Um indício desconcertante
Certa manhã eu estava colocando documentos em ordem no L’Autrec Lab. Quando a gritaria de uma acalorada discussão na sala de atendimento ao público tornou meu trabalho impossível de ser realizado. Fui ver do que se tratava e encontrei uma jovem completamente descontrolada na abertura do guichê de atendimento, reclamava veementemente do tratamento que havia recebido da atendente. Segundo ela, a atendente jogara o dinheiro do troco sobre o balcão quando ela lhe estendera a mão, em vez de entrega-lo delicadamente. O tom de voz da cliente e o grau de tensão que ela transmitia em todo seu comportamento eram indicativos seguros de que ela levaria muito tempo para acalmar-se. Então convidei-a suavemente para entrar e sentar-se em meu escritório. Ela sentou-se e começou a chorar, reclamando ainda dos maus tratos recebidos. Ao sentar-se, no entanto, o exame que ela viera buscar caiu de suas mãos e eu delicadamente peguei-o no chão. Fiquei com medo de entrega-lo de volta e ela achar meu gesto «muito brusco» ou qualquer coisa parecida. Resolvi então sentar na minha mesa e esperar e esperar que a crise melhorasse. Fiquei olhando pateticamente para a folha de papel, tentando me distrair mentalmente para passar o tempo. Fui percorrendo com os olhos a relação de dados, tentando imaginar de quem seria o material colhido para aquele exame. Era um exame de sangue e trazia os seguintes resultados:
EXAMES HEMATOLÓGICOS NO SANGUE
Nome: Nicholas Jacquier
Indicação do Dr:. Paul René
Hemácias 3.300.000 p/mmc
Hemoglobina 13,00 g/dl
Hematócrito 36 %
Volume corpuscular médio 91 uc.
Hemoglobina corp. média 31 Yy
Hemossedimentação 34 %
Westergren w Mm
Reticulócitos w Mm
Plaquetas (cont. d reta) w p/mmc
Global de leucócitos 23.976 p/mmc
DIFERENCIAL DE LEUCÓCITOS % p/mmc
neutrófilos Promielócitos 32 2048
Mielócitos 13 832
Metamielócitos 21 1344
Bastonetes 00 00
Segmentados 12 1920
Eosinófilos 01 64
Basófilos 00 00
Linfócitos 19 4288
Monócitos 02 128
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o elevado número global de leucócitos, 23.976. Mas a outra coisa, com relação a esse mesmo número é que ele nunca precisa ser dado com tanta precisão, já que é um número estimativo. Qualquer laboratorista teria colocado o número redondo, ou seja, 24.000. Tomei o fato como uma excentricidade do funcionário e um pouco mais abaixo na folha somei os números dos três primeiros neurófilos (promielócitos, mielócitos e metamielócitos): 32 + 13 + 21 = 66. Fiquei um pouco curioso, pois estes três neurófilos só aparecem no organismo em casos de problemas sérios no sangue, como anemia e principalmente leucemia. Não é só isso. Nos casos de leucemia eles aparecem e há evidentemente um aumento no número global de leucócitos (o mesmo que me chamou primeiro a atenção) e uma baixa do número de hematócritos (3.ª linha de dados do exame). Tomei da caneta em cima da mesa e por curiosidade dividi o número global de leucócitos pelo número de hematócritos. 23.976 ÷ 36 = 666. A brincadeira me deu um desagradável arrepio na espinha, e eu não soube identificar claramente o porquê. Afinal, são apenas números de um exame de sangue que constata inegavelmente um estado de leucemia, como qualquer outro.
E afinal, esses malditos exames na verdade não contribuem em nada para a melhoria efetiva das pessoas. Mas continuei com uma sensação de que alguma coisa me incomodava. 666, o número da besta.[2] 666, leucemia profunda. 66 neutrófilos. 66 leucócitos jovens.
Quando olhei novamente para a jovem, ela havia recuperado o controle, parado de chorar e me olhava firme e fixamente. Só então pude sentir aquele olhar e novamente uma sensação de desconforto tomou conta de mim. Suas olheiras escuras e profundas formavam uma moldura perfeita para o vácuo das pupilas negras.
A tensão do momento permitiu-me um susto enorme quando ela levantou-se de um salto, tomou a folha de minha mãos e desapareceu correndo pela porta.
Boa noite, Doutor Paul René!!!
Hoje as pessoas são tratadas como peças, catalogadas, fichadas, numeradas e arquivadas. Isso tem um sentido prático, mas pode ser altamente prejudicial quando reduz o ser humano a um simples número numa máquina industrial qualquer. No entanto, no nosso fichário de médicos cadastrados e em convênio com o laboratório foi fácil encontrar o endereço do Dr. Paul René. E no outro fichário, a cópia do exame hematológico de Nicholas Jacquier. Um pouco de fantasia, mistério e aventura fazem um bem enorme e resolvi procurar pelo nobre colega e saber um pouco mais sobre seu paciente. E talvez um dia, quem sabe, rirmos um pouco da forma como nos conhecemos. Tive que esperar alguns dias, antes de aparecer oportunamente e vê-lo.
Era uma noite agradável de primavera e resolvi ir caminhando até o endereço dele. Um casarão sóbrio, de pintura amarelo clara um tanto envelhecida, o que contribuía para o ar de nobreza da concepção arquitetônica. No entanto, a grande quantidade de luzes acesas denunciava uma movimentação anormal no interior da residência. Bati na porta e o som inconfundível do carvalho fez vibrar os ossos de minha mão e a vibração se espalhou pelo braço. Em pouco tempo a porta abriu-se e fui convidado a entrar por um criado preciso e eficiente, que encaminhou-me à sala de visitas. Ela estava repleta de pessoas, com um traço inconfundível e característico, que até hoje não consegui precisar bem qual seja. Mas foi fácil saber que estava num ambiente de médicos. Alguns conversavam em voz baixa, o ambiente tenso e uma atmosfera de expectativa pairava em tudo. Poucos me cumprimentaram e me senti pouco à vontade, sem entender o que estava ocorrendo. Então chamei o criado que me recebera e disse que precisava falar com o Dr. Paul René.
Ele me respondeu que o Dr. Paul René havia piorado e não podia receber visitas. Num relâmpago minha intuição me disse que era absolutamente necessário fazer contato com o médico doente e respondi num impulso «Mas eu vim trazer os resultados dos exames dele». O criado acrescentou que ele estava se consultando com seu colega de confiança, Antoine Didier. Então pude acrescentar inapelavelmente «Claro, os exames foram pedidos pelo Dr. Didier». Em seguida deslizamos pelos corredores em direção aos aposentos do enfermo. O criado não entrou. O ambiente bem cuidado tinha um ar de tranqüilidade. O paciente ouvia atentamente as últimas recomendações do colega, que tudo indicava estar se retirando. Do outro lado da cama, uma senhora bastante idosa mas com uma postura muito firme e presente, assistia a tudo com uma atitude solene. Já Paul René parecia se esforçar por continuar mantendo os olhos abertos. Tudo nele indicava um estado grave e risco de vida. No entanto, apesar dos seus aparentes 70 anos, era visível uma constituição física invejável. O que talvez estivesse definindo sua resistência e condições atuais. Após a saída do assistente ele recostou-se e olhou-me com um ar interrogativo. Aproximei-me vagarosamente e sorrindo, sentei-me na cadeira recém desocupada. A Senhora do outro lado inclinou-se suavemente para a frente, redobrando a atenção. Senti que eu teria que justificar muito bem minha presença, pois todos que estavam na sala de visitas haviam respeitado a necessidade de repouso do paciente. Optei pela franqueza e narrei delicadamente o motivo que me tinha levado até ali. Quando terminei, ele fez um sinal para Senhora, pedindo que se assentasse novamente. Eu nem havia notado que ela se levantara, muito tensa. E com uma energia surpreendente para seu estado, ele me falou calmamente: «Nobre colega. Tenho experiência de vida suficiente para conhecer muito das pessoas em pouco tempo de convivência. E sinto que posso confiar no Senhor. A gravidade do meu estado não me permite aguardar por mais tempo a tomada de decisões que se fazem urgentíssimas. Vejo a sua vinda aqui como profundamente providencial. Tenho motivos para acreditar que suas conclusões matemáticas acerca das relações entre os dados do exame de sangue referido não são frutos do acaso. Pelo contrário, elas podem estar absolutamente corretas. Vou relatar os dados mais importantes e o restante o Senhor tomará conhecimento através de documentos que confiarei à sua guarda. Até hoje não o tinha feito pois não consegui encontrar uma pessoa em condições de compreender os fatos em toda a sua pleni8tude e tentar resolvê-los de uma forma satisfatória.» Enquanto falava, uma nova energia parecia animalo.
2
N. do C.: 666, é indicado como o número da Bêsta no Apocalipse: «Quem for sábio calcule o número da Besta, pois é um número de homem: seu número é 666.» (Apocalipse 13:18)