Houve uma explosão no céu. Um círculo de fogo laranja formou-se na metade da altura da torre da fonticeria, subiu rapidamente e partiu na direção de Quirm.
Rincewind deslizou no banco improvisado e fitou a Torre de Arte. Teve a nítida sensação de que ela retribuía o olhar. Não havia nenhuma janela, mas por um instante ele pensou ver movimento entre os torreões em ruína.
Tentou imaginar a idade da torre. Com certeza, era mais velha do que a Universidade. Mais velha do que a cidade, que havia se formado à sua volta como biombo em torno de montanha. Talvez mais velha do que a própria geografia. Houve um tempo em que os continentes eram isolados, Rincewind bem sabia, e depois eles, de alguma forma, se acomodaram uns aos outros com mais conforto, como filhotes de cachorro numa cesta. Talvez a torre tivesse sido banhada por ondas de outro lugar. Talvez estivesse ali antes do próprio Disco, mas Rincewind não gostava de pensar assim, porque isso levantava perguntas incômodas sobre quem a teria construído e para quê.
Ele examinou a própria consciência.
Ela disse: Não tenho opções. Faça o que quiser.
Rincewind levantou-se e bateu a poeira e as cinzas do manto, tirando também bastante do veludo vermelho queimado. Ergueu o chapéu, fez uma tentativa preocupada de endireitar a ponta e botou-o de volta à cabeça.
E seguiu vacilante para a Torre de Arte.
Havia uma porta muito velha e pequena na base. O mago não ficou nem um pouco surpreso quando ela se abriu à sua chegada.
— Que lugar estranho! — exclamou Nijel. — Que engraçada essa curvatura das paredes!
— Onde estamos? — perguntou Conina.
— E tem bebida alcoólica? — indagou Creosoto. — Provavelmente não — acrescentou.
— E por que está tremendo? — insistiu Conina. — Nunca estive em nenhum lugar que tivesse paredes de metal.
Ela fungou o ar.
— Estão sentindo cheiro de óleo? — perguntou, desconfiada.
O gênio ressurgiu, embora dessa vez sem os efeitos da fumaça e do alçapão errante. Era evidente que se mantinha o mais longe de Conina que lhe permitia a educação.
— Estão todos bem? — quis saber.
— Isso aqui é Ankh? — inquiriu. — Só que, quando pedimos para chegar à cidade, esperávamos que você nos botasse num lugar com porta.
— Vocês estão a caminho — informou o gênio.
— Em quê?
Alguma coisa na maneira como o gênio hesitou fez a mente de Nijel saltar para uma conclusão improvável. Ele olhou a lâmpada em suas mãos. Experimentou dar uma sacudidela. O chão tremeu.
— Ah, não — lamentou. — É fisicamente impossível.
— Estamos dentro da lâmpada? — surpreendeu-se Conina.
O lugar tremeu novamente quando Nijel tentou espiar pelo gargalo.
— Não se preocupem — garantiu o gênio. — Aliás, tentem não pensar nisso.
Ele explicou — embora “explicou” provavelmente seja uma palavra positiva demais e, nesse caso, realmente signifique que “só conseguiu explicar até certo ponto” — que era perfeitamente possível viajar mundo afora numa pequena lâmpada, sendo carregada por uma pessoa do grupo, com a própria lâmpada se mexendo, por estar sendo levada ali dentro, por causa: a) da natureza fractal da realidade, o que significa que se pode pensar em tudo como estando dentro de tudo o mais, e b) de um marketing criativo. O truque dependia do fato de as leis da física não detectarem a irregularidade até o fim da viagem.
— Então, é melhor não pensar a respeito, sim? — pediu o gênio.
— Como não pensar em rinocerontes cor-de-rosa — disse Nijel, e soltou uma risada constrangida quando todos olharam para ele.
— Era meio uma brincadeira que a gente fazia — justificou o rapaz. — Não podia pensar em rinocerontes cor-de-rosa. — Ele tossiu. — Eu não falei que era uma brincadeira maravilhosa.
E espiou novamente pelo gargalo.
— Não — disse Conina. — Não parece.
— Bem — interveio o gênio. — Alguém quer café? Música? Uma partida rápida de Procura Essencial? (. Jogo muito popular entre deuses, semideuses, demônios e outros seres sobrenaturais, que se sentem à vontade com perguntas como “Qual é o sentido de tudo?” e “Como tudo acabará?”).
— Bebida? — propôs Creosoto.
— Vinho branco?
— Uma droga.
O gênio pareceu chocado.
— Tinto é ruim para… — começou.
— Mas em tempestade vale qualquer porto — apressou-se em corrigir Creosoto. — Até sidra. Mas sem guarda-sol.
Ocorreu ao xerinfe que aquilo não era jeito de falar com um gênio. Ele se empertigou um pouco.
— Sem guarda-sol, pelas Cinco Luas de Nasreem. Nem pedaços de fruta, azeitonas, canudos dobrados ou macacos de enfeite, peço a ti pelas Dezessete Sideritas de Sarudin.
— Não sou de botar guarda-sol em bebida — irritou-se o gênio.
— E bem espaçoso, aqui — notou Conina. — Por que você não mobília?
— O que eu não entendo — disse Nijel — é que, se estamos todos na lâmpada que venho segurando, então o eu da lâmpada está segurando uma lâmpada menor e, nessa lâmpada…
O gênio sacudiu as mãos.
— Não fale isso! — exasperou-se. — Por favor!
Nijel franziu a testa.
— Tudo bem — assentiu. — Mas, então, há muitos de mim?
— É cíclico, mas agora pare de chamar a atenção para isso… Ah, droga.
Ouviu-se o ruído sutil e desagradável do universo, de repente, se dando conta do fato.
Estava escuro na torre. Um breu antigo que se encontrava ali desde a aurora dos tempos e que não gostou nada da intrusão da luz diurna, impregnada ao redor de Rincewind.
Ele sentiu o ar mexer quando a porta se fechou. E a escuridão voltou, preenchendo com tamanha perfeição o espaço onde a luz estivera que não veríamos a junção, mesmo se a luz ainda estivesse ali.
O interior da torre cheirava a coisa antiga, com leve indício de excremento de corvo. Era preciso muita coragem para ficar ali dentro, no escuro. Rincewind não tinha essa coragem, mas ficou assim mesmo.
Alguma coisa começou a lhe cheirar os pés, mas o mago continuou imóvel. O único motivo de não ter se mexido era o medo de acabar pisando em algo pior.
Então, com muita delicadeza, uma grande mão, feito luva velha de couro, tocou a sua, e alguém disse:
— Oook.
Rincewind ergueu os olhos.
A escuridão cedeu a um clarão forte. E Rincewind viu.
Toda a torre estava abarrotada de livros. Eles se comprimiam em cada um dos degraus da apodrecida escada em caracol que serpenteava no interior. Estavam empilhados no chão, embora algo no modo como se empilhavam sugerisse que a palavra “amontoados” seria mais apropriada. Dispunham — se — tudo bem, empoleiravam-se — em cada uma das saliências putrefatas.
E observavam o mago de um jeito velado que não tinha nada a ver com os seis sentidos comuns. Os livros são ótimos para transmitir significado. Claro que não necessariamente seu próprio significado, e Rincewind entendeu que vinham tentando lhe dizer alguma coisa.
Houve outro clarão. Ele sabia que era a magia da torre da fonticeria, refletida no distante buraco do teto.
Pelo menos, permitiu que identificasse Wuffles, farejando seu pé direito. Foi um certo alívio. Mas se conseguisse dar nome ao ruído baixo e repetitivo, próximo à orelha esquerda…
Houve mais um clarão providencial, que o pegou fitando os olhinhos amarelos do Patrício, a arranhar pacientemente a lateral do vidro onde estava. Era uma raspagem leve, indiferente, como se o lagarto não estivesse propriamente tentando sair, mas apenas interessado em ver quanto tempo levaria para desgastar o vidro.
Rincewind fitou o bibliotecário.