Fonticeria! Um ou dois magos, homens nobres que até então não haviam praticado nada mais censurável do que comer ostras vivas, ficaram invisíveis e puseram-se a perseguir empregadas corredor afora.
Fonticeria! Algumas almas corajosas haviam experimentado antigos feitiços de vôo e agora pairavam vacilantes entre os caibros. Fonticeria!
Apenas o bibliotecário não tomou o café da manhã. Observou as caretas durante algum tempo, franzindo os lábios preensores, e, então, retirou-se em direção à biblioteca. Se alguém estivesse preocupado em dispensar alguma atenção, teria ouvido o ruído de porta se trancando.
Fazia silêncio na biblioteca. Os livros já não estavam mais agitados. Haviam passado do medo às águas calmas do terror absoluto e encontravam-se dispostos nas prateleiras como coelhos hipnotizados.
Um braço comprido e peludo se estendeu e pegou o Diccionário Completto de Maghia com Preceittos para os Sábios, de Casplock. Antes que o livro conseguisse se afastar, tranqüilizou-o com a mão de dedos longos e abriu-o na letra F. O bibliotecário acalmou a página estremecida e correu a unha dura pelos verbetes até chegar a:
Fonticeiro. S.m. (mittico). Protomagho, canal por onde a maghia nova pode entrar no mundo, magho que não é limitado pelas cappacidades físicas do corpo, pelo Desttino ou pela Mortte. Está escrito que havia fonticeiros nos primórdios do mundho, mas não pode haver hoje. E que assim seja, porque a fonticeria não se desttina aos homens. Portanto, a voltta da fonticeria seria o Fim do Mundo…Se o Criaddor quisesse que o homem fosse igual aos deuses, teria lhe dado asas. CONSULTE TAMBÉM: Apocralipse, Lenda dos Gighantes do Gelo e Hora do Chá dos Deuses.
O bibliotecário leu os verbetes sugeridos, voltou ao primeiro e fitou-o, com olhos sombrios, durante algum tempo. Devolveu cuidadosamente o livro à estante, arrastou-se para debaixo da mesa e cobriu a cabeça com o cobertor.
Mas, na tribuna dos trovadores do salão principal, Carding e Lingote observavam a cena com sentimentos totalmente diversos. Parados lado a lado, os dois pareciam formar o número 10.
— O que está acontecendo? — perguntou Lingote. Ele não havia dormido à noite e não vinha conseguindo pensar direito.
— A magia está fluindo para dentro da Universidade — explicou Carding. — Fonticeiro é isso. Um canal para a magia. Magia de verdade, meu filho. Não o troço antigo e enfraquecido de que vínhamos nos valendo nos últimos séculos. Esse é o alvorecer de uma… de uma…
— Nova, hum, aurora?
— Exatamente. Um tempo de milagres, um… um…
— Ânus mirabilis?
Carding franziu a testa.
— É — disse, afinal. — Algo assim, imagino. Você é bom com as palavras, sabia?
— Obrigado, irmão.
O mago sênior pareceu ignorar o grau de intimidade. Deu meia-volta e apoiou-se na cerca talhada, assistindo às exibições mágicas. As mãos automaticamente dirigiram-se ao bolso, em busca do saco de tabaco, e depois pararam. Ele sorriu e estalou os dedos. Um cigarro aceso surgiu em sua boca.
— Há anos não conseguia fazer isso — comentou. — Grandes mudanças, meu filho. Eles ainda não se deram conta, mas é o fim das ordens e dos níveis. Isso tudo não passava de um… sistema de racionamento. Não há mais necessidade. Onde está o garoto?
— Na cama… — começou Lingote.
— Estou aqui — disse Coin.
Ele estava parado sob o arco que levava aos aposentos do mago sênior, segurando a vara de octirona que tinha o dobro de seu tamanho. Pequenos veios de fogo amarelo cintilavam em sua superfície negra e fosca, escura a ponto de parecer uma fenda no mundo.
Lingote sentiu os olhos dourados atravessarem-no, como se seus pensamentos mais íntimos viessem se desenrolando no fundo do cérebro.
— Ah — o soltou, numa voz que acreditava alegre e afetuosa, mas que, de fato, parecia o estertor da morte. Depois de um começo desses, sua contribuição só poderia piorar, e foi o que aconteceu: — Estou vendo que você, hum, levantou — disse.
— Meu filho — animou-se Carding.
Coin dirigiu-lhe um olhar frio e demorado.
— Vi você ontem à noite — notou o menino. — É poderoso?
— Só um pouco — respondeu Carding, lembrando rapidamente a tendência que o menino tinha de tratar magia como queda-de-braço. — Mas não tão poderoso quanto você.
— Preciso ser arqui-reitor, como é o meu destino.
— Ah, claro — confirmou Carding. — Sem dúvida. Posso dar uma olhada na vara? Que desenho interessante…
Ele estendeu a mão rechonchuda.
Era uma tremenda falta de educação. Nenhum mago jamais pensaria em tocar o bastão de outro mago sem permissão manifesta. Mas tem gente que não acredita que criança seja completamente humana e acha que bons modos não se aplicam a ela.
Os dedos de Carding fecharam-se na vara negra.
Houve um barulho, que Lingote mais sentiu do que ouviu. Carding saiu quicando pela galeria e bateu na parede oposta, com um ruído de saco de banha de porco caindo no chão.
— Não faça isso — pediu Coin.
O menino deu meia-volta, encarou Lingote, que estava pálido, e acrescentou:
— Vá ajudá-lo. Ele não deve ter se machucado muito.
O tesoureiro cruzou a galeria e inclinou-se para Carding, que respirava com dificuldade e exibia uma coloração estranha. Bateu na mão inerte até que o mago sênior abrisse um dos olhos.
— Viu o que aconteceu? — cochichou.
— Não tenho certeza. Hum. O que aconteceu? — sussurrou Lingote.
— Ela me mordeu.
— Na próxima vez que tocar a vara — falou Coin, distraído —, você morre. Entendido?
Carding levantou a cabeça devagar, para impedir que algum pedaço caísse.
— Entendido — respondeu.
— E, agora, eu gostaria de conhecer a Universidade — anunciou o garoto. — Já ouvi falar muito a respeito…
Lingote ajudou Carding a se levantar e escorou o colega ao avançarem, obedientemente, atrás do menino.
— Não toque na vara — advertiu Carding.
— Vou me lembrar, hum, disso — garantiu Lingote. — Qual é a sensação?
— Já foi mordido por víbora?
— Não.
— Então vai saber exatamente a sensação.
— Hummm?
— Não parecia nem um pouco mordida de cobra.
Eles seguiram o vulto determinado de Coin, que desceu os degraus da escada e atravessou o destruído vão de porta do salão principal.
Lingote adiantou-se, ansioso por causar boa impressão.
— Este é o salão principal — entusiasmou-se. Coin voltou-lhe o olhar dourado, e o mago sentiu a boca secar. — Tem esse nome porque é um salão, entende? E é o principal.
Ele engoliu em seco.
— E um salão importante — continuou, esforçando — se para impedir que o resto de coerência fosse consumido pelo projetor daquele olhar.
— Um salão importante, que é o motivo de ser chamado…
— Quem é essa gente? — cortou Coin.
Ele apontou com a vara. Os magos ali reunidos, que haviam se virado para vê-lo entrar, recuaram, como se o bastão fosse um lança-chamas.
Lingote acompanhou o olhar do fonticeiro. Coin apontava para os retratos e as estátuas dos arqui-reitores, que decoravam as paredes. De barba e chapéu pontudo, segurando pergaminhos ornamentais ou misteriosas peças simbólicas de equipamentos astrológicos, eles olhavam para baixo com soberba extrema ou, possivelmente, constipação crônica.