— Vocês acham que eu devia guardar a minha também? — A angústia e a indecisão coloriam o rosto de Ewin.
— Só se você quiser — respondeu Mat.
— Acho que ela deu a moeda para você gastar — disse Rand.
Ewin olhou sua moeda, depois balançou a cabeça e enfiou o pêni de prata no bolso.
— Vou guardar — disse ele, meio triste.
— Ainda temos o menestrel — lembrou Rand, e o rosto do menino se iluminou.
— Se ele acordar algum dia — acrescentou Mat.
— Rand — chamou Ewin —, tem mesmo um menestrel?
— Você vai ver — respondeu Rand com uma risada. Estava claro que Ewin só ia acreditar quando pusesse os olhos no menestrel. — Ele vai ter de descer, mais cedo ou mais tarde.
Gritos vieram da direção da Ponte das Carroças, e quando Rand olhou procurando o motivo, sua risada ficou ainda mais espontânea. Uma multidão crescente de aldeões, de velhos grisalhos a criancinhas que mal sabiam andar, escoltava um carroção alto rumo à ponte, um carroção imenso puxado por oito cavalos, de cuja parte externa da lona arredondada pendiam sacos que pareciam cachos de uvas. O mascate havia finalmente chegado. Estranhos e um menestrel, fogos de artifício e um mascate. Aquele seria o melhor Bel Tine de todos.
3
O Mascate
Pencas de panelas chacoalhavam ruidosamente quando o carroção do mascate passou ribombando sobre as toras pesadas da Ponte das Carroças. Ainda cercado por uma nuvem de aldeões e fazendeiros que haviam chegado para o Festival, o vendedor puxou as rédeas dos cavalos e fez com que parassem diante da estalagem. De todas as direções surgiam pessoas, aumentando a multidão ao redor da grande carroça, de rodas mais altas do que qualquer uma daquelas pessoas cujos olhos não desgrudavam do mascate acima delas, no banco do condutor.
O homem na carroça era Padan Fain, um sujeito pálido e magricela, com braços desengonçados e um narigão que mais parecia um bico. Fain, sempre sorridente e gargalhando como se soubesse uma piada que ninguém mais conhecia, levava sua carroça e seus cavalos para Campo de Emond toda primavera, desde que Rand podia se lembrar.
A porta da estalagem se abriu de supetão bem no instante em que os cavalos se detinham com um tilintar dos arreios, e o Conselho da Aldeia apareceu, liderado por Mestre al’Vere e por Tam. Eles saíram marchando com determinação, até mesmo Cenn Buie, no meio de toda a gritaria animada dos outros que pediam alfinetes, rendas, livros e uma dezena de outras coisas. Com relutância, a multidão se abriu para deixá-los passar, fechando o caminho rapidamente atrás deles sem que cessassem os gritos para o vendedor. Mais do que tudo, os aldeões pediam notícias.
Aos olhos dos aldeões, agulhas, chá e coisas do gênero não eram mais que a metade da carga da carroça de um mascate. Igualmente importantes eram as notícias de fora, notícias do mundo além dos Dois Rios. Alguns mascates simplesmente contavam o que sabiam, vomitando tudo de uma vez, um amontoado de bobagens que para eles não tinham a menor importância. Outros precisavam ter cada palavra arrancada deles, falando de má vontade, com maus modos. Fain, porém, falava à vontade, ainda que muitas vezes em tom provocador, e desandava a contar histórias, dando um espetáculo capaz de rivalizar com o de qualquer menestrel. Ele gostava de ser o centro das atenções, exibindo-se como um galo nanico, com todos os olhos voltados para ele. Nesse momento, ocorreu a Rand que Fain talvez não gostasse muito de encontrar um menestrel de verdade em Campo de Emond.
O mascate deu ao Conselho e aos aldeões exatamente a mesma atenção enquanto lutava para amarrar as rédeas, o que significava praticamente nenhuma. Ele assentia para ninguém em particular. Sorria sem sorrir e acenava, distraído, para pessoas das quais era particularmente amigo, embora sua amizade sempre fosse de um tipo peculiarmente distante, calorosa sem nunca se aproximar demais.
As exigências para que ele falasse foram aumentando, mas Fain aguardou, desincumbindo-se de uma tarefa ou outra no banco do condutor, até que a multidão e a expectativa atingissem o nível que ele desejava. Só o Conselho permanecia em silêncio. Eles mantinham a dignidade que cabia à sua posição, mas as nuvens cada vez mais densas de fumaça de cachimbo que se elevavam sobre suas cabeças demonstravam quanto esforço isso demandava.
Rand e Mat enfiaram-se na multidão, aproximando-se o máximo possível do carroção. Rand teria parado a meio caminho, mas Mat foi se espremendo por entre a massa, puxando-o consigo, até ficarem bem atrás do Conselho.
— Eu estava pensando que você ia ficar lá na fazenda o Festival inteiro — Perrin Aybara gritou para Rand acima do clamor.
Meia cabeça mais baixo que Rand, o aprendiz de ferreiro de cabelos encaracolados era tão troncudo que parecia ter a largura de um homem e meio, com braços e ombros fortes o bastante para rivalizar com os do próprio Mestre Luhhan. Ele poderia facilmente ter aberto caminho empurrando as pessoas na multidão, mas isso não era do seu feitio. Ele escolhia o caminho cuidadosamente, pedindo desculpas às pessoas, que mal notavam qualquer coisa que não fosse o mascate. Mas ele se desculpava mesmo assim, e tentava não empurrar ninguém enquanto pelejava por entre a multidão até Rand e Mat.
— Imagine só — disse ele quando finalmente os alcançou. — O Bel Tine e um mascate, os dois ao mesmo tempo. Aposto que haverá fogos de artifício mesmo.
— Você não sabe nem um quarto da história. — Mat riu.
Perrin o fitou, desconfiado, depois olhou para Rand.
— É verdade — gritou Rand, então fez um gesto apontando a massa de pessoas que crescia cada vez mais, todas falando ao mesmo tempo. — Mais tarde. Eu explico mais tarde. Mais tarde, eu disse!
Nesse momento Padan Fain levantava-se no banco da carroça, e a multidão ficou em silêncio por um instante. As últimas palavras de Rand explodiram no silêncio absoluto, apanhando o mascate com um braço levantado dramaticamente e a boca aberta. Todos se viraram para olhar Rand. O homenzinho ossudo em cima da carroça, pronto para arrebatar a todos na expectativa de suas primeiras palavras, dirigiu a Rand um olhar agudo e perscrutador.
O rosto de Rand ficou vermelho, e ele desejou ser do tamanho de Ewin para não se destacar tão claramente. Seus amigos também mexeram-se, pouco à vontade. Fora somente no ano anterior que Fain lhes dera atenção pela primeira vez, reconhecendo-os como homens. Fain normalmente não tinha tempo para alguém que fosse jovem demais para comprar um bom lote de mercadorias de seu vagão. Rand torceu para não ser relegado novamente à condição de criança aos olhos do mascate.
Pigarreando bem alto, Fain ajeitou seu manto pesado.
— Não, mais tarde não — declamou o mascate, mais uma vez erguendo a mão num gesto grandioso. — Eu lhes contarei agora. — Enquanto falava, fazia gestos largos, lançando as palavras sobre a multidão. — Vocês pensam que estão enfrentando problemas nos Dois Rios, não é? Ora, o mundo inteiro tem problemas, desde a Grande Praga, ao sul, até o Mar das Tempestades, do Oceano de Aryth, a oeste até o Deserto Aiel, a leste. E mesmo além. O inverno foi o mais duro que vocês já viram, frio o suficiente para congelar seu sangue e rachar seus ossos? Ahhh! O inverno foi rigoroso em toda parte. Nas Terras da Fronteira, as pessoas chamariam seu inverno de primavera. Mas a primavera não chega?, vocês se perguntam. Os lobos têm atacado suas ovelhas? Talvez até homens? É assim que tem sido? Ora, ora. A primavera está atrasada em toda parte. Há lobos em todo lugar, todos famintos por qualquer carne em que possam cravar os dentes, seja de ovelha, vaca ou homem. Mas existem coisas piores do que os lobos ou o inverno. Há gente que ficaria feliz em ter apenas os pequenos problemas de vocês.