— Parece preocupado — comentou Conina, que estava cortando seu cabelo.
Rincewind tentava encolher a cabeça o máximo que podia quando as lâminas se agitavam à volta.
— E porque estou.
— O que exatamente é o apocralipse?
Rincewind hesitou.
— Bem — disse, afinal. — É o fim do mundo. Mais ou menos.
— Mais ou menos? Mais ou menos o fim do mundo? Quer dizer que vamos ficar na dúvida? Vamos olhar para os lados e perguntar: “Com licença, você ouviu algo?”
— É porque os videntes não concordam entre si. Teve um monte de profecias meio vagas. Algumas louquíssimas. Então, deram o nome de apocralipse — ele parecia constrangido. — Uma espécie de apocalipse apócrifo. Um tipo de trocadilho, entendeu?
— Não é dos melhores.
— Não. Imagino que não.[10]
A tesoura de Conina não parava.
— O capitão pareceu bem feliz por nos ter a bordo — observou ela.
— É porque acham que é bom ter mago a bordo — explicou Rincewind. — Claro que não é.
— Muita gente acredita que seja — rebateu a moça.
— Ah, é bom para as outras pessoas, não para mim. Eu não sei nadar.
— Nem uma braçada?
Rincewind hesitou, mexendo com cuidado na estrela do próprio chapéu.
— Você faz idéia de qual é a profundidade do mar aqui? — perguntou.
— Umas doze braças, talvez.
— Então, devo conseguir nadar umas doze braças, o que quer que seja isso.
— Pare de tremer assim, quase cortei sua orelha — irritou-se Conina. Ela encarou um marinheiro de passagem e agitou a tesoura no ar. — Qual é o problema, nunca viu mulher cortando cabelo de homem?
Alguém no cordame fez um comentário que provocou ondas de risos obscenos no mastaréu do joanete. Ou, talvez, fosse o castelo de proa.
— Vou fingir que não ouvi — decidiu Conina, e deu um puxão violento no pente, desalojando várias criaturinhas indefesas.
— Ai!
— Você não pára quieto!
— E difícil ficar quieto sabendo quem está passando duas lâminas de metal na minha cabeça!
E assim transcorreu a manhã, com ondas de vento, estalos do cordame e um complexo corte de cabelo em camadas. Mais tarde, olhando-se num pedaço de espelho, Rincewind teve de admitir que havia sido uma grande melhora.
O capitão informara que o destino era a cidade de Al Khali, na costa central de Klatch.
— Como Ankh, só que com areia em vez de terra — definiu Rincewind, apoiando-se na amurada. — Mas um excelente mercado escravo.
— A escravidão é imoral — asseverou Conina.
— É? Nossa! — disse Rincewind.
— Quer que eu apare a barba? — perguntou Conina, esperançosa.
Ela parou, com a tesoura na mão, e olhou o mar:
— Existe algum tipo de marujo que use canoa com partes extras nas laterais, uma espécie de olho vermelho pintado na frente e uma vela pequena? — perguntou.
— Já ouvi falar de piratas escravocratas Klatchianos — disse Rincewind. — Mas esse barco aqui é grande. Acho que um desses não ousaria nos atacar.
— Um não — concordou Conina, ainda olhando a área difusa onde o mar e o céu se confundem. — Mas cinco, talvez.
Rincewind fitou a neblina distante e voltou os olhos para o homem de guarda, que sacudiu a cabeça.
— Qual é? — indagou, sorrindo com o humor de um ralo entupido. — Você não está vendo nada. Está?
— Dez homens em cada canoa — assentiu Conina.
— Olhe aqui, brincadeira é brincadeira…
— Com longas espadas recurvas.
— Bem, posso ver que…
— … os cabelos compridos e sujos, soprando ao vento…
— Com pontas duplas, imagino — ironizou Rincewind.
— Está tentando ser engraçado?
— Eu?
— E aqui estou eu, desarmada — lamentou Conina, investigando o convés. — Aposto que não tem nenhuma espada decente neste navio.
— Não se preocupe. Talvez só tenham vindo fazer uma escova rápida.
Enquanto Conina vasculhava a bolsa, Rincewind dirigiu-se à chapeleira e abriu a tampa com cuidado.
— Não tem nada lá, tem? — perguntou.
Como vou saber? Ponha-me.
— O quê? Na cabeça?
Deuses do céu.
— Mas eu não sou arqui-reitor! — alarmou-se Rincewind. — Quer dizer, ouvi falar de sangue-frio, mas…
Preciso usar seus olhos. Agora me ponha. Na cabeça.
— Hum.
Confie em mim.
Rincewind não conseguiu desobedecer. Com cuidado, tirou o próprio chapéu cinza e amarfanhado da cabeça, olhou a estrela capenga na ponta e puxou o chapéu de arqui-reitor para fora da caixa. Era mais pesado do que havia imaginado. As octarinas, em torno da copa, brilhavam de leve.
Ele o colocou, devagar, sobre o novo corte de cabelo, segurando firme a aba para o caso de sentir o primeiro calafrio.
Na verdade, sentiu-se apenas incrivelmente leve. E teve uma sensação de enorme sabedoria e poder — não presentes de fato, mas, mentalmente falando, na ponta de sua língua metafórica.
Estranhos fiapos de lembrança lhe corriam pela mente, e não eram lembranças de que ele recordasse possuir antes. Sondou, com precaução, como se toca dente quebrado com a língua, e eram… duzentos arqui-reitores, enfileirados no passado denso e glacial, um atrás do outro, observavam-no com impassíveis olhos acinzentados.
Por isso é tão frio, disse Rincewind a si mesmo, o calor penetra no mundo dos mortos. Ah, não…
Quando o chapéu falou, ele viu duzentas bocas se mexerem ao mesmo tempo.
Quem é você?
Rincewind, pensou Rincewind. E, nos recantos mais íntimos da mente, tentou pensar apenas para si mesmo… socorro. Sentiu os joelhos começarem a se curvar sob o peso dos séculos.
Qual é a sensação de estar morto? — pensou.
A morte é como o sono, responderam os magos mortos.
Mas qual é a sensação?, insistiu Rincewind.
Você vai ter uma ótima chance de descobrir quando aquelas canoas de guerra chegarem aqui.
Com um grito de horror, ele tirou o chapéu da cabeça. A vida real voltou, mas, como alguém estava batendo um gongo perto de seu ouvido, não chegava a ser uma melhora muito grande. Agora as canoas já se mostravam visíveis, cruzando o mar num silêncio lúgubre. Aqueles remadores vestidos de preto bem poderiam estar aos berros e brados. Não seria menos pior, mas seria mais apropriado. O silêncio acusava um desagradável sentido de determinação.
— Minha nossa, foi horrível — reclamou. — Mas isso aqui também é.
Os membros da tripulação corriam no convés, com alfanjes na mão. Conina cutucou o ombro de Rincewind:
— Vão tentar nos levar vivos — informou.
— Ah — murmurou o mago. — Que bom.
Lembrou-se, então, de outra coisa sobre os traficantes klatchianos de escravos, e a garganta secou.
— Vão… vão querer você — observou. — Ouvi dizer o que fazem…
— Será que quero saber? — perguntou Conina.
Para horror de Rincewind, ela não havia achado nenhuma arma.
— Vão botar você num harém!
Ela encolheu os ombros.
— Podia ser pior.
— Mas você fica pendurada num pau, de cabeça para baixo… — começou Rincewind.
As canoas já estavam perto o bastante para se poder ver a expressão determinada dos remadores.
— Isso não é harém. E pau-de-arara. Você não sabe o que é harém?
— Hum…
Ela explicou. Ele corou.
— De qualquer maneira, vão ter de me pegar primeiro — disse.
10
Em questão de trocadilho, o gosto dos magos era mais ou menos o mesmo que tinham para objetos brilhantes.