Algo mais rolava para fora da Universidade, além da dissonância de silêncio. As barracas mais próximas ao portão começaram a se arrastar pelo chão, deixando cair as mercadorias.
Os donos saltavam para longe quando as barracas acertavam a fileira de trás e prosseguiam, acumulando-se cada vez mais no canto, até que uma ampla avenida, limpa e vazia, se estendesse por toda a praça. Ardrothy Varalonga, Fornecedor de Tortas Cheias de Personalidade, espiou, por sobre os restos de sua barraca, a tempo de ver os magos surgirem.
Ele conhecia bem os magos, ou, até então, sempre julgara conhecê-los. Eram sujeitos obscuros, inofensivos à sua maneira, vestidos como sofás antigos, fregueses contumazes para qualquer uma de suas mercadorias que estivessem com preço mais baixo por causa do tempo, ou que mostrassem mais personalidade do que a dona-de-casa prudente estaria disposta a aceitar.
Mas aqueles magos eram novidade para Ardrothy. Entraram na Praça Sator como se fossem donos dela. Pequenas faíscas azuis cintilavam em torno dos pés. De algum modo, eles pareciam mais altos.
Ou talvez fosse apenas a maneira de andar. Sim, era isso…
Ardrothy tinha um pouco de magia em sua constituição genética e, ao ver os magos cruzarem a praça, pensou que o melhor a fazer seria guardar as facas e os aparelhos de picar carne na mochila, e sair da cidade dentro dos dez minutos seguintes.
O último mago do grupo havia ficado para trás e olhava a praça com desdém.
— Havia chafarizes aqui — disse ele. — Tratem de dar o fora!
Os mercadores se entreolharam. Os magos costumavam falar com arrogância, já era de se esperar. Mas havia um tom naquela voz que ninguém jamais havia ouvido. Era como se ela tivesse juntas.
Ardrothy olhou para o lado. Surgindo dos escombros da barraca de gelatina de mariscos e estrelas-do-mar, como um anjo, enquanto tirava moluscos da barba e exalava mau humor, vinha Miskin Koble, que diziam ser capaz de abrir ostras com a mão. Anos arrancando moluscos de rochas e pescando amêijoas na baía de Ankh haviam lhe conferido o tipo de desenvolvimento físico normalmente associado a placas tectônicas. Mais do que levantar, ele se desdobrou.
Avançou para o mago e apontou um dedo trêmulo às ruínas da barraca, de onde meia dúzia de lagostas ousadas tentava escapar. Os músculos dos cantos da boca vibravam como enguias nervosas.
— Foi você que fez isso? — perguntou.
— Não amole, idiota — disse o mago. Três palavras que, na opinião de Ardrothy, davam-lhe a expectativa de vida de um sino de vidro.
— Eu detesto magos — irritou-se Koble. — Detesto mesmo. Por isso, vou bater em você, está bem?
Contraiu o punho e começou a desferir o soco.
O mago ergueu uma sobrancelha. Chamas amarelas levantaram-se em torno do vendedor de crustáceos, ouviu-se um barulho de seda rasgando, e Koble desapareceu. Tudo que sobrou foram suas tristes botas no chão, soltando fumaça.
Ninguém sabe por que botas enfumaçadas sempre sobram, independentemente do tamanho da explosão. Deve ser mais uma daquelas coisas.
Aos olhos de Ardrothy, pareceu que o próprio mago tinha ficado tão chocado quanto a multidão, mas ele se recompôs magnanimamente e fez um floreio com a vara.
— Vocês deveriam tirar uma lição disso — sugeriu. — Ninguém levanta a mão para um mago, entenderam? Vão acontecer algumas mudanças por aqui. Sim, o que você quer?
A última pergunta se dirigia a Ardrothy, que tentava passar por ali despercebido. Ele rapidamente suspendeu o tabuleiro de tortas.
— Eu só estava pensando se Vossa Reverência não gostaria de comprar uma dessas tortas deliciosas — apressou-se em dizer. — São nutriti…
— Vendedor de tortas, preste atenção — cortou o mago.
Ele estendeu a mão, fez um gesto estranho com os dedos e criou uma torta, em pleno ar. Era roliça, dourada e lustrosa. Só de olhar para ela, Ardrothy sabia que estava recheada de ponta a ponta com carne de porco sem gordura, de primeira, sem nenhuma daquelas áreas espaçosas, de ar fresco, sob a casca, que representavam sua própria margem de lucro. Era o tipo de torta que os porquinhos querem ser quando crescer.
Ele sentiu o coração apertar. Sua ruína estava diante dos olhos, debaixo de uma leve camada crocante.
— Quer provar? — ofereceu o mago. — Tem muito mais, de onde veio essa.
— De onde quer que tenha vindo — disse Ardrothy.
Ele despregou os olhos da torta reluzente, fitou o rosto do mago e, no fulgor ensandecido daqueles olhos, viu o mundo virando de cabeça para baixo. Afastou-se, um homem arruinado, e partiu para o mais próximo portão da cidade.
Como se já não fosse terrível o bastante que os magos estivessem matando as pessoas, pensou ele com azedume, também estavam tirando seus meios de subsistência.
Um balde de água fria atingiu o rosto de Rincewind, arrancando-o do sonho pavoroso em que uma centena de mulheres mascaradas tentava lhe aparar o cabelo com espadas de folha larga. Depois de ter um pesadelo desses, alguns homens o descartariam, entendendo que significava medo de castração. Mas, quando se deparava com ele, o subconsciente de Rincewind reconhecia o pavor mortal de ser cortado em pedacinhos. E deparava-se com ele o tempo todo. Ele se sentou.
— Você está bem? — perguntou Conina, apreensiva.
Rincewind correu os olhos pelo convés tumultuado.
— Não necessariamente — respondeu, com cuidado.
Não parecia haver nenhum pirata escravocrata vestido de preto ao redor, pelo menos não na vertical. Havia alguns membros da tripulação, todos mantendo respeitosa distância de Conina. Só o capitão ficava razoavelmente perto, com um sorriso idiota estampado na cara.
— Foram embora — informou Conina. — Levaram o que puderam e se foram.
— Os imbecis — reclamou o capitão. — Mas remam rápido! — Conina encolheu-se quando ele lhe deu um tapa nas costas. — Ela luta bem, para mulher — acrescentou. — Ê!
Cambaleante, Rincewind levantou. O navio seguia de vento em popa, na direção de uma mancha distante no horizonte, que deveria ser Klatch Central. O mago estava totalmente incólume. Começou a se animar.
O capitão dirigiu aos dois um olhar camarada e afastou-se para dar ordens relacionadas a velas, cordas e coisas desse tipo. Conina sentou-se na Bagagem, que não pareceu se incomodar.
— Ele disse estar tão agradecido que vai nos levar até Al Khali — comentou.
— Achei que fosse esse o acordo — surpreendeu-se Rincewind. — Vi você dando o dinheiro a ele, e tal.
— É, mas ele pretendia nos dominar e me vender como escrava, ao chegarmos lá.
— E não ia me vender? — indignou-se Rincewind, e bufou. — Claro, é o manto de mago. Ele não se atreveria…
— Hum. Na verdade, falou que teria de dá-lo — disse Conina, passando a mão por uma lasca imaginária na tampa da Bagagem.
— Me dar?
— É. Hum. Tipo: na compra de cada concubina, leve um mago grátis. Hum.
— Não entendi a relação com as flores.
Conina encarou-o durante um longo tempo e, quando se deu conta de que ele não sorriria, suspirou e perguntou:
— Por que os magos ficam sempre tensos perto de mulher?
Rincewind levantou a cabeça.
— Gostei dessa! — exclamou. — Pois fique sabendo que… olhe aqui, enfim, eu me dou muito bem com as mulheres, de uma maneira geral, apenas mulher com espada é que me deixa meio perturbado. — Ele considerou isso durante algum tempo e acrescentou: — Qualquer pessoa com espada me deixa perturbado, se é essa a questão.
Conina continuava passando a mão na lasca. A Bagagem soltou um estalo de satisfação.
— Sei de mais uma coisa que vai deixá-lo perturbado — murmurou.