Subitamente uma casa se tornou visível por entre as últimas árvores de galhos nus, e ele precisou se conter para não parar de andar. Com a esperança transformando-se em desespero agudo, ele entrou cambaleante na aldeia.
Pilhas carbonizadas de escombros erguiam-se nos pontos antes ocupados por metade das casas em Campo de Emond. Chaminés de tijolos cobertas de fuligem espetavam o céu como dedos sujos erguendo-se de pilhas de toras enegrecidas. Fiapos de fumaça ainda subiam das ruínas. Aldeões de rostos sujos, alguns ainda em suas roupas de dormir, remexiam as cinzas, puxando uma panela aqui, simplesmente cutucando sem esperança os escombros com paus ali. O pouco que fora resgatado das chamas pontilhava as ruas; espelhos de corpo inteiro, aparadores polidos e cômodas altas se destacavam no pó entre cadeiras e mesas enterradas sob roupas de cama, utensílios de cozinha e pequenas pilhas de roupas e pertences pessoais.
A destruição parecia aleatória ao longo da aldeia. Cinco casas encontravam-se intocadas uma ao lado da outra, enquanto em outro lugar um sobrevivente solitário estava parado em meio à desolação.
Do outro lado do Rio Fonte de Vinho, as três imensas fogueiras do Bel Tine rugiam, atiçadas por um grupo de homens. Espessas colunas de fumaça negra se curvavam para o norte com o vento, salpicadas por fagulhas indiferentes. Um dos garanhões de Mestre al’Vere arrastava uma coisa que Rand não conseguia ver na direção da Ponte das Carroças e das chamas.
Antes que Rand se afastasse muito das árvores, um Haral Luhhan com o rosto coberto de fuligem correu em sua direção, segurando firme um machado de lenhador em uma das mãos de dedos grossos. O camisolão manchado de cinzas do ferreiro corpulento ia até as botas; uma marca vermelha e inflamada de queimadura cruzava-lhe o peito, aparecendo por um rasgão no tecido. Ele caiu ajoelhado ao lado da maca. Os olhos de Tam estavam fechados, a respiração, fraca e difícil.
— Trollocs, rapaz? — Mestre Luhhan perguntou com uma voz rouca de fumaça. — Aqui também. Aqui também. Bem, talvez nós tenhamos tido mais sorte do que podíamos esperar, se é que dá para crer nisso. Ele precisa da Sabedoria. Agora, onde ela está, pela Luz?! Egwene!
Egwene, correndo com os braços cheios de lençóis rasgados fazendo as vezes de ataduras, olhou na direção deles sem reduzir o passo. Seus olhos fitavam alguma coisa à distância; círculos escuros faziam com que parecessem bem maiores do que eram de fato. Então ela viu Rand e parou, respirando fundo e estremecendo.
— Ah, não, Rand, seu pai não… Ele está…? Venha, vou levar vocês a Nynaeve.
Rand estava cansado demais, aturdido demais, para falar. Durante toda a noite, Campo de Emond fora um refúgio, onde ele e Tam estariam seguros. Naquele momento tudo que ele parecia fazer era encarar, consternado, o vestido sujo de fuligem dela. Ele reparava em detalhes estranhos como se fossem muito importantes. Os botões da parte de trás do vestido estavam abotoados errado. E as mãos dela estavam limpas. Ele se perguntou por que as mãos dela estavam limpas se as bochechas estavam sujas de fuligem.
Mestre Luhhan pareceu entender o que se passava com ele. Colocando o machado em cima das traves, o ferreiro pegou a parte de trás da maca e seguindo-a deu um empurrão suave, impulsionando Rand para que fosse atrás de Egwene. Ele cambaleou atrás dela como um sonâmbulo. Por um breve instante ficou se perguntando como Mestre Luhhan sabia que as criaturas eram Trollocs, mas foi um pensamento que passou rapidamente. Se Tam podia reconhecê-los, não havia motivo para que Haral Luhhan não pudesse também.
— Todas as histórias são verdadeiras — ele murmurou.
— É o que parece, rapaz — disse o ferreiro. — É o que parece.
Rand mal conseguiu ouvi-lo. Estava se concentrando em acompanhar a forma esguia de Egwene. Ele se recuperou o suficiente apenas para desejar que se apressasse, embora na verdade ela estivesse contendo o passo para que os dois homens pudessem segui-la com seu fardo. Ela os levou, atravessando o Campo, até a casa dos Calders. O carvão enegrecera as bordas do telhado de palha, e a fuligem manchava as paredes caiadas. Das casas de ambos os lados restavam apenas as pedras das fundações e dois amontoados de cinzas e toras queimadas. Uma era a casa de Berin Thane, um dos irmãos do moleiro. A outra era a de Abell Cauthon, o pai de Mat. Até mesmo as chaminés haviam desabado.
— Esperem aqui — disse Egwene e lhes dirigiu um olhar como se esperasse resposta.
Quando eles se limitaram a ficar parados em pé ali, ela resmungou alguma coisa entredentes e entrou correndo.
— Mat — disse Rand. — Ele está…?
— Está vivo — disse o ferreiro. Ele abaixou sua extremidade da maca e lentamente endireitou o corpo. — Eu o vi há pouco. É de se admirar que qualquer um de nós esteja vivo. Do jeito como eles atacaram minha casa e a forja, parecia que eu tinha ouro e joias lá dentro. Alsbet rachou o crânio de um com uma frigideira. Ela deu uma olhada nas cinzas da nossa casa esta manhã e saiu caçando ao redor da aldeia com o maior martelo que conseguiu desenterrar do que restou da forja, para o caso de algum deles ter se escondido em vez de fugir. Eu quase tive pena da coisa que ela por acaso encontrasse. — Ele indicou com a cabeça a casa dos Calders. — A Senhora Calder e outros receberam alguns dos feridos, aqueles cuja casa não está mais de pé. Depois que a Sabedoria tiver visto Tam, vamos encontrar um leito para ele. Talvez na estalagem. O Prefeito já ofereceu, mas Nynaeve disse que os feridos iriam se curar melhor se não ficassem tantos em um mesmo lugar.
Rand caiu de joelhos. Retirando seus arreios de cobertor, verificou, exausto, as cobertas de Tam, que não se moveu nem emitiu um som sequer, nem mesmo quando as mãos rígidas de Rand o sacudiram. Mas pelo menos ele ainda estava respirando. Meu pai. Aquilo era apenas por causa da febre.
— E se voltarem? — ele perguntou, ausente.
— Há de ser o que a Roda tecer — Mestre Luhhan disse, desconfortável. — Se voltarem… Bem, eles se foram, por ora. Então vamos juntar os pedaços, reconstruir o que foi destruído. — Ele suspirou, o rosto relaxando enquanto massageava a base da coluna com os nós dos dedos.
Pela primeira vez Rand percebeu que o homem enorme estava tão cansado quanto ele, talvez até mais. O ferreiro olhou para a aldeia, sacudindo a cabeça.
— Acho que hoje não vai ser o melhor Bel Tine que já tivemos por aqui. Não. Mas nós vamos superar isso. Sempre superamos. — Pegou o machado bruscamente, e seu rosto ficou sério. — Tenho trabalho me esperando. Não se preocupe, rapaz. A Sabedoria tomará conta dele direitinho, e a Luz cuidará de todos nós. E se não cuidar, bem, nós mesmos cuidaremos. Lembre-se: somos dos Dois Rios.
Ainda de joelhos, Rand olhou para a aldeia enquanto o ferreiro se afastava — ele a olhou de fato pela primeira vez. Mestre Luhhan tinha razão, pensou, e ficou surpreso por não estar surpreso com o que via. As pessoas ainda remexiam as ruínas de suas casas, mas mesmo no curto tempo em que ele estava ali um número maior delas havia começado a se movimentar com um senso de propósito. Ele conseguia quase sentir a determinação crescente. E se perguntou: eles haviam visto Trollocs; será que tinham visto o cavaleiro de manto negro? Será que haviam sentido seu ódio?
Nynaeve e Egwene surgiram de dentro da casa dos Calders, e ele se levantou de um salto. Ou melhor, tentou se levantar de um salto; foi mais um tropeço, que quase o fez cair de cara na poeira.
A Sabedoria se ajoelhou ao lado da maca sem lhe dirigir sequer um olhar. O rosto e o vestido estavam ainda mais sujos que os de Egwene, e as mesmas sombras escuras circundavam seus olhos, embora as mãos também estivessem limpas. Ela apalpou o rosto de Tam e abriu suas pálpebras com os polegares. Franzindo a testa, puxou as cobertas e afastou devagar o curativo para ver a ferida. Antes que Rand pudesse ver o que havia por baixo ela já havia recolocado o pano atoalhado no lugar. Com um suspiro, ajeitou o cobertor e o manto novamente até o pescoço de Tam com um movimento delicado, como se estivesse ajeitando uma criança na hora de dormir.