Eu cheguei lá cerca de dois meses depois desses fatos cujos indícios posteriores me confirmaram serem absolutamente reais. Depois do nosso primeiro encontro, Mata Ulm desapareceu para sempre. Fiz todos os esforços possíveis e imagináveis para localiza-la, tudo em vão. Tentei verificar se realmente existiam subterrâneos medievais na Catedral de Munique, mas sempre encontrei a barreira dos sorrisos compassíveis dos religiosos responsáveis por aquele monumento cristão. Minha insistência, no entanto, acabou me levando a adquirir uma permissão para consultar arquivos da Biblioteca Nacional de Munique, particularmente sobre a vida e obra de um contemporâneo do nosso famigerado padre dominicano: o abade Trithème, nascido em 2 de fevereiro de 1462, em Tritthenheim. Fundou a Confraria Celta e em 2 de fevereiro de 1482 entrou para a ordem dos Beneditinos, no mosteiro de Saint-Martin-de-Spanheim. Conseguiu reunir nesse mosteiro a biblioteca mais rica da Alemanha, composta essencialmente de manuscritos. Deixou como resultado de suas pesquisas uma obra em 8 volumes, de incrível poder, chamada de STEGANOGRAPHIE. No entanto, o manuscrito completo foi destruído pelo fogo, sob as ordens do conde palatino Philippe II. Nenhum exemplar completo ficou para a posteridade. Mais de cem anos depois, um dos jesuítas mais ferozes da Inquisição, Del Rio ainda perseguia partes do que restou do Steganographie. Mas em 1610, em Frankfurt, Mathias Becker publicou novamente esses fragmentos. E em seus comentários (não publicados) fez pesadas críticas ao emprego indevido e distorcido do legado de Trithème, que poderia incluir o Hipnotismo, Levitação, comunicação à distância e possivelmente a imortalidade. Cita então como um dos mais perigosos utilizadores desses poderes o demonólogo e inquisidor francês, frade dominicano e um dos primeiros autores sobre demonologia NICHOLAS JACQUIER, nascido em 1402. Não existe nenhuma referência sobre sua morte. Tudo indica que esteja vivo até hoje».
O demônio está aqui
Eu estava tão absorto na narrativa do Dr. Paul René que levei algum tempo para relacionar o nome do frade dominicano que cuidadosamente ele reservara para o final, com o nome escrito na ficha padronizada de exames de sangue do L’Autrec Laboratoires. Então uma pergunta precipitada brotou em meus lábios: «Se é realmente a mesma pessoa como o senhor conseguiu localiza-lo?»
O Dr. Paul René descansou novamente durante alguns minutos e retomou a narrativa, não sem antes inspirar profundamente. «Pois bem. Durante o tempo de minhas pesquisas na Biblioteca Nacional de Munique eu fiquei hospedado na casa de seus pais e tentava por todas as maneiras ajuda-los a superar o desespero que o desaparecimento da filha lhes causava, sempre animando-os com novas esperanças. Até que um dia estava lendo alguns livros que tomara emprestados da biblioteca à noite em meu quarto, quando ouvi leves batidas na janela. Perguntei quem era e uma voz aflita respondeu «um amigo de Mata Ulm». Abri cuidadosamente e ele pediu para entrar. Sua aparência me inspirou confiança e ajudei-o a pular a janela. Ele sentou-se e depois de algum tempo começou a falar num tom preocupado e ansioso. «Meu nome é Wilhelm Lebenswald. Sou artista plástico e trabalho nos serviços de restauração dos afrescos da Catedral de Munique.
Fui amigo de Karl Eschenmayer, o marido de Mata Ulm. Ambos éramos colegas de profissão e chegamos a fazer muitos trabalhos juntos. E juntos nos apaixonamos por Mata. Com o tempo, no entanto, a relação entre eles começou a degenerar e aspectos bastante terríveis começaram a tornar sombria toda nossa convivência.
Karl, que era muito sensível, sempre se queixava das excentricidades e comportamentos imprevisíveis de Mata. Paralelamente evidenciava-se também um agravamento do estado de saúde dela. Os ataques epilépticos tornavam-se cada vez mais freqüentes e nessas ocasiões ela novamente forjava tentativas de suicídio nas quais sempre finalizava com uma gargalhada. Meu amigo, no entanto, era muito mais afetado pelo aspecto terrível que ela assumia nos estertores epilépticos, quando então se debatia e roncava como uma porca agonizante. Isso feria profundamente o sentimento estético dele. Até que ela veio a conhecer o misterioso padre Nicolas Jacquier e passou a tomar com ele aulas noturnas de francês na Catedral. Depois desse contato, as coisas pioraram bastante.» Nesse momento eu o interrompi e resumi o que eu mesmo já sabia dos fatos, enquanto ele ia confirmando com a cabeça ou se horrorizando com o que não sabia. Pedi então que me contasse mais sobre Nicholas Jacquier. E ele recomeçou: «Eu não cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Sabia quase tudo o que Mata poderia me contar pois ela era muito amiga minha e às vezes me tomava como confidente. Depois que Karl morreu e Mata Ulm desapareceu eu resolvi procurar pessoalmente o padre Nicholas. No entanto, devido aos seus hábitos extremamente singulares e furtivos, eu sabia que só poderia encontrá-lo em um dos confessionários, durante as confissões noturnas da Catedral. Esses confessionários são construídos de forma que o sacerdote pode entrar e sair deles por corredores ocultos, sem ser visto ou identificado. E no próprio diálogo confessional, o padre sempre escuta oculto nas sombras. Como eu trabalho na Catedral, tenho um certo acesso ao movimento interno dos que cuidam dela. Com cuidadosas observações pude concluir que o confessionário utilizado por Nicholas era exclusivo dele e eu sabia qual era, pois Mata Ulm havia me dito uma vez, ao narrar como eles se conheceram. Esperei então um dia em que estivessem pessoas se confessando e entrei na fila do referido confessionário, disposto a arriscar tudo para identificar o misterioso personagem. Ao ajoelhar no genuflexório, sua voz gutural perguntou por meu nome. Corajosa mas ingenuamente eu disse «Wilhelm Lebenswald». Imediatamente senti como se meus joelhos se colassem na madeira em que estavam apoiados e uma sonolência profunda passou a me turbar a consciência e a visão. Ouvi então a voz dele ironicamente martelar uma risada abafada, antes de dizer «Sua paixão Mata Ulm já subiu ao céu. Eu a purifiquei de todos os pecados, depois de acaricia-la profundamente com o Beijo da Santificação. Só resta dela uma caixinha com cinzas que guardo como recordação. Quanto a você; meu caro artista, já é um dos meus servos e passa desde agora a merecer todo o meu amor.» Neste exato momento ouvi o grito de uma mãe chamando pelo filho. O garoto, de pouco mais de um ano de idade, entrou correndo pela passagem do confessionário e trombou em minhas costas. Isso me livrou consideravelmente do transe hipnótico e tive a lucidez de levantar e sair correndo. Vim diretamente para cá. Caro Dr. Paul René, tenho que ser sucinto pois o tempo urge. Sou um homem condenado à morte e creio que o Senhor também! Existe uma rede enorme espalhada pelo mundo todo e que sustenta com todo tipo de cobertura essas e outras atividades terríveis e criminosas. A informação mais importante que posso lhe fornecer é que o padre Nicholas Jacquier é francês natural da região de Toulouse, onde periodicamente tem que ir para realizar rituais onde mistura a cinza dos corpos das pessoas que assassina com a terra dos cemitérios da cidade. Essas operações demoram vários dias e consegui saber muito pouco delas. No entanto, curiosamente o Senhor reside em Toulouse e bem poderia tentar neutralizar de uma vez por todas esse monstro.» Então eu lhe disse que na manhã seguinte me retiraria de volta para cá, por motivos de segurança. Esclareci-lhe ainda que o «Beijo da Santificação» citado no confessionário pelo padre Nicholas era uma criação de Heinrick Kramer, um dos elaboradores do Malleus Maleficarum, por volta de 1484 e do papa Inocêncio VIII. Kramer se baseara em antiquíssimos rituais egípcios e o Beijo da Santificação consiste em arrancar todos os dentes da pessoa a ser canonizada (Esses dentes posteriormente farão parte de um colar-amuleto bastante utilizado um outros rituais). Em seguida o sacerdote oficiante suga diretamente diretamente o sangue que escorre da boca esfacelada, até se fartar. Então adota uma gaiola que envolve a cabeça da vítima como um capacete, contendo uma ratazana extremamente faminta, que completará o banquete ritualístico. Em seguida, o corpo ainda com vida deverá ser cremado até às cinzas. Que Deus receba Mata Ulm!