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Seu pai mexeu o caldeirão com uma colher de pau comprida e provou o caldo.

— Só mais um tempinho.

Rand correu para lavar o rosto e as mãos; havia um jarro e uma bacia no lavatório ao lado da porta. O que ele queria era um banho quente, para tirar o suor e acabar com a friagem, mas isso viria quando a chaleira grande na sala dos fundos estivesse quente.

Tam revirou um armário e retirou de lá uma chave longa como sua mão. Ele a girou na grande fechadura de ferro na porta. Ao ver o olhar inquisitivo de Rand, falou:

— Por questão de segurança. Talvez eu esteja fantasiando, ou talvez o tempo esteja me deixando cismado, mas… — Ele suspirou e balançou a chave na palma da mão. — Vou cuidar da porta de trás. — E desapareceu rumo aos fundos da casa.

Rand não conseguia se lembrar de quando uma daquelas duas portas havia sido trancada. Ninguém nos Dois Rios trancava portas. Não havia necessidade. Até aquele momento, pelo menos.

Lá de cima, do quarto de Tam, veio um som áspero, como se alguma coisa estivesse sendo arrastada pelo chão. Rand franziu a testa. A menos que Tam tivesse subitamente decidido trocar os móveis de lugar, ele só podia estar puxando o velho baú que guardava embaixo da cama. Outra coisa que nunca havia sido feita até onde Rand se lembrava.

Ele encheu uma chaleira pequena de água para o chá e pendurou-a num gancho sobre o fogo, depois pôs a mesa. Ele próprio havia esculpido as tigelas e colheres. Os postigos da frente ainda estavam fechados, e de quando em quando ele dava uma espiada lá fora. Mas a noite já havia caído por completo, e tudo que ele conseguia ver eram as sombras da lua. O cavaleiro negro podia facilmente estar lá fora, mas Rand tentou não pensar nisso.

Quando Tam voltou, Rand olhou-o, surpreso. Um cinturão grosso cruzava, inclinado, a cintura de Tam, e do cinto pendia uma espada, com uma garça de bronze na bainha preta e outra no longo punho. Os únicos homens que Rand já vira usando espadas eram os guardas dos mercadores. E Lan, é claro. O fato de que seu pai pudesse possuir uma jamais havia lhe ocorrido. Exceto pelas garças, a espada parecia muito com a de Lan.

— De onde isso veio? — ele perguntou. — O senhor comprou de um mascate? Quanto custou?

Lentamente Tam desembainhou a arma; a claridade do fogo brincou ao longo da lâmina reluzente. Não se parecia nada com as espadas simples e toscas que Rand já tinha visto nas mãos dos guardas dos mercadores. Nem ouro nem pedras preciosas a adornavam, mas ela lhe pareceu grandiosa mesmo assim. A lâmina, muito levemente curva e afiada apenas de um lado, trazia outra garça gravada no aço. Pequenos guarda-mãos, trabalhados para se parecerem com tranças, flanqueavam o punho. Parecia quase frágil se comparada às espadas dos guardas dos mercadores; a maioria daquelas era de dois gumes, e grossas o bastante para cortar uma árvore ao meio.

— Eu a comprei muito tempo atrás — disse Tam —, muito longe daqui. E paguei caro demais; dois cobres é demais para uma destas. Sua mãe não aprovou, mas ela sempre foi mais sábia que eu. Eu era jovem, e o preço me pareceu justo na época. Ela sempre quis que eu me livrasse da espada, e mais de uma vez eu achei que ela estava certa, que deveria dá-la.

Os reflexos do fogo fizeram a lâmina parecer em chamas. Rand levou um susto. Muitas vezes sonhara em ter uma espada.

— Dá-la? Como poderia dar uma espada como essa?

Tam bufou.

— Não tem muita utilidade para cuidar de ovelhas, não é? Não dá para arar um campo nem ceifar a colheita com ela. — Por um longo minuto ele ficou olhando a espada como se estivesse se perguntando o que estava fazendo com uma coisa daquelas. Por fim, soltou um suspiro profundo. — Mas, se eu não estiver apenas tendo ideias sombrias, se nossa sorte acabar, talvez nos próximos dias fiquemos felizes por eu tê-la enfiado naquele baú velho em vez de ter me desfeito dela. — Ele deslizou a espada suavemente de volta à bainha e limpou a mão na camisa com uma careta. — O ensopado já deve estar pronto. Vou servi-lo enquanto você prepara o chá.

Rand assentiu e pegou a latinha com chá, mas queria saber tudo. Por que Tam compraria uma espada? Ele não podia imaginar. E onde Tam a havia encontrado? Quão longe? Ninguém jamais saía dos Dois Rios; ou muito poucos, pelo menos. Ele sempre tivera a vaga impressão de que seu pai devia ter viajado para fora — sua mãe era uma estrangeira —, mas uma espada…? Ele tinha muitas perguntas para fazer assim que se sentassem à mesa.

A água do chá estava fervendo ferozmente, e ele precisou enrolar um pano na alça da chaleira para tirá-la do gancho. O calor atravessou o tecido imediatamente. Quando ele se afastou do fogo, uma batida pesada na porta sacudiu a tranca. Todos os pensamentos sobre a espada, ou sobre a chaleira quente em sua mão, desapareceram.

— Um dos vizinhos — disse sem muita segurança. — Mestre Dautry querendo emprestado… — Mas a fazenda de Dautry, seu vizinho mais próximo, ficava a uma hora de distância, mesmo à luz do dia, e não parecia provável que Oren Dautry, mesmo desavergonhado que era para pedir coisas emprestadas, saísse de casa no escuro.

Tam pousou suavemente as tigelas cheias de ensopado e afastou-se devagar da mesa. As mãos repousavam no punho da espada.

— Acho que não… — ele começou, e a porta se abriu de supetão, pedaços da fechadura de ferro girando pelo chão.

Uma figura preencheu o vão da porta, e era maior que qualquer homem que Rand já tivesse visto, uma figura vestindo uma cota de malha preta que caía até os joelhos, com espigões de metal nos pulsos, cotovelos e ombros. Uma das mãos segurava uma espada pesada, semelhante a uma foice; a outra estava aberta diante dos olhos, como se para protegê-los da luz.

Rand sentiu o começo de uma estranha espécie de alívio. Quem quer que fosse aquele, não era o cavaleiro de manto negro. Então ele viu os chifres curvos de carneiro na cabeça que roçava no topo do portal, e onde deveriam estar boca e nariz havia um focinho peludo. Ele viu tudo isso enquanto inspirava com força o ar, que soltou num grito aterrorizado quando, sem pensar, atirou a chaleira quente naquela cabeça semi-humana.

A criatura urrou, parte grito de dor, parte rugido animal, quando a água fervente caiu em sua cara. No mesmo instante em que a chaleira atingiu a criatura, a espada de Tam surgiu. O rugido subitamente se tornou um gorgolejo, e o vulto imenso tombou para trás. Antes que terminasse de cair, outro estava tentando abrir caminho com suas garras. Rand vislumbrou uma cabeça deformada encimada por chifres semelhantes a espigões antes que Tam voltasse a atacar, e dois corpos imensos bloquearam a porta. Ele percebeu que seu pai estava gritando, dirigindo-se a ele.

— Corra, rapaz! Esconda-se na floresta!

Os corpos na porta estremeceram quando outros do lado de fora tentaram puxá-los para abrir caminho. Tam enfiou um ombro sob a mesa maciça. Com um grunhido, ele a ergueu e atirou sobre a confusão de corpos.

— Eles são muitos para conter! Pelos fundos! Vá! Vá! Eu já estou indo!

No instante em que Rand se virou para ir, a vergonha tomou conta dele por ter obedecido tão prontamente. Queria ficar e ajudar o pai, embora não pudesse imaginar como, mas o medo o havia pegado pelo pescoço, e suas pernas se moviam sozinhas. Ele deixou a sala em disparada, indo na direção dos fundos da casa, mais rápido do que jamais correra em sua vida. Ruídos de coisas se quebrando e gritos vindos da porta da frente o perseguiam.

Ele estava com as mãos na barra que travava a porta dos fundos quando seu olhar deu com a fechadura de ferro que nunca era trancada. Só que Tam havia feito isso justamente naquela noite. Deixando a barra onde estava, ele disparou para uma janela lateral, levantou a vidraça e abriu os postigos. A noite havia substituído completamente o crepúsculo. A lua cheia e as nuvens carregadas pelo vento criavam sombras salpicadas que caçavam umas as outras pelo pátio da fazenda.