos de Katie) nasceu a 13 de março, às 6:16h, da manhã. Foi um parto fácil, só quatro horas entre a primeira contração forte e o nascimento em si. Não houve dor maior na ocasião. Partejei acocorada e estava em tão boas condições que eu mesma cortei o cordão umbilical.
Katie chora muito. Tanto Geneviève quanto Simone foram bebês doces e suaves, mas já está claro que Katie vai ser barulhenta. Richard ficou contente por eu ter dado a ela o nome de sua mãe. Tive esperanças que desta vez ele se interessasse mais por seu papel de pai, mas no momento ele está ocupado demais com o trabalho em seu “banco de dados perfeito” (que irá indexar e permitir acesso fácil a todas as nossas informações) para poder dar muita atenção a Katie.
Minha terceira filha pesou um pouquinho menos de quatro quilos ao nascer e media 54 centímetros. Simone, sem dúvida, nasceu pesando menos, mas não tínhamos uma balança suficientemente exata naquele tempo. Katie tem a pele bem clara, na realidade quase branca, e seu cabelo é muito mais claro do que os cachos escuros de sua irmã. Seus olhos são de um azul surpreendente.
Sei que não é pouco usual bebês terem olhos azuis, e que muitas vezes eles escurecem bastante durante o primeiro ano de vida. Porém jamais esperei que uma filha minha tivesse olhos azuis sequer por um momento.
18 DE MAIO DE 2203
É difícil acreditar que Katie já esteja com mais de dois meses. Ela é uma criança muito exigente! A esta altura eu já deveria ter conseguido treiná-la para não puxar meus mamilos, mas não consigo quebrar o hábito. Ela fica especialmente difícil quando alguma outra pessoa está presente enquanto eu a amamento. Se eu viro a cabeça para falar com Michael ou Richard, ou especialmente se tento responder uma das perguntas de Simone, então Katie puxa o mamilo com toda a força.
Richard anda muito instável ultimamente. Às vezes, é aquele homem brilhante e espirituoso que conhecemos, a fazer Michael e eu rirmos com suas brincadeiras eruditas, mas seu humor é capaz de se alterar em um momento.
Uma única observação aparentemente inócua feita por qualquer um de nós é capaz de afundá-lo em depressão, ou até mesmo provocar raiva. Desconfio que o verdadeiro problema de Richard hoje em dia seja o tédio.
Já terminou seu projeto de banco de dados, e ainda não começou nenhuma outra grande atividade. O fabuloso computador que ele construiu no ano passado contém sub-rotinas que tornam nossa interface com a tela negra quase rotineira.