O PODEROSO CHEFÃO
Mario Puzo
Tradução por Carlos Neyfeld
Por trás de cada fortuna há um crime.
- Balzac
LIVRO I
CAPÍTULO 1
AMERIGO BONASERA, sentado na Terceira Corte criminal de Nova York. esperava justiça; vingança contra os homens que tão cruelmente maltrataram sua filha, que procuraram desonrá-la.
O juiz, um homem de aspecto extremamente sisudo, arregaçou as mangas de sua toga preta como que para castigar fisicamente os dois jovens posta- dos à sua frente. O seu rosto lívido denunciava um desprezo imponente. Mas havia alguma coisa falsa em tudo isso, alguma coisa que Amerigo Bonasera sentia, mas ainda não compreendia.
— Vocês procederam como a pior espécie de degenerados — disse o juiz asperamente.
Sim, sim, pensava Amerigo Bonasera. Animais. Animais. Os dois jovens, de cabelo glostorado cortado à escovinha, rosto escanhoado apresentando uma contrição humilde, baixaram a cabeça submissamente.
— Vocês procederam como animais ferozes na selva — prosseguiu o juiz e tiveram sorte que não molestaram sexualmente essa pobre moça, pois então eu os condenaria a vinte anos de cadeia.
O juiz fez uma pausa, os seus olhos por baixo das sobrancelhas impressionantemente cerradas piscaram manhosamente para o pálido Amerigo Bonasera, depois ergueram-se para uma pilha de relatórios, aconselhando a concessão de sursis, acumulados à sua frente. Ele franziu as sobrancelhas e deu de ombros como que convencido contra a sua própria vontade natural.
— Mas devido à juventude de vocês, a ficha limpa de vocês, devido às boas famílias a que vocês pertencem e levando em conta o fato de que a lei em sua majestade não procura vingança, eu conseqüentemente os condeno a três anos de reclusão. Tal pena, porém, ficará suspensa — arrematou o juiz.
Somente quarenta anos de luto profissional impediram que a poderosa frustração e o ódio transparecessem no rosto de Amerigo Bonasera. A sua linda filha ainda se encontrava no hospital com o maxilar fraturado, devidamente costurado com fio metálico; e agora esses dois animales eram assim libertados? Tudo fora uma farsa. Ele observava o pais felizes aglomerarem-se em torno de seus queridos filhos. Oh, todos estavam felizes, e riam agora.
O fel negro, extremamente amargo, subiu á garganta de Bonasera e atravessou-lhe os dentes apertadamente cerrados. Ele pegou o seu lenço de linho branco e manteve de encontro aos lábios. Estava nessa atitude, quando os dois jovens caminharam livremente pelo corredor entre as filas de assentos, com olhar frio e confiante, rindo, sem nem sequer dar-lhe uma simples olhadela. Ele os deixou passar sem dizer uma palavra, comprimindo o lenço de encontro à boca.
Os pais dos animales estavam vindo agora, dois homens e duas mulheres da idade dele, porém mais americanos no trajar. Olharam pare ele, envergonhados, mas os seus olhos irradiavam um desafio singular e triunfante.
Fora de controle, Bonasera inclinou-se para o corredor entre as filas de assentos e gritou asperamente:
— Vocês hão de chorar como eu chorei... hei de fazê-los chorar como seus filhos me fizeram chorar — e levou o lenço aos olhos.
Os advogados de defesa, que marchavam na retaguarda, empurraram seus clientes para a frente, formando um pequeno grupo apertado em torno dos dois jovens, que haviam iniciado o caminho de volta pelo corredor como que para proteger seus pais. Um corpulento oficial de justiça correu imediatamente a fim de bloquear a fila em que se encontrava Bonasera. Mas não foi necessário.
Durante todos os anos que vivera na América, Bonasera confiara na lei e na ordem. E assim prosperara. Agora, conquanto o seu cérebro estourasse de ódio e a idéia feroz de comprar uma arma e matar os dois jovens martelasse em sua cabeça, Bonasera voltou-se para a sua esposa, ainda perplexa, e explicou:
— Eles nos fizeram de trouxas. Fez uma pausa e depois tomou uma decisão, não mais temendo quanto lhe custaria isso. — Para conseguir justiça, temos de ir de joelhos a Don Corleone.
No apartamento espalhafatosamente decorado de um hotel de Los Angeles, Johnny Fontane estava tão ciumentamente embriagado como qualquer outro marido. Escarrapachado num divã vermelho, ele bebia diretamente na garrafa de uísque que segurava na mão, depois tirava o gosto da bebida metendo a boca num balde de cristal contendo cubos de gelo e água. Eram quatro horas da manhã, e ele continuava imaginando, com sua mente ébria, a maneira de matar a sua mulher ordinária, quando ela chegasse a casa. Se ela de fato voltasse para casa. Era muito tarde para chamar a sua primeira mulher, a fim de pedir notícias das crianças, e ele achava engraçado chamar qualquer dos seus amigos, agora que sua carreira estava afundando rapidamente. Houve época em que eles se sentiriam prazerosos, lisonjeados, por ele ter-lhes chamado às quatro horas da manhã, mas agora ele lhes causava aborrecimento. Ele podia até rir um pouco consigo mesmo ao pensar que, na fase de ascensão, as complicações de Johnny Fontane chegaram a empolgar algumas das maiores atrizes da América.
“Mamando” a sua garrafa de uísque, ele ouviu finalmente a chave da sua mulher mover-se na fechadura da porta, mas continuou a beber até que ela entrou na sala e se postou à sua frente. Ela era para ele tão bonita, com seu rosto angélico, seus olhos violeta expressivos, seu corpo delicadamente frágil, mas de formas perfeitas. Na tela, a sua beleza se ampliava, se espiritualizava. Uma centena de milhões de homens no mundo inteiro estavam apaixonados pelo rosto de Margot Ashton. E pagavam para vê-lo na tela.
— Onde diabo estava você? — perguntou Johnny Fontane.
— Lá fora paquerando — respondeu ela.
Ela calculara mal sua bebedeira. Johnny saltou por cima da mesinha de bebidas e agarrou-a pela garganta. Mas ao se ver perto desse rosto enfeitiçado, desses adoráveis olhos violeta, ele perdeu a raiva e sentiu-se desanimado novamente. Ela cometeu o erro de rir zombeteiramente e percebeu o punho dele voltar-lhe violentamente.
— Johnny, no rosto não, eu estou fazendo um filme — gritou ela.
Ela estava rindo. Ele bateu-lhe no estômago e ela caiu no chão. Johnny caiu em cima dela. Podia sentir-lhe a respiração perfumada e ofegante. Bateu. lhe nos braços e nos músculos das coxas de suas macias pernas queimadas pelo sol. Batia-lhe do jeito como castigava garotos menores, há muito tempo, quando era um rapazinho turbulento, num mal-afamado bairro de Nova York. Um castigo doloroso que não deixaria qualquer desfiguração duradoura de dentes soltos ou nariz quebrado.
Mas não batia nela com bastante força. Não podia. E ela zombava dele. Esparramada no chão, com o seu vestido de brocado levantado acima das coxas, ela escarnecia dele entre risadas.
— Vamos, continue. Continue, Johnny, isso é o que você realmente quer.
Johnny Fontane levantou-se. Odiava a mulher que estava no chão, mas a beleza dela era um mágico escudo de proteção. Margot rolou no solo, e num salto de dançarina pôs-se de pé em frente dele e começou a executar uma espécie de dança infantil zombeteira, cantando — Johnny nunca me machucou, Johnny nunca me machucou.
— Seu patife idiota — disse depois, quase tristemente, com sua beleza serena — castigando-me como uma criança. Ah, Johnny, você será sempre um bichinho bem romântico, você até ama como uma criança. Ainda pensa que trepar com a mulher é o mesmo que cantarolar aquelas cantigas enjoadas que você costumava cantar. — Balançou a cabeça e arrematou: — Pobre Johnny. Adeus, Johnny.