Rincewind não parecia disposto a confiar nas palavras de um chapéu.
— Precisamos de alguma coisa para fechar a tampa — sussurrou.
— Uma faca, talvez. Você tem uma?
— Olhe para lá — pediu Conina.
Novamente, Rincewind ouviu o ruge-ruge e sentiu o sopro de perfume.
— Pode olhar agora.
Conina passou-lhe uma faca de 30 centímetros. Ele pegou-a com tato. Pequenas partículas de metal cintilavam na ponta.
— Obrigado — disse ele, virando-se. — Vai ficar sem nenhuma?
— Tenho outras.
— Aposto que sim.
Rincewind estendeu a faca com cuidado. Quando o objeto se aproximou da caixa de couro, a lâmina ficou branca e começou a desprender vapor. Ele soltou um gemido quando o frio lhe atingiu a mão — um frio abrasador e penetrante, que lhe subiu pelo braço e lhe atacou a mente. O mago forçou os dedos dormentes a se moverem e, com grande esforço, cutucou a beira da tampa com a ponta da lâmina.
O brilho sumiu. A neve virou garoa.
Com delicadeza, Conina empurrou-o de lado e tirou a caixa dos braços congelados.
— Você bem poderia fazer alguma coisa por esse homem. Parece errado simplesmente deixá-lo aí.
— Ele não vai se incomodar — argumentou Rincewind com convicção.
— É, mas você poderia ao menos encostá-lo no muro. Ou sei lá.
Rincewind pegou pelo braço o bandido congelado. O homem escorregou e caiu no chão. Onde se espatifou. Conina olhou para os cacos.
— Eca! — soltou.
Ouviu-se um tumulto mais adiante, vindo da porta dos fundos da Cabeça de Troll. Rincewind sentiu a faca escapar-lhe da mão e passar zunindo pelo seu ouvido, num trajeto horizontal que culminou no batente da porta, a vinte metros de distância. A cabeça que ali estava se encolheu às pressas.
— E melhor sairmos daqui — sugeriu Conina, correndo pelo beco. — Tem algum lugar onde a gente possa se esconder? Sua casa?
— Geralmente durmo na Universidade — desculpou-se Rincewind, trotando no encalço dela.
Você não deve voltar a Universidade, resmungou o chapéu, das profundezas da caixa. Distraído, Rincewind assentiu. A idéia certamente não o atraía.
— De qualquer forma, mulheres não podem entrar lá durante a noite — disse Rincewind.
— E de dia?
— Também não.
Conina suspirou.
— Que idiotice. Que problema os magos têm com as mulheres?
Rincewind franziu a testa.
— Não podemos ter nada com elas — explicou. — Esse é o problema.
A funesta névoa cinzenta enredava-se nas docas de Morpork, escorregando pelo cordame, enovelando os telhados molhados, escondendo-se nos becos. Muitas pessoas achavam que, à noite, o cais era ainda mais perigoso do que as Sombras. Dois assaltantes, um arruaceiro e um indivíduo que havia apenas cutucado o ombro de Conina, a fim de lhe perguntar as horas, já haviam descoberto isso.
— Posso fazer uma pergunta? — pediu Rincewind a Conina, dando um passo por cima do infeliz que se encontrava deitado às voltas com sua própria dor.
— Sim?
— Não quero ofender.
— Sim?
— Só que não pude deixar de notar…
— O que é?
— Você tem um jeito especial de lidar com estranhos. — Rincewind agachou, mas nada aconteceu.
— O que está fazendo aí embaixo? — perguntou Conina, irritada.
— Desculpe.
— Sei o que está pensando. Não posso evitar, puxei a meu pai.
— Mas quem era ele? Cohen, o Bárbaro?
Rincewind sorriu para mostrar que se tratava de brincadeira. Os lábios abriram-se num desespero crescente.
— Não precisa me gozar.
— O quê?
— Não é minha culpa.
Os lábios de Rincewind moveram-se sem produzir qualquer som.
— Desculpe — disse, afinal. — Entendi direito? Seu pai realmente é Cohen, o Bárbaro?
— É — respondeu a garota, lançando um olhar mal-humorado para Rincewind. — Todo mundo tem pai — acrescentou. — Imagino que até você.
Da esquina, ela espiou a rua.
— Está vazia. Vamos — chamou e, quando os dois já avançavam pelo chão de pedras, prosseguiu: — Imagino que seu pai tenha sido mago.
— Acho que não — objetou Rincewind. — Magia não pode passar de pai para filho.
Ele se deteve. Conhecia Cohen e havia até sido convidado para um de seus casamentos, quando o bárbaro esposou uma garota da idade de Conina. Podia-se dizer o seguinte de Cohen: ele enchia todas as horas de minutos.
— Muita gente adoraria puxar a Cohen. Quer dizer, ele era o melhor lutador, o melhor ladrão, o…
— Muitos homens gostariam — rebateu Conina.
Ela encostou-se num muro e fitou-o.
— Escute aqui — disse. — Existe uma palavra comprida… Uma bruxa velha me ensinou… mas não consigo lembrar… Vocês, magos, conhecem palavras compridas.
Rincewind pensou em palavras longas.
— Marmelada? — arriscou.
Ela sacudiu a cabeça.
— Significa que passa de pai para filho.
Rincewind franziu as sobrancelhas. Não era muito bom no quesito “pais”.
— Cleptomania? Reincidente? — sugeriu.
— Começa com H.
— Hedonismo? — propôs, em desespero.
— Heridiatário — lembrou Conina. — Essa bruxa me explicou. Minha mãe era dançarina do templo de algum deus ensandecido, e meu pai a salvou… Eles ficaram juntos durante algum tempo. Dizem que herdei a aparência dela.
— E também é maravilhosa — elogiou Rincewind, com incorrigível gentileza.
Ela corou.
— É… bem… mas dele eu herdei tendões com os quais se pode atracar um navio, reflexos de cobra, uma ânsia terrível de roubar e, sempre que conheço alguém, essa sensação medonha de que deveria atirar uma faca em seu olho, a trinta metros de distância. E eu consigo — acrescentou ela, com uma sombra de orgulho.
— Nossa.
— Isso costuma afastar os homens.
— Imagino que sim — concordou.
— Quer dizer, quando descobrem, fica difícil segurar o namorado.
— A não ser pela garganta.
— Não é o ideal para quem pretende construir uma relação.
— Não — reconheceu Rincewind. — Por outro lado, é ótimo, se você quer ser uma ladra famosa.
— Mas não é — disse Conina —, se eu quiser ser uma cabeleireira.
— Ah.
Eles olharam a névoa.
— Cabeleireira mesmo? — perguntou Rincewind.
Conina suspirou.
— Imagino que não haja muita demanda de cabeleireira bárbara — considerou o mago. — Ninguém quer corte de cabeça.
— Só que, toda vez que vejo um estojo de manicure, sinto uma vontade louca de usar e abusar do alicate de unha — confessou Conina.
Rincewind suspirou.
— Sei como é — adiantou. — Eu queria ser mago.
— Mas você é mago!
— Ali. Bem, claro, mas…
— Silêncio!
Rincewind foi jogado contra o muro, onde um pingo de névoa condensada começou, inexplicavelmente, a lhe descer pelo pescoço. Uma faca larga havia surgido na mão de Conina, e ela estava agachada como um animal selvagem, ou, ainda pior, como um ser humano selvagem.
— O que… — começou Rincewind.
— Quieto! — sussurrou a moça. — Tem alguma coisa vindo! Ela se ergueu num movimento suave, girou numa das pernas e atirou a faca. Ouviu-se um único baque surdo de madeira. Conina levantou-se e observou. Pela primeira vez, o sangue heróico que corria em suas veias — e minava qualquer possibilidade de levar uma vida atrás de um avental cor-de-rosa — pareceu perder o rumo.