“É a nossa amiga”, sussurrei para Richard, lembrando-me da ave líder que concordara em transportar-nos através do Mar Cilíndrico quatro anos antes.
Porém, esta ave não era a criatura saudável e robusta que voara no centro da formação quando nós fugimos de Nova York. Esta estava magra, esquálida, com seu veludo sujo e maltratado. “Ela está doente”, disse Richard quando a ave pousou a uns vinte metros de nós. A ave balbuciou alguma coisa suavemente e sacudiu a cabeça com nervosismo, como se esperasse companhia. Richard deu um passo em direção a ela, mas a criatura sacudiu as asas, bateu-as uma vez e recuou alguns metros.
“Que comida temos aí”, indagou Richard falando baixo, “que mais se aproxime quimicamente ao melão maná?”
Sacudi a cabeça. “Não temos comida nenhuma a não ser o resto da galinha de ontem… espere”, disse eu, interrompendo-me, “nós temos aquele ponche verde que as crianças gostam. Ele lembra o líquido que fica dentro do melão maná.”
Richard sumiu antes que eu acabasse. Durante os dez minutos que ele levou para voltar, a ave e eu olhamos uma para a outra. Tentei concentrar minha mente em pensamentos amigáveis, esperando que de algum modo minhas boas intenções se comunicassem através de meus olhos. Em um momento vi a ave mudar de expressão, mas é claro que não tinha a menor idéia do que a expressão significava.
Richard voltou trazendo uma de nossas tigelas pretas cheia de ponche verde. Pousou a tigela à nossa frente e apontou para ela, enquanto recuávamos uns seis ou oito metros. A ave aproximou-se dela em passos pequenos e hesitantes, mas eventualmente parou bem defronte à tigela. A ave abaixou o bico até mergulhá-lo no líquido, experimentou um pouco, depois atirou a cabeça para trás para engolir. Aparentemente, o ponche foi aceitável, pois o líquido esgotou-se em menos de um minuto. Quando acabou, deu dois passos para trás, abriu as asas ao máximo, e deu uma volta completa.
“Agora nós devíamos dizer ‘De nada’“, disse eu, estendendo minha mão para Richard. Nós, por nossa vez, também demos uma volta completa, como havíamos feito ao dizer adeus e obrigado quatro anos antes, e nos curvamos ligeiramente na direção da ave depois que acabamos.
Tanto Richard quanto eu pensamos que a criatura sorriu, mas logo admitimos que poderíamos tê-lo imaginado. A ave de veludo cinzento abriu as asas, decolou e ficou pairando no ar sobre as nossas cabeças.
“Aonde acha que ela vai?”, perguntei eu.
“Ela está morrendo”, respondeu ele suavemente. “Ela vai dar uma última olhada no mundo que conheceu.
6 DE JANEIRO DE 2205
Hoje é meu aniversário. Estou com 41 anos. Ontem à noite tive um de meus sonhos vividos. Eu era muito velha. Meu cabelo estava inteiramente grisalho e meu rosto muito enrugado. Eu estava morando em um castelo — em algum ponto do Loire, não muito longe de Beauvois — com duas filhas já crescidas (nenhuma das quais se parecia, no sonho, com Simone e Katie ou Geneviève) e três netos. Os meninos eram todos adolescentes, fisicamente saudáveis, mas havia algo de errado com cada um deles. Eram todos burros, talvez até retardados. Lembro-me que, no sonho, eu tentava explicar a eles como a molécula da hemoglobina carrega oxigênio do sistema pulmonar para os tecidos. Nenhum deles conseguia compreender o que eu dizia. Despertei do sonho deprimida. Estávamos no meio da noite e todo o resto da minha família estava dormindo. Como faço muitas vezes, caminhei pelo corredor até o quarto das crianças para ver se elas estavam cobertas por seus cobertores leves. Simone quase não se move à noite, mas Katie, como sempre, já havia jogado fora o cobertor de tanto sacudir as pernas. Tornei a cobrir Katie e depois sentei-me em uma das cadeiras.
O que me estaria incomodando? Fiquei imaginando. Por que será que ando tendo tantos sonhos sobre filhos e netos? Um dia, na semana passada, fiz uma referência de brincadeira à possibilidade de termos um terceiro filho e Richard, que anda atravessando outra de suas fases de depressão, quase morreu de susto. Acho que ele lamenta ter deixado que eu o convencesse a termos Katie.
Mudei de assunto imediatamente, sem querer provocar outro de seus discursos niilistas.
Será que eu mesma quereria um novo bebê a esta altura? Será que ele faria algum sentido, na situação na qual nos encontramos? Deixando de lado, no momento, quaisquer razões pessoais que eu pudesse ter para dar à luz uma terceira criança, existe sempre um forte argumento biológico em favor da continuidade da procriação. Nossa melhor probabilidade de destino leva a crer que jamais venhamos a ter contatos com outros membros da espécie humana. Se nós somos os últimos de nossa linhagem, seria bom que prestássemos a devida atenção aos princípios fundamentais da evolução: um máximo de variação genética produz a mais alta probabilidade de sobrevivência em meio ambiente incerto.
Depois de ter acordado inteiramente de meu sonho de ontem à noite, minha mente levou o cenário ainda mais adiante. Suponhamos, indaguei-me, que Rama na realidade não esteja indo para lugar nenhum, pelo menos por enquanto, e que nós devamos passar o resto de nossas vidas nas condições atuais. Nesse caso, o provável é que Simone e Katie sobrevivam a nós, os três adultos. O que acontecerá depois? perguntei-me. A não ser que de algum modo preservássemos um pouco de sêmen ou de Michael ou de Richard (e ambos os problemas biológicos e sociológicos seriam formidáveis), minhas filhas não poderiam reproduzir. Elas talvez venham a chegar ao paraíso ou ao nirvana, mas eventualmente perecerão e os genes que carregam consigo morrerão com elas.
Mas imagine, continuei, que eu tenha um filho. As duas meninas terão um companheiro da mesma idade e o problema das gerações futuras será sensivelmente diminuído.
Foi nesse ponto dos meus pensamentos que uma idéia verdadeiramente louca explodiu em meu cérebro. Uma de minhas principais áreas de especialização durante minha formação fora a genética, em particular os defeitos hereditários. Lembrei-me de meus estudos de casos das famílias reais da Europa entre os séculos XV e XVIII, e os muitos indivíduos “inferiores” produzidos por excesso de endogenia. Um filho produzido por Richard e por mim teria os mesmos ingredientes genéticos que Simone e Katie. Os filhos desse filho com qualquer uma das duas meninas, nossos netos, teriam risco altíssimo de defeitos. Um filho produzido por Michael e por mim, por outro lado, compartilharia apenas de metade de seus genes com as meninas e, se minha memória não me falha sobre os dados, seus descendentes com Simone ou Katie teriam risco de defeitos drasticamente menor. Rejeitei imediatamente esse pensamento chocante. Ele, no entanto, não foi embora. Mais tarde, naquela noite, quando deveria estar dormindo, minha mente voltou ao mesmo tópico. E se eu ficasse grávida de Richard e nascesse uma terceira menina? Teríamos de repetir o processo todo. Já estou com 41 anos.
Quantos mais me restam antes da chegada da menopausa, mesmo que eu a retarde por processos químicos? Com base nos dois dados concretos que temos até agora, não há evidências de que Richard seja capaz de produzir algum dia um menino. Poderíamos criar um laboratório que permitisse uma seleção de esperma em seu sêmen, mas isso exigiria um esforço monumental de nossa parte e meses de interação detalhada com os ramaianos. E ainda restariam as questões de preservação de esperma e de fazê-lo chegar aos ovários.
Examinei todas as técnicas comprovadas para o processo de alteração da seleção natural do sexo (a dieta do homem, o tipo e a freqüência das relações sexuais, planejamento de tempo em relação à ovulação etc.) e concluí que Richard e eu provavelmente teríamos uma boa possibilidade de termos um menino naturalmente, se tivéssemos muito cuidado. Mas no fundo de minha mente persistia o pensamento de que as probabilidades seriam muito mais favoráveis se Michael fosse o pai. Ele, afinal, tinha dois filhos homens (em três) como resultado de comportamento aleatório. Por mais que eu pudesse melhorar as probabilidades com Richard, as mesmas técnicas com Michael virtualmente garantiriam um filho.