— Isso é tudo? — perguntou Rand. — Você conhece o temperamento de Nynaeve. Quando Cenn Buie a chamou de criança no ano passado, ela deu na cabeça dele com o cajado, e ele faz parte do Conselho da Aldeia e, além disso, é velho o bastante para ser avô dela. Ela se enfurece com qualquer coisa, mas a raiva passa assim que vira as costas.
— Para mim isso já é tempo demais — murmurou Ewin.
— Não me interessa em quem Nynaeve bate. — Mat riu. — Desde que não seja em mim. Esse vai ser o melhor Bel Tine de todos. Um menestrel, uma lady… quem poderia pedir mais? Quem precisa de fogos de artifício?
— Um menestrel? — perguntou Ewin, a voz elevando-se subitamente.
— Vamos lá, Rand — continuou Mat, ignorando o menino mais novo. — Já acabamos aqui. Você tem de ver aquele sujeito.
Ele subiu os degraus aos pulos, com Ewin esforçando-se para acompanhá-lo e gritando:
— Tem mesmo um menestrel, Mat? Não é que nem os cães fantasmas, é? Ou os sapos?
Rand fez uma pausa para apagar o lampião, depois foi correndo atrás deles.
No salão, Rowan Hum e Samel Crawe haviam se juntado aos outros perto da lareira, de modo que todo o Conselho da Aldeia estava ali reunido. Bran al’Vere falava, a voz normalmente grave num tom tão baixo que, além da aglomeração de cadeiras, ouvia-se somente um murmúrio surdo. O Prefeito enfatizava as palavras batendo um indicador grosso na palma da outra mão e olhando para os homens, um de cada vez. Todos assentiam, concordando com o que quer que ele estivesse dizendo, embora Cenn o fizesse de modo mais relutante.
A maneira como os homens se aglomeravam falava com mais clareza do que uma placa pintada. Qualquer que fosse o assunto era somente para o Conselho da Aldeia, pelo menos por enquanto. Eles não iriam gostar de ver Rand tentando escutar. Com relutância, ele se afastou dali. Ainda havia o menestrel. E os estranhos.
Do lado de fora, Bela e a carroça haviam sumido, levados por Hu ou por Tad, os cavalariços da estalagem. Mat e Ewin estavam ali, parados, fuzilando um ao outro com o olhar a poucos passos da entrada da estalagem, o vento fustigando seus mantos.
— Pela última vez — gritou Mat —, eu não estou pregando uma peça em você. Vamos ter mesmo um menestrel. Agora vá embora. Rand, quer dizer a este cabeça de bagre que estou falando a verdade, para ver se ele me deixa em paz?
Fechando o manto, Rand avançou para apoiar Mat, mas suas palavras morreram quando os pelos de sua nuca se eriçaram. Ele estava sendo observado novamente. A sensação estava longe de ser a que o cavaleiro de capuz lhe causara, mas tampouco era agradável, especialmente tão pouco tempo depois daquele encontro.
Uma rápida olhada pelo Campo mostrou-lhe apenas o que ele tinha visto antes — crianças brincando, pessoas se preparando para o Festival e ninguém detendo o olhar mais do que alguns segundos em sua direção. O Pau da Primavera erguia-se sozinho agora, à espera. A algazarra e os gritos infantis enchiam as ruas menores. Tudo estava como deveria. Exceto pelo fato de que ele estava sendo observado.
Então alguma coisa o levou a se virar, a erguer os olhos. No beiral da estalagem um corvo enorme encontrava-se empoleirado, oscilando um pouco com as rajadas do vento que vinha das montanhas. Sua cabeça estava inclinada para o lado, e um olhinho preto estava fixo… nele, Rand pensou. Então engoliu em seco, e subitamente uma raiva queimou nele, uma raiva ardente e aguda.
— Comedor de carniça imundo — ele resmungou.
— Estou cansado de ser observado — grunhiu Mat, e Rand percebeu que o amigo havia parado ao seu lado e que também estava olhando de cenho franzido para o corvo.
Eles trocaram um olhar, e então, como se fossem um só, suas mãos dispararam em busca de pedras.
Duas pedras voaram precisamente… e o corvo deu um passo para o lado; as pedras passaram assoviando pelo espaço onde ele havia estado. Afofando as asas uma vez, ele tornou a inclinar a cabeça, fitando-os com um olho preto sem expressão, sem medo, como se nada houvesse acontecido.
Rand encarou o pássaro, intrigado.
— Você já viu um corvo fazer isso? — perguntou baixinho.
Mat sacudiu a cabeça sem desviar seu olhar da ave.
— Nunca. Nem outro pássaro.
— Um pássaro vil — soou uma voz de mulher atrás deles, melodiosa apesar do tom de repugnância —, no qual não se pode confiar mesmo nas melhores épocas.
Com um grito agudo o corvo se lançou no ar com tamanha violência que duas penas pretas caíram do beiral, flutuando.
Assustados, Rand e Mat se viraram para acompanhar o voo do pássaro, acima do Campo e na direção das Montanhas da Névoa, com seus cumes envoltos em nuvens erguendo-se além da Floresta do Oeste, até que ele não passasse de um pontinho no oeste e desaparecesse de vista.
O olhar de Rand desceu até a mulher que havia falado. Ela também acompanhara o voo do corvo, mas nesse momento se virou, e seus olhos encontraram os dele. Rand não podia deixar de olhá-la. Só podia ser Lady Moiraine, e ela era tudo que Mat e Ewin tinham dito, tudo e um pouco mais.
Quando soube que ela chamara Nynaeve de criança, Rand a imaginou mais velha, mas não. Pelo menos ele não conseguia atribuir a ela nenhuma idade. De início, achou que fosse tão jovem quanto Nynaeve, mas quanto mais a olhava mais pensava que ela era mais velha. Havia uma maturidade em seus olhos grandes e escuros, um ar de conhecimento que ninguém poderia ter adquirido ainda jovem. Por um instante, achou que aqueles olhos fossem poços profundos prestes a engoli-lo. Também estava claro por que Mat e Ewin a consideravam uma dama saída de um conto de menestrel. Seu porte era altivo, e havia nela um ar de autoridade que o fazia sentir-se sem jeito e desastrado. A cabeça dela mal chegava ao peito de Rand, mas sua presença era tal que sua altura parecia apropriada, e ele se sentia inadequado com o próprio tamanho.
Em todos os aspectos, ela não se parecia com ninguém que ele já tivesse conhecido. O capuz largo do manto emoldurava-lhe o rosto e os cabelos escuros, que pendiam em cachos suaves. Ele jamais havia visto uma mulher adulta sem os cabelos presos numa trança; toda garota dos Dois Rios aguardava ansiosamente que o Círculo das Mulheres de seu vilarejo determinasse que tinha idade suficiente para trançar os cabelos. Suas roupas eram igualmente estranhas. O manto era de veludo azul-celeste, com folhas, vinhas e flores num denso bordado prateado por toda a borda. O vestido cintilava discretamente quando ela se movia, num azul mais escuro que o do manto, com veios creme. Um colar de pesados elos de ouro pendia de seu pescoço, enquanto outra corrente de ouro, delicada e presa em seus cabelos, sustentava uma pequena e reluzente pedra azul no meio de sua testa. Um cinturão largo de ouro trançado envolvia-lhe a cintura, e no segundo dedo da mão esquerda havia um anel de ouro no formato de uma serpente picando a própria cauda. Ele certamente nunca vira um anel assim, embora reconhecesse a Grande Serpente, um símbolo da eternidade ainda mais antigo que a Roda do Tempo.
Mais luxuoso que qualquer roupa de festa, Ewin dissera, e ele estava certo. Ninguém jamais se vestia assim nos Dois Rios. Jamais.
— Bom dia, Senhora… hã… Lady Moiraine — disse Rand, seu rosto ficou quente com o tropeço da língua.
— Bom dia, Lady Moiraine — ecoou Mat um pouco mais tranquilamente, mas só um pouco.
Ela sorriu, e Rand pegou-se pensando se havia alguma coisa que pudesse fazer por ela, algo que lhe desse uma desculpa para ficar perto dela. Ele sabia que ela estava sorrindo para todos, mas parecia que o sorriso se destinava somente a ele. Era de fato como se um conto de menestrel houvesse adquirido vida. Mat tinha um sorriso bobo colado no rosto.
— Vocês sabem meu nome — disse ela, parecendo encantada. Como se sua presença, ainda que breve, não fosse se tornar o principal assunto das conversas da aldeia por um ano inteiro! — Mas vocês devem me chamar de Moiraine, não de lady. E seus nomes, quais são?