Tudo o mais estava arranjado. Paulie Gatto fora instruído para apanhá-lo às três horas da tarde, e para apanhá-lo em seu próprio carro, nada de grave. Clemenza pegou o telefone e discou o número de Rocco Lampone. Não se identificou, disse simplesmente:
— Venha até a minha casa, tenho uma missão para você.
Ficou satisfeito ao notar que, apesar de ainda ser muito cedo, a voz de Lampone não se surpreendeu nem estava tonta de sono, e ele simplesmente respondeu:
— Está bem.
Bom homem, pensou Clemenza, acrescentando:
— Não há pressa, tome o seu breakfast e almoce antes de vir ver-me. Mas não venha depois das duas da tarde.
Ouviu-se outro lacônico “está bem” do outro lado da linha e Clemenza desligou. Já avisara o seu pessoal para substituir a turma do caporegime Tessio na alameda de Corleone e assim foi feito. Ele tinha subordinados competentes e jamais intervinha numa operação de rotina dessa natureza.
Decidiu lavar o seu Cadillac. Ele adorava o carro. Proporcionava-lhe um rodar tão tranqüilo, e o seu acolchoado era tão cômodo que às vezes se sentava nele durante uma hora, quando o tempo estava bom, porque era mais agradável do que sentar-se numa poltrona dentro de casa. E sempre gostava de pensar enquanto lavava o carro. Lembrava-se do pai, na Itália, que fazia a mesma coisa com os burros.
Clemenza trabalhava dentro da garagem aquecida, pois detestava o frio. Repassou rapidamente os planos. Era preciso ter cuidado com Paulie, o homem era como um rato, sentia o cheiro do perigo. E agora, de fato, apesar de ser tão duro, devia estar cagando nas calças porque o velho sobrevivera. Ele estaria tão desconfiado quanto um burro, sentindo comichão na bunda. Mas Clemenza já se acostumara a essas circunstâncias, tão habituais em seu trabalho. Primeiro, precisava ter uma boa desculpa para que Rocco os acompanhasse. Segundo, teria de inventar uma missão plausível para os três realizarem.
Evidentemente, a rigor, isso não era necessário. Paulie Gatto podia ser assassinado sem qualquer dessas formalidades. Ele estava acuado, não podia fugir. Mas Clemenza sentia intensamente que era importante manter os hábitos do bom trabalho e jamais ceder um milímetro de vantagem. Nunca é fácil prever o que pode acontecer, e essas coisas são, afinal de contas, questões vida e morte.
Enquanto lavava seu Cadillac azul, Peter Clemenza ponderava e ensaiava o que iria dizer, as expressões do seu rosto. Seria breve com Paulie, como se estivesse desgostoso com ele. Com um homem tão sensível e desconfiado como Gatto, isso o tiraria fora da jogada ou pelo menos o deixaria em dúvida. Amabilidade indevida o faria cauteloso. Mas, certamente, essa brevidade não seria de muito mau humor. Tinha de ser antes uma espécie de irritação distraída. E por que Lampone estava ali? Paulie acharia isso muito inquietante, especialmente porque Lampone deveria estar no assento traseiro. Paulie não gostaria de ficar abstraído no volante com Lampone atrás de sua cabeça. Clemenza esfregou e poliu o metal do seu Cadillac furiosamente. Ia ser difícil. Muito difícil. Por um momento, cogitou se deveria convocar outro homem, mas decidiu contra tal idéia. Aqui ele seguiu o raciocínio básico. Nos anos vindouros, poderia surgir uma situação em que seria vantajoso para um dos seus parceiros depor contra ele. Se fosse apenas um cúmplice, seria a palavra de uma pessoa contra outra. Mas a palavra de um segundo cúmplice podia fazer pender a balança. Não, eles cumpririam a missão à risca.
O que aborrecia Clemenza era que a execução tinha de ser “pública”. Isto é, o corpo deveria ser encontrado. Ele preferia fazê-lo desaparecer. (Os cemitérios habituais eram perto do oceano ou os pântanos de Nova Jersey em terras de propriedade de amigos da Família ou de outros métodos mais complicados.) Mas tinha de ser público para que os traidores em potencial ficassem apavorados e o inimigo avisado de que a Família Corleone não tinha absolutamente se tornado idiota ou fraca. Sollozzo se tornaria cauteloso em virtude dessa rápida descoberta de seu espião. A Família Corleone recuperaria parte do prestígio perdido. Pareceria ter sido tolice o atentado contra o velho.
Clemenza deu um suspiro. O Cadillac brilhava como um enorme ovo de aço azul, e ele não estava ainda perto de resolver o seu problema. De repente, a solução ocorreu-lhe, lógica e a calhar. isso explicaria o fato de Rocco Lampone, ele próprio e Paulie se acharem juntos e justificaria uma missão de grande segredo e importância.
Clemenza diria a Paulie que a tarefa deles naquele dia seria achar um apartamento para o caso de a Família resolver “dormir em colchões”.
Toda vez que a guerra entre as Famílias se tornava extremamente intensa, os adversários instalavam quartéis-generais em apartamentos secretos onde os “soldados” dormiam em colchões espalhados pelos quartos. Isso não era somente para manter as suas famílias fora de perigo, as mulheres e as crianças pequenas, já que qualquer ataque aos não-combatentes era inconcebível. Todas as partes eram muito vulneráveis a represálias semelhantes. Entretanto, era sempre mais vantajoso viver em algum lugar secreto onde os movimentos diários de uma parte não pudessem ser registrados pelos adversários ou pela polícia que poderia arbitrariamente resolver interferir.
E assim, geralmente mandava-se um caporegime de confiança alugar um apartamento secreto e enchê-lo de colchões. Esse apartamento seria usado como um lugar de partida para a cidade quando se preparasse uma ofensiva. Era natural que Clemenza fosse enviado para realizar tal missão. Era natural, para ele, levar Gatto e Lampone em sua companhia, a fim de providenciar todos os detalhes, inclusive o encargo de mobiliar o apartamento. Também, Clemenza pensou sarcasticamente, Paulie Gatto tinha demonstrado ser ganancioso, e a primeira idéia que lhe ocorreria à cabeça era quanto poderia conseguir de Sollozzo por essa valiosa informação.
Rocco Lampone chegou cedo, e Clemenza explicou o que devia ser feito e qual seria o papel de cada um. O rosto de Lampone iluminou-se com surpreendente gratidão, enquanto agradecia respeitosamente a Clemenza pela promoção que lhe permitia servir a Família. Clemenza tinha a certeza de que agira bem. Bateu no ombro de Lampone e disse:
— Você vai conseguir algo melhor para viver, a partir de hoje. Falaremos nisso mais tarde. Você compreende que a Família agora está ocupada com assuntos mais delicados, coisas mais importantes para fazer.
Lampone fez um gesto que dizia que ele seria paciente, sabendo que a sua recompensa era certa.
Clemenza foi até o cofre do seu cubículo e abriu-o. Tirou dali um revólver e deu-o a Lampone.
— Use este. Eles nunca descobrirão a quem pertence. Deixe-o no carro com Paulie. Quando o trabalho estiver terminado, quero que você leve a sua mulher e filhos para umas férias na Flórida. Use o seu próprio dinheiro agora e eu o reembolsarei depois. Descanse, apanhe bastante sol. Hospede-se no hotel da Família em Miami para que eu saiba onde poderei encontrá-lo quando precisar.
A mulher de Clemenza bateu na porta do cubículo para dizer-lhes que Paulie Gatto havia chegado. Ele estava estacionado na porta da garagem. Clemenza encaminhou-se para a garagem e Lampone o seguiu. Quando Clemenza entrou no assento dianteiro com Gatto, apenas murmurou um cumprimento, com um aspecto encolerizado no rosto. Olhou para o relógio de pulso como que esperando verificar que Gatto estivesse atrasado.
O guarda-costas olhava-o atentamente, procurando uma pista. Tomou um pequeno susto quando Lampone entrou no assento traseiro bem atrás dele e disse:
— Rocco, sente do outro lado. Um sujeito grande como você atrapalha o meu espelho retrovisor.
Lampone mudou de lugar obedientemente de modo que passou a sentar atrás de Clemenza, como se tal pedido fosse a coisa mais natural do mundo.
Clemenza falou asperamente:
— Maldito Sonny, começou a se apavorar. Já está pensando em “dormir em colchões”. Temos de achar um apartamento na zona Oeste. Paulie, você e Rocco têm de levar gente para lá e supri-lo até ser dada a ordem para resto dos soldados usá-lo. Você conhece um bom lugar?