— Dessas paredes — informou Carding —, duzentos magos supremos nos observam.
— Não gostei deles — considerou Coin, e a vara desprendeu chamas octarinas.
Os arqui-reitores sumiram.
— E as janelas são pequenas demais…
— O teto é alto demais…
— Tudo é velho demais…
Os magos se jogavam no chão à medida que a vara chispava. Lingote cobriu os olhos com o chapéu e rolou para debaixo de uma mesa quando o próprio tecido da Universidade começou a brotar ao redor. A madeira estalava, as pedras gemiam.
Alguém lhe cutucou a cabeça. Ele gritou.
— Pare com isso! — berrou Carding, acima do vozerio. — E ponha o chapéu! Mostre um pouco de dignidade!
— Então por que você está debaixo da mesa? — perguntou Lingote, irritado.
— Devemos aproveitar a oportunidade!
— Pegamos a vara?
— Siga-me!
Lingote emergiu num mundo novo e claro, terrivelmente claro.
Não mais as paredes toscas de pedra. Não mais os escuros caibros habitados por corujas. Não mais o chão de ladrilhos, com seu desenho em preto e branco. Não mais, tampouco, as pequenas janelas altas, com a suave pátina de gordura antiga. Pela primeira vez, a luz do sol entrava no salão.
Boquiabertos, os magos se entreolharam, e o que viram não era o que sempre achavam ter visto. Os implacáveis raios de sol transformavam os pomposos ornamentos de ouro num empoeirado brilho artificial, mostravam que os tecidos luxuriantes eram de veludo puído e sujo, convertiam as belas barbas esvoaçantes em maçarocas manchadas de nicotina, revelavam que os esplêndidos diamantes eram, antes, pedras inferiores. A luz fresca avançava, despindo as sombras reconfortantes.
E — Lingote tinha de admitir — o que sobrou não inspirava confiança. Ele de repente se deu conta de que, por baixo do manto — do manto esfarrapado e encardido, o que notou com um acesso adicional de culpa, do manto com furo de ratos —, ainda usava chinelos.
O salão passara a ser quase todo de vidro. O que não era vidro era mármore. Tudo parecia tão esplêndido que Lingote não se sentia à altura.
Virou-se para Carding e viu que o colega fitava Coin com brilho nos olhos.
A maioria dos outros magos trazia a mesma fisionomia. Se um mago não se deixasse atrair por poder, não seria mago, e aquilo era poder de verdade. A vara os hipnotizara como a uma naja.
Carding estendeu o braço para tocar o ombro do menino, mas pensou duas vezes.
— Magnífico — exclamou.
Virou-se para os outros magos e ergueu as mãos.
— Irmãos — anunciou —, temos entre nós um mago de grande poder!
Lingote puxou-lhe o manto.
— Ele quase matou você — sussurrou.
Carding o ignorou.
— E eu o recomendo… — continuou ele, engolindo em seco. — Eu o recomendo para arqui-reitor.
Houve um instante de silêncio, depois uma salva de palmas e gritos de discordância. Estouraram diversas brigas no fundo do salão. Os magos da frente não se encontravam tão preparados para discutir. Enxergavam o sorriso de Coin. Era frio e radiante, como o sorriso da lua.
Houve tumulto, e um mago mais velho abriu caminho até a frente da multidão.
Lingote reconheceu Ovin Hakardly, mago de sétimo nível e professor da doutrina. Ele estava vermelho de raiva, a não ser onde se mostrava branco de ódio. Quando falou, as palavras cortaram o ar como facas, aparadas como planta de topiaria, quebradiças como biscoito.
— Você enlouqueceu? — perguntou. — Só magos de oitavo nível podem ser arqui-reitor! E ele deve ser eleito pelos outros magos sêniores, em sessão solene! (Devidamente conduzida pelos deuses, é claro.) É a doutrina! (Que idéia!).
Hakardly havia estudado a doutrina mágica durante muitos anos e, como a magia costuma ser um processo de mão dupla, ela havia deixado sua marca. O homem dava a impressão de ser frágil como palha e, de alguma forma inexplicável, a intensidade de seus esforços havia lhe dado a capacidade de pronunciar os sinais de pontuação.
Ele permaneceu ali, parado, tremendo de indignação e cada vez mais solitário. Na verdade, era o centro de um crescente círculo de chão margeado por magos subitamente prontos para jurar jamais terem deitado olhos nele.
Coin havia levantado a vara.
Hakardly ergueu um dedo acusador.
— Rapaz, você não me assusta — rebateu. — Pode ter talento, mas só talento mágico não basta. Existem outras qualidades necessárias ao grande mago. Capacidade administrativa, por exemplo, sabedoria e…
Coin baixou a vara.
— A doutrina se aplica a todos os magos, não é? — perguntou.
— Claro! Ela foi criada…
— Mas eu não sou mago, lorde Hakardly.
O mago hesitou.
— Ah — soltou, e hesitou novamente. — Bom argumento — considerou, afinal.
— Mas sei da necessidade de sabedoria, precaução e bons conselhos, e ficaria honrado se o senhor me oferecesse esses bens tão estimados. Por exemplo… por que os magos não governam o mundo?
— O quê?
— É uma pergunta simples. Existem nessa sala… — os lábios os lábios de Coin mexeram-se por uma fração de segundo — … 472 magos, versados na mais requintada das artes. Ainda assim, tudo que governam são esses poucos hectares de má arquitetura. Por quê?
Os magos mais velhos trocaram olhares sugestivos.
— Pode parecer assim — respondeu Hakardly, por fim. — Mas, meu filho, temos domínios que fogem ao poder temporal. — Os olhos dele brilhavam. — A magia pode nos levar a lugares íntimos de mistério…
— Eu sei, eu sei — irritou-se Coin. — Mas existem muros bem sólidos delimitando a Universidade. Por quê?
Carding passou a língua nos lábios. Era extraordinário. O menino estava dizendo o que ele pensava.
— Vocês brigam pelo poder — prosseguiu Coin, candidamente —, mas, além desses muros, para o lixeiro ou para o comerciante médio, será que existe tanta diferença assim entre o mago de nível e um mero adivinho?
Hakardly fitou-o completamente perplexo.
— Meu filho, é óbvio até para o mais medíocre dos cidadãos — afirmou. — O próprio manto e os acessórios…
— Ah — disse Coin. — O manto e os acessórios. É claro.
Um silêncio pesado tomou conta da sala.
— Ao que me parece — argumentou Coin, afinal — os magos só governam outros magos. Quem governa o mundo lá fora?
— No que diz respeito à cidade, seria lorde Vetinari, o Patrício — respondeu Carding, com cautela.
— E é um governante justo?
Carding pensou na resposta. Dizia-se que a rede de espiões do Patrício era extraordinária.
— Eu diria — arriscou ele, com tato — que ele é injusto, mas escrupulosamente imparcial. É injusto com todos, sem temores ou concessões.
— E vocês estão satisfeitos com isso? — insistiu Coin.
Carding tentava não cruzar com os olhos de Hakardly.
— Não é questão de estar satisfeito — alegou. — Acho que não pensamos muito no assunto. A verdadeira vocação do mago…
— E verdade que os sábios sofrem por se deixarem governar assim?
Carding resmungou:
— Claro que não! Não seja ridículo! Apenas toleramos. É sabedoria, você vai aprender quando crescer, uma questão de aguardar o momento certo…
— Onde está o Patrício? Eu gostaria de vê-lo.
— Podemos arranjar isso — animou-se Carding. — O Patrício está sempre disposto a conceder entrevista aos magos e…
— Agora eu vou lhe conceder uma entrevista — cortou o garoto.
— Ele precisa aprender que os magos aguardam o momento certo há tempo demais. Afastem-se, por favor.
O menino apontou a vara.