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— Eu sabia que você ia dizer isso — observou.

Homem que é homem deve andar em ruas perigosas, pensou ele. E, em algumas delas, correr.

Naquela noite nublada de primavera, o breu era tão grande nas Sombras que estava escuro demais para percebermos o avanço de Rincewind pelas ruas soturnas, de modo que o trecho descritivo subirá para além dos telhados decorados e do mar de chaminés e se deterá nas poucas estrelas tremeluzentes que conseguiam se infiltrar nas nuvens revoltas. Tentaremos ignorar os ruídos que vêm de baixo — os passos, as corridas, os gemidos, o som cartilaginoso, os gritos abafados. Pode ser que algum animal selvagem esteja andando pelas Sombras, após duas semanas de fome. Em algum lugar próximo ao centro das Sombras — o distrito nunca foi propriamente mapeado —, há um pequeno jardim. Ali, existem ao menos tochas nos muros, mas a luz emanada é a luz das próprias Sombras: medíocre, avermelhada e negra no meio.

Rincewind cambaleou para o jardim e apoiou-se no muro. A menina surgiu à luz rubra da tocha ao lado, cantarolando.

— Você está bem? — perguntou.

— Uuuurrrgh — respondeu Rincewind.

— O quê?

— Aqueles homens… — murmurou ele. — A maneira como você os chutou no… quando você os segurou pelo… quando socou aquele outro bem no… quem é você?

— Meu nome é Conina.

Impassível, Rincewind encarou-a durante algum tempo.

— Desculpe — ele disse. — Não me diz nada.

— Faz pouco tempo que cheguei aqui — justificou.

— É, imaginei que você não fosse dessas bandas — notou. — Eu teria ouvido falar.

— Estou hospedada na cidade. Vamos entrar? Rincewind viu o poste encardido, visível apenas à luz enfumaçada das tochas acesas. Indicava que a pensão por trás da portinha escura se chamava Cabeça de Troll.

Pode-se imaginar que a Tambor Remendado, cenário de brigas virtuosas apenas uma hora antes, seja uma taverna indecorosa. Na verdade, ela era uma taverna decorosamente indecorosa. Os fregueses possuíam traços de respeitabilidade — podiam tranquilamente matar uns aos outros, como iguais, mas não o faziam por vingança. Qualquer criança poderia entrar ali para tomar limonada e estar certa de que não levaria nada além de um tapa na orelha quando a mãe ouvisse seu vocabulário expandido. Em noites tranqüilas, e quando tinha certeza de que o bibliotecário não apareceria, o proprietário chegava até a botar tigelas de amendoim no balcão. Cabeça de Troll era uma fossa de cheiro diferente. Os fregueses, caso se aprumassem e melhorassem de imagem a ponto de não se deixarem reconhecer, talvez, quem sabe, poderiam aspirar a ser considerados a escória da humanidade. E, nas Sombras, escória é escória.

Por sinal, o negócio preso no poste não é uma placa. Quando decidiram chamar o lugar de Cabeça de Troll, não hesitaram.

Sentindo-se mal, e segurando a chapeleira junto ao peito, Rincewind entrou na pensão.

Silêncio. O silêncio envolveu-os quase tão espesso quanto a fumaça de uma dezena de substâncias que, seguramente, fariam derreter qualquer cérebro normal. Olhos desconfiados os fitavam através da fumaça.

Dois dados retiniram até parar sobre a mesa. O som ecoou alto, e os cubinhos provavelmente não mostravam o número da sorte de Rincewind.

Ao seguir taverna adentro a figura recatada e surpreendentemente pequena de Conina, ele estava ciente do olhar das dezenas de clientes. Então, mirou de esguelha o rosto de homens que o matariam sem pestanejar, e que acabariam descobrindo ser bem mais fácil do que imaginavam.

No local onde qualquer taverna de respeito teria o balcão, só havia uma fileira de garrafas negras atarracadas e dois grandes barris em cavaletes contra a parede.

O silêncio fechou-se como um torniquete. “Agora, a qualquer instante”, pensou Rincewind.

Um homem grandalhão, vestido apenas com um colete de pele de animal e uma tanga de couro, levantou-se e piscou maliciosamente para os colegas. Quando a boca se abriu, parecia um buraco com bainha.

— Procurando homem, mocinha? — perguntou. Ela o encarou.

— Por favor, me deixe em paz.

Risos espocaram no salão. A boca de Conina fechou-se como uma caixa de correio.

— Ah — disse o grandalhão. — Isso mesmo, adoro mulher geniosa…

A mão de Conina agitou-se. Foi um movimento rápido, detendo-se apenas aqui e aqui: depois de alguns segundos de incredulidade, o homem soltou um grunhido e se curvou, bem devagar.

Rincewind encolheu-se quando todos os outros homens da taverna se inclinaram para frente. O instinto era correr, mas ele sabia se tratar de um instinto que o faria instantaneamente morto. Aquilo ali eram as Sombras. O que quer que acontecesse em seguida, aconteceria ali. Era animador.

Uma mão tapou-lhe a boca. Duas outras arrancaram a caixa de seus braços.

Conina rodopiou, erguendo a saia para depositar o pé num alvo perfeito, ao lado da cintura de Rincewind. Alguém gemeu ao ouvido dele e caiu. Com uma pirueta, a menina pegou duas garrafas, quebrou os fundos na prateleira e pousou com as extremidades pontudas erguidas à frente. Punhais de Morpork, como eram chamados na gíria das ruas.

Diante deles, a clientela da Cabeça de Troll perdeu o interesse.

— Alguém pegou o chapéu — murmurou Rincewind, por entre os lábios secos. — Saíram pelos fundos.

Ela o fitou e correu até a porta. Os fregueses da Cabeça de Troll instantaneamente debandaram, como tubarões reconhecendo outro tubarão, e Rincewind disparou atrás dela antes que tirassem qualquer conclusão a seu respeito.

Os dois atravessaram outro beco. Rincewind tentava acompanhar os passos da menina. Quem a seguia costumava pisar em objetos pontudos, e ele não tinha certeza de que ela lembraria que ele estava do seu lado, qualquer que fosse esse lado.

Caía uma garoa fina. E no fim do beco havia um leve fulgor azul.

— Espere!

O horror na voz de Rincewind bastou para fazê-la afrouxar o passo.

— O que aconteceu?

— Por que ele parou?

— Vou perguntar — disse Conina, inabalável.

— Por que está coberto de neve?

Ela se deteve e deu meia-volta, com os braços estendidos ao longo do corpo e um dos pés batendo impacientemente no chão molhado de pedras.

— Rincewind, conheço você há uma hora e estou chocada que tenha conseguido sobreviver até agora!

— É, mas consegui, não consegui? Tenho talento para o negócio. Pergunte a qualquer um. Sou viciado.

— Viciado em quê?

— Em vida. Fiquei ligado a ela desde muito cedo e não quero abrir mão. Então, vá por mim, aquilo ali não está me parecendo nada bom!

Conina voltou a olhar para o homem envolto na resplandecente aura azul. Ele parecia olhar para algo nas mãos.

A neve caía em seus ombros feito caspa. Caspa em fase terminal. Rincewind tinha tino para essas coisas e desconfiava de que o homem havia passado do ponto em que xampu teria alguma serventia.

Os dois avançaram de lado, junto ao muro.

— Tem alguma coisa muito estranha nele — admitiu ela.

— Você está falando do fato de ele ter uma nevasca particular?

— Não parece incomodá-lo. Ele está sorrindo.

— Um sorriso congelado.

As mãos do homem haviam congelado abrindo a tampa da caixa, e o brilho das octarinas do chapéu reluzia nos dois olhos cobiçosos, já cobertos de gelo.

— Você o conhece? — perguntou Conina.

Rincewind encolheu os ombros.

— De vista — respondeu. — Chama-se Larry, o Raposa, ou Fezzy, o Arminho. Sei lá. Enfim, um roedor. Ele só rouba, é inofensivo.

— Parece estar morrendo de frio — penalizou-se Conina.

— Espero que tenha ido para um lugar mais quente. Não acha melhor fecharmos a caixa?

É perfeitamente seguro agora, garantiu a voz do chapéu, em meio ao fulgor. E que assim acabem todos os inimigos da magia.