— Acabei de matar uma arca — lamentou ela.
Da esquina, Rincewind foi espiar. A Bagagem estava parada no meio da rua gotejante, com a faca ainda a vibrar na tampa, e olhava a garota. Depois mudou ligeiramente de posição, as pernas movendo-se num intrincado passo de tango, e encarou Rincewind. A Bagagem não tinha fisionomia nenhuma, além da fechadura e de duas dobradiças, mas conseguia sustentar o olhar melhor que um bando de iguanas. Ela poderia até mesmo sustentar o olhar em direção a uma estátua com globos oculares de vidro. Quando se tratava de um olhar que manifestasse traição, a Bagagem deixava no chinelo qualquer cocker spaniel chutado. Trazia várias flechas e espadas fincadas na madeira.
— O que é isso? — sussurrou Conina.
— É só a Bagagem.
— É sua?
— Não exatamente. Mais ou menos.
— Perigosa?
A Bagagem mudou de posição para encará-la novamente.
— Existem duas escolas de pensamento a esse respeito — explicou Rincewind. — Tem as pessoas que dizem que ela é perigosa e as pessoas que dizem que ela é muito perigosa. O que você acha?
A Bagagem abriu um pouco a tampa.
Ela era feita da sábia madeira de pereira, planta de tal modo mágica que quase se extinguira no Disco: só crescia em um ou dois lugares. Era uma espécie de epilóbio, só que, em vez de locais bombardeados, nascia em áreas que haviam testemunhado vasto consumo de magia. A vara dos magos era tradicionalmente feita com ela; a Bagagem também.
Entre suas qualidades mágicas, havia uma bem simples e exata: ela seguiria o dono adotado a qualquer lugar. Não a qualquer lugar restrito a determinado quadro de dimensões, país, universo ou tempo de vida. A qualquer lugar. Era tão difícil de se livrar quanto dor de cabeça e consideravelmente mais desagradável.
A Bagagem também protegia o dono. Seria difícil descrever sua postura em relação ao resto do mundo, mas poderíamos começar com a expressão “malevolência nata” e continuar a partir daí.
Conina mirou a tampa. Parecia uma boca.
— Acho que eu votaria por “extremamente perigosa” — disse.
— Ela gosta de batatas fritas — observou Rincewind, e acrescentou: — Bem, isso ficou um pouco forte. Ela come batatas fritas.
— E gente?
— Ah, e gente. Acho que umas quinze pessoas, até agora.
— Boas ou más?
— Mortas. Também lava nossas roupas. A gente bota as peças ali, e saem lavadas e passadas.
— Cobertas de sangue?
— Sabe, isso é que é engraçado — notou Rincewind.
— Engraçado? — repetiu Conina, sem despregar os olhos da Bagagem.
— E, porque o interior nem sempre está igual, parece meio multidimensional e…
— O que ela acha das mulheres?
— Ah, não é seletiva. Ano passado, comeu um livro de feitiços. Ficou amuada durante três dias e então cuspiu.
— É horrível — avaliou Conina, afastando-se.
— Ah, é — concordou o mago. — Completamente.
— Quer dizer, o jeito como ela encara…
— É ótima nisso, não é?
Devemos partir para Klatch, irrompeu a voz na chapeleira. Esses navios servem. Apropriem-se de um.
Rincewind olhou as formas sombrias e anuviadas que pairavam sob o mar de cordames. Aqui e ali, as luzes de ancoragem criavam um pequeno clarão difuso no breu.
— Difícil desobedecer, não é? — perguntou Conina.
— Estou tentando — confirmou Rincewind.
O suor lhe brotou da testa.
Embarquem agora, ordenou o chapéu.
Os pés de Rincewind começaram a avançar por conta própria.
— Por que está fazendo isso comigo? — resmungou.
Porque não tenho escolha. Pode acreditar, se eu pudesse, teria encontrado um mago de oitavo nível. Eu não posso ser usado!
— Por que não? Você é o chapéu de arqui-reitor!
E, através de mim, falam todos os arqui-reitores que já viveram. Sou a Universidade. Sou a doutrina. Sou o símbolo da magia controlada pelo homem… e não serei usado por nenhum fonticeiro! Não pode mais haver fonticeiros! O mundo está gasto demais para a fonticeria!
Conina tossiu.
— Entendeu alguma coisa? — perguntou, com cautela.
— Entendi em parte, mas não acreditei — respondeu Rincewind.
Seus pés continuavam plantados no chão de pedras.
Ousaram me chamar de chapéu-de-ferro, a ser usado por um testa-de-ferro! A voz exalava sarcasmo. Magos gordos, que traem tudo que a Universidade representa… e ainda me chamam de chapéu-de-ferro! Rincewind, eu prometo. E à senhorita. Sirvam-me bem, e concederei seu maior desejo.
— Como pode conceder meu maior desejo se o mundo vai acabar?
0 chapéu pareceu pensar no assunto.
Bem, você tem um maior desejo que só leve dois minutos?
— Olhe aqui, como pode fazer magia? Você não passa de um…
A voz de Rincewind se perdeu.
Eu SOU a magia. Magia de verdade. Além disso, ninguém é usado pelos melhores magos do mundo, durante 2 mil anos, sem aprender alguma coisa. Agora, devemos partir. Mas com dignidade, é claro.
Rincewind encarou Conina, que encolheu os ombros novamente.
— Não pergunte a mim — disse ela. — Está cheirando a aventura. Estou fadada a isso. É genético.[8]
— Mas eu sou péssimo nisso! Pode acreditar, passei por dezenas de aventuras! — explicou.
Ah, experiência, exclamou o chapéu.
— Não exatamente. Sou um tremendo covarde. Sempre fujo — argumentou Rincewind. — O perigo só me vê de costas!
Não quero que você se meta em perigo.
— Ótimo!
Quero que você fique LONGE do perigo. Rincewind fraquejou:
— Por que eu?
Pela Universidade. Pela honra dos magos. Por amor ao mundo. Pela vontade do seu coração. E porque vou deixá-lo congelado, se não for.
O mago suspirou de alívio. Ele não era nada bom em aceitar subornos, adulações ou apelos à boa índole. Mas ameaças eram familiares. Ele sabia lidar com ameaças.
No Dia dos Pequenos Deuses, o sol raiou como um ovo mal escaldado. A névoa havia se fechado sobre Ankh-Morpork em faixas de ouro e prata: úmida, quente e silenciosa. Das planícies, vinha o murmúrio distante de trovões primaveris. Fazia mais calor do que deveria.
Os magos normalmente dormem tarde. Naquela manhã, porém, muitos haviam se levantado cedo e encontravam-se vagando ao acaso pelos corredores. Era possível sentir a mudança no ar.
A Universidade estava se enchendo de magia.
Em geral, é claro, ela já era cheia de magia mesmo, mas se tratava de magia velha e tranqüila, tão estimulante e perigosa quanto um par de chinelos. Agora, atravessando esse tecido antigo havia uma nova magia, aguçada e vibrante, clara e fria como fogo de cometa. Ela transpunha as pedras e estalava nas arestas feito eletricidade estática no tapete de nylon da Criação. Zumbia e chiava. Enrolava a barba dos magos e brotava, em fiapos de fumaça octarina, de dedos que havia três décadas não tinham feito nada mais místico do que uma pequena ilusão passageira. Como descrever o resultado com gosto e delicadeza? Para a maioria dos magos, era como ser o homem de idade avançada que, subitamente confrontado com uma jovem bonita, descobre, entre o espanto, o deleite e a perplexidade, que a carne, subitamente, está tão bem-disposta quanto o espírito.
E nos corredores da Universidade a palavra se fazia ouvir, sussurrada: Fonticeria!
Sorrateiramente, alguns magos tentaram feitiços que havia anos não conseguiam realizar e, espantados, observaram sua execução perfeita. A princípio, com timidez; depois, com confiança; e, então, com gritos e clamores, lançavam bolas de fogo uns nos outros, tiravam pombos dos chapéus ou faziam purpurinas multicoloridas caírem do céu.
8
No Disco, o estudo da genética havia fracassado em estágio prematuro, quando os magos tentaram o cruzamento experimental entre ervilhas e moscas. Infelizmente, eles não entenderam os princípios fundamentais da ciência, e a prole resultante — uma espécie de ervilha que zumbia — teve vida curta e triste, até ser devorada por uma aranha.