Normalmente, os membros mais destacados na hierarquia da Família Corleone nunca se interessariam por um tal detalhe operacional. Essa cúpula ficava isolada, pelo menos cinco camadas acima dos demais membros. Todavia, como a banca estava funcionando a título de experiência no gênero, foi posta sob a fiscalização direta de Tom Hagen, que dela recebia um relatório diário.
Agora que os “informes” estavam anunciados, os jogadores apinhavam-se na sala dos fundos da confeitaria para anotar a cotação nos seus jornais, ao lado dos jogos publicados ali com lançadores prováveis. Alguns deles seguravam seus filhos pequenos pela mão, enquanto olhavam para o quadro-negro. Um sujeito que fazia grandes apostas olhou para a garotinha que segurava pela mão.
— De quem é que você gosta hoje, querida, dos Gigantes ou dos Piratas? — indagou à criança.
A garotinha, fascinada pelos nomes impressionantes, perguntou:
— Os Gigantes são mais fortes do que os Piratas?
O pai deu uma gargalhada.
Uma fila começou a se formar em frente dos dois apontadores. Quando um deles completava uma folha, arrancava-a e enrolava com ela o dinheiro que tinha recebido e a entregava a Carlo. Este passava pela saída dos fundos da sala e subia uma escada até o apartamento em que morava a família do próprio dono da confeitaria. Transmitia as apostas para a banca central e punha o dinheiro num pequeno cofre de parede escondido por uma extensa cortina de janela. Em seguida, descia para a confeitaria, depois de ter queimado a folha de apostas e lançado as cinzas no vaso sanitário, puxando a descarga.
Nenhum dos jogos de domingo começava antes das duas horas da tarde, devido às leis especiais referentes aos domingos; assim, após a primeira multidão de apostadores, chefes de família que tinham de fazer suas apostas e correr para casa para levá-la à praia, vinha o pinga-pinga dos solteiros ou dos tipos antiquados, que condenavam a família a passar o domingo em seu apartamento quente da cidade. Esses apostadores solteiros eram os maiores jogadores, apostavam mais alto e voltavam lá pelas quatro horas, para apostar no segundo jogo da partida dupla. Eram esses que faziam Carlo trabalhar durante um expediente inteiro aos domingos em horas extras, embora alguns casados telefonassem da praia para tentar recuperar o prejuízo.
Por volta de 1:30 da tarde, as apostas tinham diminuído tanto, que Carlo e Saily Rags puderam sair e sentar-se na varanda ao lado da confeitaria, a fim de tomar um pouco de ar fresco. Olhavam os meninos jogarem bola. Passou um carro da polícia. Nem tomaram conhecimento dele. Essa banca tinha uma proteção muito forte do distrito policial e não podia ser visitada por determinação de uma autoridade local. Uma batida tinha de ser ordenada pela cúpula e mesmo então devia haver um aviso com muita antecedência.
Coach também saiu, juntando-se aos outros dois. Bateram um papo sobre beisebol e mulheres.
— Tive de bater na mulher novamente hoje, para ensinar-lhe quem é que manda — contou Carlo, entre gargalhadas.
— Ela está com a barriga bem grande agora, não está? — interrompeu Coach casualmente.
— Ah, ah, eu apenas dei uns bofetões na cara dela — respondeu Carlo. — Não a machuquei.
E pensou um momento.
— Ela acha que pode mandar em mim, não suporto isso.
Apareceram ainda uns apostadores soltando boatos, falando em beisebol, alguns deles sentando-se nos degraus acima dos dois apontadores e Carlo. De repente, os meninos que estavam jogando bola na rua se espalharam. Vinha um carro ruidosamente pelo quarteirão, freando em frente da confeitaria. Parou tão violentamente que os pneus gemeram e, antes que o carro quase parasse, um homem pulou do assento do motorista, movendo-se tão depressa que todo mundo ficou paralisado. Era Sonny Corleone.
O seu rosto de cupido, carregado, com sua boca encurvada, grossa, era uma horrenda máscara de fúria. Numa fração de segundo, estava na varanda e tinha agarrado Carlo Rizzi pela garganta. Afastou-o dos outros, procurando arrastá-lo para a rua, mas este passou os seus enormes braços musculosos em torno do corrimão de ferro da varanda e pendurou-se aí. Encolheu-se todo, procurando esconder a cabeça e o rosto entre os ombros. Sua camisa rasgou-se na mão de Sonny.
O que se seguiu foi repugnante. Sonny começou a bater no acovardado Carlo com os punhos, xingando-o com uma voz grossa, abafada pela raiva. Carlo, apesar de seu enorme físico, não oferecia resistência, não soltava qualquer grito de misericórdia ou de protesto. Coach e Sally Rags não se atreviam a intervir. Pensavam que Sonny pretendia matar o cunhado e não tinham vontade de partilhar o seu destino. Os meninos que estavam jogando bola se reuniram para xingar o motorista que os fizera dispersar, mas agora estavam observando atemorizados. Eram garotos duros, mas aquela cena de Sonny em sua fúria fê-los calar. Entrementes, outro carro parou atrás do de Sonny e dois dos seus guarda-costas saltaram. Quando viram o que estava acontecendo, também não se atreveram a intervir. Mantiveram-se alerta, prontos para protegerem o chefe se algum espectador tivesse a estupidez de tentar ajudar Carlo.
O que tornou repugnante o espetáculo foi a completa submissão de Carlo, e talvez foi isso que lhe salvou a vida. Agarrou-se firmemente ao corrimão de ferro, de modo que Sonny não pôde arrastá-lo para a rua e, apesar de sua força equilibrar com a do cunhado, continuou a recusar-se reagir. Deixou que os golpes chovessem em sua cabeça e pescoço desprotegidos, até que o furor de Sonny passou. Finalmente, com o peito erguido, Sonny baixou os olhos para Carlo.
— Seu salafrário nojento, se você bater outra vez em minha irmã, eu o mato — arrematou.
Estas palavras baixaram a tensão. Porque, é claro, se Sonny quisesse matar Carlo, não teria pronunciado aquela ameaça. Fê-la frustrado, porque não podia executá-la. Carlo evitava olhar para Sonny. Mantinha a cabeça baixa e as mãos e os braços trançados no corrimão de ferro. Permaneceu assim, até que o carro zarpou ruidosamente e ele ouviu Coach dizer numa voz curiosamente paternaclass="underline"
— Muito bem, Carlo, vamos entrar na confeitaria. Vamos sair da vista dessa gente.
Somente então, foi que Carlo se atreveu a sair de sua posição agachada contra os degraus de pedra da varanda e desembaraçou as mãos do corrimão. Pondo-se de pé, viu os meninos olharem para ele com ar repulsivo, espantado, de gente que tinha assistido à degradação de um semelhante. Sentia-se um pouco tonto, porém isso era mais devido ao choque e ao tremendo medo que se apoderara de seu corpo; não estava muito machucado, apesar da saraivada de golpes pesados recebidos. Deixou Coach levá-lo pelo braço para a sala dos fundos da confeitaria e colocar gelo no seu rosto, que, embora não estivesse cortado ou sangrando, apresentava-se cheio de equimoses e inchado. O medo estava passando agora e a humilhação que sofreu fê-lo passar mal do estômago, de modo que ele teve de vomitar. Coach segurou-lhe a cabeça sobre a pia, amparou-o como se ele estivesse embriagado, depois ajudou-o a subir até o apartamento e fê-lo deitar-se na cama de um dos quartos. Carlo não notara que Sally Rags desaparecera.
Saily Rags tinha ido até a Terceira Avenida e telefonara para Rocco Lampone informando-o do que acontecera. Rocco recebeu a notícia calmamente e, por sua vez, telefonou para o seu caporegime, Pete Clemenza, que gemeu e disse:
— Ó Cristo, esse maldito Sonny e seu gênio — mas o seu dedo prudentemente havia abaixado o gancho do telefone, para que Rocco não ouvisse as suas palavras.
Clemenza telefonou para a casa de Long Beach e chamou Tom Hagen. Este ouviu-o em silêncio por um momento.
— Mande alguns de seus homens e carros para a estrada de Long Beach o mais depressa possível — disse em seguida — só para evitar que Sonny seja retido pelo tráfego ou por algum acidente. Quando ele fica irritado assim, não sabe que diabo está fazendo. Talvez alguns de nossos amigos do outro lado tenham conhecimento de que ele estava na cidade. Nunca se sabe.