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Na Praça das Luas Partidas, outrora mercado de prazeres secretos — em cujas barracas iluminadas e acortinadas o folião tardio conseguia qualquer coisa, desde um prato de enguias gelatinizadas, até a doença venérea de sua escolha —, a névoa serpenteava e caía no vazio gelado.

As barracas haviam desaparecido, substituídas pelo mármore brilhante e por uma estátua que representava o espírito de qualquer coisa, cercada de chafarizes iluminados. O som monótono da água era o único barulho a quebrar o colesterol de silêncio que dominava o coração da cidade.

O silêncio também reinava na escuridão da Universidade Invisível. Menos…

Lingote avançou pelos corredores sombrios como uma aranha de duas patas, correndo — ou, ao menos, coxeando rapidamente —, até alcançar a porta proibida da biblioteca. Olhou à volta na escuridão e, depois de hesitar um pouco, bateu de leve.

O silêncio vertia da madeira pesada. Mas, ao contrário do silêncio que dominava o resto da cidade, aquele era um silêncio alerta, vigilante. Era o silêncio do gato adormecido que acaba de abrir um olho.

Quando não agüentou mais, Lingote ficou de quatro e tentou espiar por debaixo da porta. Enfim, pôs a boca o mais perto possível da fenda ventosa e empoeirada, sob a última dobradiça, e sussurrou:

— Ei! Hum. Está me ouvindo?

Ele podia jurar que algo havia se mexido bem no fundo do breu. Tentou outra vez, com seu estado de ânimo oscilando entre o pavor e a esperança, a cada batida instável do coração.

— Ei! Sou eu, hum, Lingote. Fale comigo, por favor.

Era possível que grandes pés aveludados viessem se arrastando suavemente pelo chão da biblioteca, ou talvez fosse apenas o estalo dos nervos de Lingote. Ele tentou engolir a secura da garganta, e fez outra tentativa.

— Olhe, tudo bem, mas estão cogitando fechar a Universidade!

O silêncio aumentou. O gato adormecido havia ficado de orelha em pé.

— O que está acontecendo é um erro! — opinou o tesoureiro, e levou a mão à boca pela enormidade do que havia dito.

— Oook?

Foi um ruído muito leve, como um arroto de barata. Subitamente animado, Lingote colou os lábios à fenda.

— O Patrício, hum, está aí?

— Oook.

— E o cachorrinho?

— Oook.

— Ah, ótimo.

Lingote se estendeu no conforto da escuridão e tamborilou os dedos no chão frio.

— Você não quer me, hum, deixar ficar aí também? — arriscou ele.

— Oook!

Lingote fez uma careta.

— Bem, não quer me, hum, deixar entrar por alguns minutos? Precisamos conversar urgentemente, de homem para homem.

— Eeek.

— Quer dizer, macaco.

— Oook.

— Então, por que você não sai?

— Oook.

Lingote suspirou.

— Essa demonstração de lealdade é muito bonita, mas você vai morrer de fome aí dentro.

— Oook, oook.

— Que outra maneira de entrar?

— Oook.

— Ah, faça como quiser.

Lingote suspirou. Mas, de algum modo, sentia-se melhor pela conversa. Todo mundo, na Universidade, parecia viver um sonho, enquanto o bibliotecário não queria nada além de frutas frescas, o fornecimento regular de cartões de catalogação e, mais ou menos uma vez por mês, a oportunidade de pular o muro do zoológico particular do Patrício.[12] Era estranhamente reconfortante.

— Então, você tem bananas suficientes e tudo o mais? — indagou, depois de outra pausa.

— Oook.

— Não deixe ninguém entrar, está bem? Hum. É extremamente importante.

— Oook.

— Ótimo. — Lingote pôs-se de pé e limpou a poeira dos joelhos.

Colou a boca ao buraco da fechadura e acrescentou: — Não confie em ninguém.

— Oook.

Não estava completamente escuro na biblioteca, porque as fileiras seriadas de livros mágicos soltavam um leve brilho octarina, causado pelo vazamento taumatúrgico naquele campo oculto intenso. Havia luz suficiente para iluminar o conjunto de estantes metidas contra a porta.

O Patrício havia sido cuidadosamente colocado num vidro, sobre a escrivaninha do bibliotecário. O próprio bibliotecário estava sentado debaixo da mesa, enrolado na coberta, segurando Wuffles no colo.

De vez em quando, comia uma banana.

Lingote, enquanto isso, atravessava os corredores ecoantes da Universidade, retornando à segurança do quarto. Foi porque seus ouvidos se encontravam apreensivamente atentos ao menor ruído que ele acabou ouvindo, bem no limite possível da audição, o choro.

Aquele não era um barulho comum ali. Nos corredores acarpetados do alojamento dos magos sêniores, havia inúmeros barulhos que se podiam ouvir tarde da noite, tais como ronco, o leve tinido de copos, cantos desafinados e, de vez em quando, o chiado e o zumbido de um feitiço que tinha dado errado. Mas o barulho de alguém chorando baixinho era tamanha novidade que Lingote se viu atravessando a galeria que levava à suíte do arqui-reitor.

A porta estava entreaberta. Dizendo a si mesmo que não deveria, preparando-se para uma corrida rápida, Lingote espiou o quarto.

Rincewind olhou de novo.

— O que é isso? — sussurrou.

— Acho que é um tipo de templo — respondeu Conina.

O mago continuou estudando a construção, enquanto os habitantes de Al Khali passavam à volta, numa espécie de movimento browniano humano. Um templo, pensou ele. Bem, era grande e imponente, e o arquiteto havia usado todos os artifícios de que dispunha para fazê-lo parecer ainda maior e mais imponente, e também para obrigar todas as pessoas que o contemplassem a pensar em como eram pequenas e ordinárias, e que tampouco tinham tantas cúpulas. Era o tipo de lugar que sempre seria exatamente como na memória.

Mas Rincewind conhecia um pouco de arquitetura sacra, e os afrescos das paredes imensas e, naturalmente, imponentes não pareciam nem um pouco religiosos. Em primeiro lugar, os participantes estavam se divertindo. Era quase certo que estivessem se divertindo. Sim, deveriam estar. Seria surpreendente se não estivessem.

— Não estão dançando, estão? — perguntou, numa tentativa desesperada de não acreditar no que via. — Ou talvez seja uma espécie de acrobacia.

Conina mantinha os olhos semicerrados, à luz ofuscante do sol.

— Acho que não — respondeu ela, pensativa.

Rincewind lembrou-se.

— Acho que moça como você não deve olhar esse tipo de coisa — disse ele, rispidamente.

Conina abriu um sorriso.

— Acho que os magos estão expressamente proibidos — rebateu ela, com candura. — Dizem que os deixa cegos.

Rincewind levantou o rosto novamente, pronto a arriscar um olho. Isso já era de se esperar, disse a si mesmo. Países estrangeiros são… bem… países estrangeiros. Fazem as coisas de maneira diferente.

Embora algumas coisas, decidiu ele, fossem feitas do mesmo modo, só que com mais criatividade e, pelo jeito, muito maior freqüência.

— Os afrescos do templo de Al Khali são famosos no mundo inteiro — comentou Conina, enquanto os dois avançavam por entre uma multidão de crianças tentando vender objetos e apresentar parentes a Rincewind.

— Faz sentido — considerou o mago. — Parem de empurrar, está bem? Não, não quero comprar nada. Não, não quero conhecer sua prima. Nem o primo. Nem nada, seu indecente. Saiam daqui, estão ouvindo?

O último grito dirigiu-se ao grupo de crianças tranqüilamente montadas na Bagagem, que se arrastava pacientemente atrás de Rincewind, sem fazer qualquer tentativa de se livrar delas. Talvez estivesse aborrecida por alguma coisa, pensou ele, e se animou um pouco.

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12

Ninguém, jamais, teve coragem de lhe perguntar o que fazia lá.