— Você o viu também? Achei que tinha sido o único. Não ria, Rand, mas ele me assustou.
— Não estou rindo. Ele também me apavorou. Eu podia jurar que ele me odiava, que queria me matar. — Rand estremeceu. Até aquele dia jamais pensara que alguém pudesse querer matá-lo, matá-lo de verdade. Esse tipo de coisa simplesmente não acontecia nos Dois Rios. Trocar uns socos, talvez, lutas, mas matar, não.
— Não sei sobre essa história de ódio, Rand, mas ele era bastante assustador de qualquer maneira. Tudo que fez foi ficar sentado em seu cavalo, olhando para mim, na entrada da aldeia, mas eu nunca senti tanto medo em minha vida. Então, quando desviei os olhos, só por um instante… e isso não foi fácil, veja bem… e olhei de novo, ele havia desaparecido. Sangue e cinzas! Isso já tem três dias, e eu mal consigo parar de pensar nele. Fico olhando o tempo todo por cima do ombro. — Mat tentou uma risada que acabou saindo como um grasnido. — É gozado como o medo toma conta da gente. Faz a gente pensar coisas estranhas. Eu cheguei a pensar… só por um minuto, veja bem… que pudesse ser o Tenebroso. — Ele tentou dar outra risada, mas dessa vez nenhum som saiu de sua garganta.
Rand respirou fundo. Tanto para lembrar a si mesmo quanto por qualquer outro motivo, disse mecanicamente:
— O Tenebroso e todos os Abandonados estão presos em Shayol Ghul, além da Grande Praga, presos pelo Criador no momento da Criação, presos até o fim dos tempos. A mão do Criador protege o mundo, e a Luz brilha sobre todos nós. — Ele respirou fundo mais uma vez e continuou: — Além disso, se estivesse livre, o que o Pastor da Noite estaria fazendo nos Dois Rios? Vigiando garotos de fazenda?
— Não sei. Só sei que aquele cavaleiro era… mau. Não ria. Posso jurar que sim. Talvez ele fosse o Dragão.
— Você está mesmo cheio de pensamentos animadores, hein? — Rand resmungou. — Está pior que Cenn.
— Minha mãe sempre disse que os Abandonados viriam me pegar se eu não me corrigisse. Se algum dia eu vi alguém que parecesse com Ishamael ou Aginor, esse alguém foi ele.
— Toda mãe assusta os filhos com os Abandonados — disse Rand secamente —, mas a maioria cresce e supera isso. Por que não o Homem das Sombras, já que você tocou no assunto?
Mat o fuzilou com o olhar.
— Eu não sentia tanto medo desde… Não, nunca senti tanto medo assim, e não me importo de admitir isso.
— Eu também não. Meu pai acha que eu estava com medo das sombras das árvores.
Mat assentiu, sombrio, e se recostou na roda da carroça.
— Meu pai também. Contei a Dav, e a Elam Dowtry. Eles estão atentos feito gaviões desde então, mas não viram nada. Agora Elam acha que eu estava tentando enganá-lo. Dav acredita que o cavaleiro vem lá de Barca do Taren… um ladrão de ovelhas, ou de galinhas. Ladrão de galinhas! — Ele caiu num silêncio afrontado.
— Provavelmente isso tudo não passa mesmo de uma bobagem — disse Rand por fim. — Talvez seja realmente só um ladrão de ovelhas. — E tentou visualizar a cena, mas era como visualizar um lobo tomando o lugar de um gato na frente da toca de um rato.
— Bem, eu não gostei de como ele olhou para mim. Nem você, não pelo jeito como reagiu ao assunto. Deveríamos contar a alguém.
— Já falamos, Mat, nós dois, e não acreditaram. Já imaginou tentar convencer Mestre al’Vere sobre esse sujeito, sem que ele o veja? Ele nos mandaria para Nynaeve para ver se estamos doentes.
— Mas agora somos dois. Ninguém poderia achar que nós dois imaginamos a mesma coisa.
Rand esfregou rapidamente o topo da cabeça, perguntando-se o que dizer. Mat era uma figura conhecida na aldeia. Poucas pessoas haviam escapado de suas traquinagens. Agora seu nome surgia sempre que um varal deixava cair as roupas no chão ou uma fivela de sela frouxa derrubava um fazendeiro na estrada. Nem era preciso que Mat estivesse por perto. O apoio dele podia ser pior que não ter apoio nenhum.
Depois de um instante Rand falou:
— Seu pai acharia que você me convenceu a inventar isso, e o meu… — Ele olhou por cima da carroça para onde Tam, Bran e Cenn estavam conversando, e se viu olhando nos olhos do pai.
O prefeito ainda repreendia Cenn, que agora ouvia quieto e amuado.
— Bom dia, Matrim — disse Tam, animado, erguendo um dos barris de conhaque até apoiá-lo na lateral do carro. — Estou vendo que você veio ajudar Rand a descarregar a sidra. Bom garoto.
Mat se levantou de um salto já na primeira palavra e começou a recuar.
— Bom dia para o senhor, Mestre al’Thor. E para o senhor, Mestre al’Vere. Mestre Buie. Que a Luz brilhe sobre os senhores. Meu pai me mandou aqui para…
— Claro que mandou — disse Tam. — E claro que, como você é um rapaz que executa suas tarefas imediatamente, já terminou o que veio fazer. Bem, quanto mais rápido vocês levarem a sidra ao porão de Mestre al’Vere, mais rápido poderão ver o menestrel.
— Menestrel! — exclamou Mat, parando de supetão onde estava, no mesmo instante em que Rand perguntava:
— Quando ele vai chegar?
Rand só conseguia se lembrar da visita de dois menestréis aos Dois Rios em toda a sua vida, e em uma dessas visitas ele era tão pequeno que pôde sentar-se nos ombros de Tam para assistir. O fato de terem um deles ali de verdade durante o Bel Tine, com a harpa e a flauta, as histórias e tudo o mais… Dali a dez anos, Campo de Emond ainda estaria comentando aquele Festival, mesmo que não houvesse fogos de artifício.
— Bobagem — resmungou Cenn, mas calou-se com um olhar de Bran que tinha todo o peso do cargo de Prefeito.
Tam recostou-se na lateral da carroça, usando o barril de conhaque como apoio para o braço.
— Sim, um menestrel, e ele já está aqui. Segundo Mestre al’Vere, neste exato momento ele se encontra em um quarto da estalagem.
— Chegou na calada da noite. — O estalajadeiro balançou a cabeça em desaprovação. — Bateu na porta da frente até acordar a família inteira. Não fosse pelo Festival, eu teria dito que levasse o próprio cavalo para o estábulo e que dormisse na baia com ele, menestrel ou não. Imagine chegar assim no escuro.
Rand ficou olhando intrigado. Ninguém viajava além dos limites da aldeia à noite, não naqueles dias, certamente não sozinho. O telhador resmungou baixinho novamente, muito baixo dessa vez para que Rand compreendesse mais do que uma ou duas palavras. “Louco” e “anormal”.
— Ele não usa um manto negro, usa? — perguntou Mat de repente.
A barriga de Bran balançou com a risada.
— Negro? O manto dele é igual ao manto de todo menestrel que já vi na vida. Tem mais remendos do que manto, e mais cores do que você possa imaginar.
Rand surpreendeu-se rindo muito alto, um riso de puro alívio. O ameaçador cavaleiro de negro como menestrel era mesmo uma ideia ridícula, mas… Ele cobriu a boca com a mão, envergonhado.
— Está vendo, Tam? — disse Bran. — Não tem havido muito riso neste vilarejo desde a chegada do inverno. Agora até mesmo o manto do menestrel é motivo de gargalhada. Só isso já vale a despesa de tê-lo trazido lá de Baerlon.
— Digam o que quiserem — pronunciou-se Cenn subitamente. — Eu ainda acho que é um desperdício de dinheiro. Isso e esses fogos de artifício que vocês todos insistiram em mandar trazer.
— Então há mesmo fogos de artifício — disse Mat.
Mas Cenn prosseguiu:
— Deveriam ter chegado há um mês, com o primeiro mascate do ano, mas não houve nenhum mascate sequer, não foi? Se ele não vier até amanhã, o que vamos fazer com os fogos? Realizar outro Festival só para soltá-los? Isto é, se ele os trouxer, é claro.
— Cenn. — Tam suspirou — Você confia tanto nas pessoas quanto um homem de Barca do Taren.
— Onde ele está, então? Diga-me isso, al’Thor.
— Por que o senhor não nos contou? — perguntou Mat em tom ofendido. — A aldeia toda teria se divertido tanto com a espera quanto com o próprio menestrel. Ou quase, pelo menos. Dá para ver como todo mundo ficou só com o boato de fogos.