— Hummm?
— Roubaram o chapéu.
— O quê?
— Não pude fazer nada, carregaram o que puderam…
— Os invasores fugiram com o chapéu?
— Não use esse tom comigo! Não fui eu que fiquei dormindo o tempo todo…
Rincewind agitou as mãos.
— Nãnãnã, não fique exaltada, eu não estava usando tom nenhum… Quero pensar sobre isso…
— O capitão acha que os ladrões provavelmente vão voltar a Al Khali — Rincewind ouviu-a dizer. — Tem um lugar que os criminosos costumam freqüentar, e podemos…
— Não sei por que temos de fazer o que quer que seja — cortou Rincewind. — O chapéu queria ficar longe da Universidade, e tenho certeza de que aqueles piratas não vão, jamais, passar por lá para tomar um xerez rápido.
— Vai deixá-los irem embora com o chapéu? — perguntou Conina, genuinamente perplexa.
— Tudo bem que alguém tenha de ir atrás deles, mas por que eu?
— Você disse que o chapéu é o símbolo da magia! O desejo de todos os magos! Não pode deixá-lo sumir assim!
— Então, veja.
Rincewind recostou-se. Achava-se estranhamente surpreso. Estava tomando uma decisão. Era sua. Pertencia a ele. Ninguém o estava forçando. Às vezes, parecia que a vida inteira consistia em se meter em encrencas porque outras pessoas queriam. Mas, desta vez, ele havia tomado uma decisão, e ponto final. Desembarcaria em Al Khali e acharia um modo de voltar para casa. Outra pessoa poderia salvar o mundo, e ele desejava-lhe sorte. Por que não estava contente?
A testa se franziu. Por que não estava satisfeito?
Porque é a decisão errada, imbecil.
Ah, não, pensou. Já tive vozes suficientes na cabeça. Fora!
Mas meu lugar é aqui.
Você sou eu?
Sua consciência.
Ah.
Não pode deixar o chapéu ser destruído. Ele é o símbolo…
Tudo bem, eu sei…
… o símbolo da magia sob a doutrina. Magia sob o controle dos homens. Você não quer voltar àquela ira…
O quê?…
Ira…
Você quer dizer era?
Exatamente. Era. Voltar a era da magia em estado bruto. A estrutura da realidade tremulava todos os dias. Era terrível, estou me dizendo.
Como é que eu sei?
Memória coletiva.
Nossa. Eu tenho isso?
Bem… parte dela.
Tudo bem, mas por que eu?
No fundo da alma, você sabe que é mago de verdade. A palavra “mago” está escrita no seu coração.
— O problema é que eu não paro de conhecer pessoas que querem conferir — lamentou Rincewind.
— O que você disse? — perguntou Conina.
Rincewind fitou a mancha no horizonte e suspirou.
— Estava pensando alto — desculpou-se.
Carding examinou o chapéu. Contornou a mesa e olhou-o de outro ângulo. Por fim, disse:
— Está ótimo. Onde achou as octarinas?
— São apenas pedras semipreciosas de boa qualidade — respondeu Lingote. — Enganaram você?
Era um chapéu magnífico. Na verdade, e Carding tinha de admitir, a peça parecia bem melhor do que a original. O velho chapéu de arqui-reitor já se mostrava bem surrado, com os fios de ouro soltos e opacos. A réplica era um progresso considerável. Tinha estilo.
— Gosto especialmente das rendas — elogiou Carding.
— Levou um tempão.
— Por que não tentou mágica?
Carding mexeu os dedos e pegou a taça comprida que surgiu no ar. Debaixo do guarda-sol de papel e da salada de frutas, havia uma bebida alcoólica viscosa e cara.
— Não funcionou — explicou Lingote. — Não consegui, hum, acertar. Tive de costurar todas as lantejoulas à mão.
Ele pegou a chapeleira. Carding tossiu dentro da taça.
— Não o guarde ainda — pediu, tirando-o das mãos do tesoureiro. — Sempre quis experimentá-lo…
Ele se virou para o grande espelho na parede do quarto do tesoureiro e pôs o chapéu, reverentemente, sobre os cachos sujos.
Era o fim do primeiro dia de fonticeria, e os magos haviam conseguido mudar tudo, à exceção de si próprios.
Todos haviam tentado, na surdina, quando achavam que ninguém estava olhando. Até Lingote fez uma tentativa, na privacidade de seu gabinete. Havia conseguido ficar vinte anos mais jovem, com um abdômen no qual se poderia quebrar pedras, mas, tão logo deixou de se concentrar, voltou dolorosamente à idade e ao físico já conhecidos. Havia algo elástico na aparência. Quanto mais tentávamos afastá-la, mais rápido ela voltava. E era pior quando nos acertava. Bolas de ferro com espetos, espadas de folha larga e varas enormes, com pregos na ponta, geralmente eram consideradas armas temidas, mas não pareciam nada, se comparadas a vinte anos atirados com força na nossa cabeça.
Isso se dava porque a fonticeria parecia não funcionar em nada que fosse intrinsecamente mágico. Todavia, os magos haviam alcançado alguns progressos importantes. O manto de Carding, por exemplo, tinha virado uma peça de seda e renda, de extremo e requintadíssimo mau gosto, e lhe dava a aparência de uma grande gelatina vermelha, drapejada com sobrecobertas.
— Fica bem em mim, não fica? — perguntou Carding. Ele ajustou a aba do chapéu, conferindo-lhe um ar inapropriadamente libertino.
Lingote não respondeu. Estava olhando para fora da janela. Haviam acontecido algumas modificações, sim. Fora um dia longo.
Os velhos muros de pedra tinham sumido. Agora, havia uma cerca bonita. Para além dela, a cidade reluzia. Uma beleza de mármore branco e ladrilhos vermelhos. O Rio Ankh já não era o esgoto cheio de lodo que ele conhecia, mas a fulgurante faixa transparente onde — um belo remate — carpas roliças nadavam, em águas puras como neve derretida.[11]
Vista do alto, Ankh-Morpork deveria estar ofuscante. Ela brilhava. Detritos milenares haviam sido eliminados.
Isso deixava Lingote estranhamente incomodado. Ele se sentia deslocado, como se estivesse vestindo roupas novas que coçassem. É claro que estava mesmo vestindo roupas novas, e elas de fato coçavam, mas não era esse o problema. O mundo novo mostrava-se todo muito bom, era exatamente como deveria ser, e, todavia… ele queria que tivesse mudado, pensou, ou apenas queria que as coisas tivessem se rearranjado de maneira mais conveniente?
— Perguntei se não ficou bom em mim — disse Carding.
Lingote se voltou, o rosto vago.
— Hum?
— O chapéu, infeliz.
— Ah. Hum. Muito… bom.
Com um suspiro, Carding tirou a peça exuberante da cabeça e meteu-a na chapeleira.
— Melhor levarmos para o garoto — disse. — Ele já está começando a perguntar.
— Ainda estou intrigado com o destino do verdadeiro chapéu — admitiu Lingote.
— Está aqui — afirmou Carding, batendo na tampa.
— Estou falando, hum, do original.
— Esse é o original.
— Estou falando…
— Esse é o chapéu de arqui-reitor — decretou Carding. — Você deveria saber, foi quem o fez.
— É, mas… — começou o tesoureiro, em desalento.
— Afinal de contas, você não faria uma falsificação, faria?
— Não, hum, assim…
— É só um chapéu. É o que quer que as pessoas imaginem. Vêem o arqui-reitor usando, acham que é o original. De certo modo é. As coisas se definem pelo que provocam. E as pessoas também, evidentemente. Essa é a base fundamental da magia dos magos.
Carding fez uma pausa teatral e botou a chapeleira nos braços abertos de Lingote.
— Cogitum fungu chappili, poderíamos dizer.
11
Obviamente, os cidadãos de Ankh-Morpork sempre alegaram que a água do rio era incrivelmente pura. Qualquer água que houvesse passado por tantos rins, calculavam eles, tinha mesmo de ser pura.